Geni é uma revista virtual independente sobre gênero, sexualidade e temas afins. Ela é pensada e editada por um coletivo de jornalistas, acadêmicxs, pesquisadorxs, artistas e militantes. Geni nasce do compromisso com valores libertários e com a luta pela igualdade e pela diferença. ISSN 2358-2618

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Instituto Terra, Trabalho e Cidadania

Os valores patriarcais que determinam a opressão às mulheres em todas as sociedades as alcança de maneira ainda mais brutal no cárcere.

 

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 Carrie Mae Weems | Not Manet’s type | 1997

 

 

O Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC) é uma organização não-governamental que se dedica, desde a sua fundação em 1997, à defesa e garantia dos direitos das pessoas presas, egressas e familiares, a fim de reduzir o encarceramento, crescente no Brasil. Dessa forma, o Instituto procura não apenas assistir essas pessoas, mas também empoderá-las, construindo um processo de aprendizado da legislação, do sistema de justiça e de Direitos Humanos. Tem também o objetivo de tornar públicas as demandas apresentadas pelas pessoas atendidas, como a necessidade de revisão do modelo punitivo de encarceramento em massa feito por homens e para homens.

O ITTC possui duas frentes de atuação: o Programa Justiça Sem Muros e o Projeto Estrangeiras, ambos preocupados com questões de gênero, mas com atuações diversas.

O Justiça Sem Muros tem como foco o desenvolvimento de projetos e pesquisas, além de advocacy (diálogo público) sobre as violações de Direitos Humanos ligadas ao funcionamento da justiça criminal, já tendo participado ativamente da campanha pelo fim da revista vexatória e da implementação da audiência de custódia. O Estrangeiras trabalha com atendimento direto e procura garantir os direitos das mulheres estrangeiras com a finalidade de empoderá-las e ampliar seu acesso à justiça.

 

 

Desafios de atuação

 

De acordo com levantamento do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o Brasil atingiu, no ano passado, a posição de terceiro país com mais pessoas privadas de liberdade no mundo. Por essa razão, passa a ser urgente o debate sobre o uso de medidas alternativas à prisão visando ao desencarceramento. É interessante notar que esse levantamento sobre o tamanho da população carcerária, apesar de ser o mais recente, sequer distinguiu entre a quantidade de homens presos e de mulheres presas, reforçando o quanto, institucionalmente, não há atenção a especificidades de gênero na construção de políticas de justiça criminal. É por isso que o Programa Justiça Sem Muros desenvolve o projeto de pesquisa Alternativas ao Encarceramento, cujo enfoque está na aplicação de medidas alternativas à prisão, especialmente no caso das mulheres, cuja população cresce em ritmo muito mais acelerado do que a masculina. Entre 2000 e 2012, a população carcerária masculina cresceu a uma taxa de 130%, enquanto a feminina cresceu 246%.

Para o ITTC, discutir as alternativas penais só faz sentido se esse tema estiver associado à crítica à política de encarceramento, não apenas de uma maneira geral, mas olhando com particular atenção para medidas que permitam rever desigualdades estruturais e que priorizem a atenção a  grupos especialmente vulneráveis no sistema de justiça, como as mulheres e pessoas estrangeiras.

Uma das bases para a aplicação de penas alternativas às mulheres, e que deveriam ser uma referência normativa para operadores e operadoras do sistema de justiça, são as regras das Nações Unidas para o tratamento de mulheres presas e medidas não privativas de liberdade para mulheres infratoras, também conhecidas como Regras de Bangkok.

As Regras de Bangkok resultam do reconhecimento internacional da condição de desigualdade social a que a mulher está submetida em decorrência de discriminação de gênero e de todas as formas de violência a ela atreladas. De acordo com o texto das Regras, os Estados se comprometem a sempre priorizar a aplicação de medidas não privativas de liberdade como pena ou como medida cautelar para mulheres que entram em contato com o sistema de justiça criminal. No caso de mulheres presas, as Regras chamam atenção para as demandas e as vulnerabilidades específicas ligadas ao gênero, como históricos de abuso sexual, necessidade de serviços médicos de atenção à saúde reprodutiva e o descabimento de sanções disciplinares de isolamento para mulheres grávidas, com filhos ou em período de amamentação.

O Brasil foi um dos países que participou ativamente da sua elaboração, em 2010, e a sociedade civil brasileira também esteve representada pelo ITTC e pela Pastoral Carcerária. Mesmo assim, os direitos da mulher presa previstos nas Regras de Bangkok ainda não foram incorporados às políticas públicas nacionais e ainda não houve sequer a tradução oficial das Regras para o português.

A construção de políticas de segurança pública e criminais para redução do encarceramento é apenas um dos desafios do ITTC como instituição. Os valores patriarcais que determinam a opressão às mulheres em todas as sociedades as alcança de maneira ainda mais brutal no cárcere. As mulheres presas estrangeiras sofrem ainda mais com a distância de suas famílias, com a dificuldade de acesso à justiça e com a tripla punição da expulsão do país.

A missão do Projeto Estrangeiras é acompanhar mulheres estrangeiras em conflito com a lei para ouvi-las e dar voz a elas, por meio de atendimento direto, da realização de trabalhos para educação crítica para autonomia e do fomento de diálogo público com instituições que abordam temas análogos ao projeto, como ONG’s, defensoria pública e órgãos estatais.

No início dos trabalhos do Projeto, em 2001, havia cerca de 40 mulheres estrangeiras presas no estado de São Paulo. Hoje, já se contabiliza mais de 400 mulheres, em regime fechado e semi-aberto, de 60 nacionalidades diferentes.

Ao longo do tempo, as mulheres estrangeiras têm vindo cada vez mais ao Brasil como “mulas do tráfico de drogas”, motivo pelo qual cerca de 95% delas estão presas. Isso não quer dizer, no entanto, que elas façam parte de uma organização criminosa. Em geral, elas se envolvem com o transporte da droga por necessidades vivenciadas dentro da realidade socioeconômica em que estavam inseridas – frequentemente com um histórico de pobreza e de violência, em que são as únicas provedoras de seus lares; e até mesmo devido a conflitos civis e militares em seus países de origem.

Ainda que a participação da mulher na cadeia do tráfico seja subalterna, com ocupações de baixa remuneração onde elas são facilmente substituíveis, a pena imposta a ela não será diferente da de outras pessoas, geralmente homens, com participação mais ativa nas redes internacionais do tráfico. Nesse sentido, o Poder Judiciário acaba atuando também como um reprodutor da violência de gênero.

As mulheres presas também enfrentam uma série de empecilhos para o exercício do direito à maternidade e à convivência familiar. Ao longo de sua atuação, o ITTC defende a necessidade de criação de um local apropriado para acolher mulheres puérperas e mães com bebês e crianças pequenas, de acordo com o que define a Lei de Execuções Penais (LEP). Ao mesmo tempo, temos discutido intensamente sobre a possibilidade de desencarceramento dessas mães, com aplicação de medidas alternativas ao cárcere.

No estado de São Paulo, apesar dos inúmeros esforços e do trabalho de pressão política realizado por organizações como o ITTC e a Pastoral Carcerária, o atendimento às mulheres puérperas e a mães com bebês e crianças pequenas ainda é bastante inadequado. Como parte do trabalho com esta temática, o ITTC desenvolve oficinas de saúde com as mulheres do Pavilhão Materno Infantil, inaugurado na Penitenciaria Feminina da Capital (PFC), em 2014.

Além disso, outra preocupação circunda a questão da possibilidade de destituição do poder familiar. A prisão das mulheres aumenta a vulnerabilidade social de seus filhos, já que muitas vezes elas são as únicas provedoras do lar. Dados da Fundação Nacional de Assistências aos Presos (Funap) indicam que só 20% das crianças permanecem com os pais quando a mãe vai presa, enquanto 90% dos filhos e filhas de homens encarcerados ficam sob a guarda da mãe.

Quando os homens estão presos, geralmente eles sabem que os filhos estão com as mães e que, saindo do presídio, voltarão para sua família. As mulheres presas sabem que seus filhos não estão com os pais, podem estar com a família da mãe, amigas, vizinhas e até sob custódia do Estado. Este último é o caso mais comum entre as estrangeiras, em razão da falta de vínculos das mulheres com o Brasil e das dificuldades advindas da ausência de políticas migratórias e de abrigamento.

Com o decreto que instituiu a Resolução nº 110 do Conselho Nacional de Imigração (CNIg), houve um promissor avanço para o reconhecimento de direitos específicos às pessoas estrangeiras em conflito com a lei. A resolução autoriza a concessão de permanência provisória para quem cumpre pena no Brasil, mas deixa uma série de lacunas e questões que ainda dificultam o acesso das pessoas estrangeiras presas às políticas migratórias brasileiras.

Promover a autonomia, a igualdade e o empoderamento da mulher talvez seja o desafio principal a ser incorporado na discussão pública, pois todas as violações de direitos no sistema penitenciário decorrem das políticas de encarceramento em massa e da reprodução das desigualdades sociais, da violência e da exclusão no sistema de justiça. Diante deste cenário, o ITTC procura propor e defender a revisão de políticas que não estão funcionando, especialmente aquelas que possuem maiores impactos para o encarceramento feminino, como a política criminal de drogas. De maneira propositiva, acreditamos ser viável e desejável a promoção de políticas públicas que ofereçam soluções alternativas aos conflitos.

 

 

 

Ana Luiza Voltolini é jornalista e compõe a equipe de comunicação do ITTC.

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