Geni é uma revista virtual independente sobre gênero, sexualidade e temas afins. Ela é pensada e editada por um coletivo de jornalistas, acadêmicxs, pesquisadorxs, artistas e militantes. Geni nasce do compromisso com valores libertários e com a luta pela igualdade e pela diferença. ISSN 2358-2618

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Modos de produção do preconceito

As relações entre política, economia, gênero e sexualidade. Por Lia Urbini

Neste mês de março, nós da Geni estamos dando ênfase a assuntos que, por muitas pessoas, seriam caracterizados como “políticos”. Essa classificação possui uma história. Existem muitos motivos para que, ao falarmos de governo, sistema eleitoral ou participação popular nos assuntos coletivos, o rótulo “política” seja atribuído a esses debates. E outros tantos motivos para que, por vezes, a reflexão sobre gênero e sexualidade não seja incluída no campo da política, e sim associada ao foro íntimo, doméstico. Entender um pouco sobre o processo de autonomização e profissionalização do campo da politica que temos em curso hoje em dia, assim como suas consequências, talvez possa nos ajudar a compreender, e questionar, o distanciamento entre esses dois campos.

 

Há muitas formas de falar e de fazer política. Na edição de dezembro da Geni, Giovana Bonamin relacionou lindamente o pensamento sobre as palavras com magia e política. Interessou-me principalmente a forma de se preocupar com o discurso sem, no entanto, endossar a máxima nietzschiana do “não existem fatos, apenas interpretações”. A comparação entre política e feitiço, praticamente uma heresia para as cabeças técnicas ou crentes na evolução através de uma racionalidade estrita, também sublinha a potência da revanche de uma participação política densa contraposta à toada elitista e técnica da política institucional tal como esta vem se configurando.

 

Com o desejo de continuar por esse caminho aberto do pensar a política a partir de suas fronteiras, comento agora um pouco sobre o contato desta com a economia (que por algum tempo, inclusive, era chamada de economia política), e o que isso tem a ver com as questões de gênero e sexualidade.

 

 

Economia política e sua crítica

 

Em 1848, ano da Primavera dos Povos, momento de crise generalizada, Karl Marx escrevia, no Manifesto do Partido Comunista: “O governo do Estado moderno é apenas um comitê para gerir os negócios comuns de toda a burguesia”. A frase pode ser melhor compreendida se tivermos em mente que tipo de disputa de poder se configurava na época. Eram tempos de desconfiança em relação ao combo “igualdade jurídica e igualdade econômico-social”, que antes se acreditava possível, enquanto as revoluções burguesas ainda alargavam alguns limites da participação popular, tanto no processo de produção e consumo de mercadorias como no processo de decisões sobre outros assuntos coletivos. Nessa crise, ficou mais evidente que a burguesia já se colocava como uma nova classe dominante e, sendo assim, não promoveria os interesses dos trabalhadores. Pelo contrário, se oporia a eles. E, como uma importante estratégia de consolidação de poder, a nova classe necessitaria de uma nova ciência que a legitimasse.

 

O conjunto de conhecimentos que se debruçava sobre os aspectos da produção material da vida social dessa época, denominado economia política (hoje, economia política clássica), foi se transformando. A economia política clássica foi responsável pela formulação da ideia de valor-trabalho, que evidenciava o caráter parasitário da classe à qual a burguesia se opunha: a nobreza. Aos poucos, no entanto, a ideia de que o valor se produzia na esfera da produção começou a servir para a compreensão do processo de exploração operado pela própria burguesia em relação ao proletariado. O que se passou, então, foi a progressiva negação desse pressuposto pelo poder burguês no momento em que ele se consolida, via mercado e via Estado (duas faces da mesma moeda).

 

Elabora-se, a partir daí, a Economia, uma disciplina que privilegiará o estudo da distribuição, não mais o da produção, e que em grande parte acaba por legitimar e naturalizar a lógica do mercado. E, na contramão desta, desenvolve-se a crítica da economia política, realizada por Marx e outrxs intelectuais vinculadxs ao proletariado. Em relação a esse processo, e ao histórico da economia política, veja o excelente livro Economia política: uma introdução crítica, de José Paulo Netto e Marcelo Braz, no qual me baseei bastante para esta síntese.

 

Mesmo para quem não partilha da interpretação marxista, a associação entre concentração de renda e concentração de poder político é inegável. Com outro posicionamento, naturalizando essa situação, temos autores como Gregory Mankiw, da Universidade de Harvard (EUA), por exemplo. Autor de um manual de introdução à economia dos mais adotados mundialmente, define o objetivo da economia da seguinte maneira:

 

[Uma sociedade] precisa encontrar uma forma de decidir que tarefas serão executadas e por quem. Precisa de algumas pessoas para produzir alimentos, outras para fazer roupas e ainda outras para desenvolver programas de computador. Uma vez que a sociedade tiver alocado as pessoas (assim como terras, prédios e máquinas) para realizar diversas tarefas, deverá também alocar a produção de bens e serviços que as pessoas produzem. Deve decidir quem comerá caviar e quem comerá batatas. Deve decidir quem vai andar de Ferrari e quem vai andar de ônibus” (G. Mankiw, Princípios de microeconomia, 2010, p. 22).

 

Este e tantos outros exemplos nos permitem perceber que, ainda que o autor separe economia e política, ele não consegue ignorar o fato de que essa “administração” dos bens depende de escolhas “da sociedade” (ainda que colocada como um bloco homogêneo e sem distinção entre o poder de escolha das classes que a compõem). Implica deliberação, e esta afeta a vida social como um todo. Ou seja, independentemente da vertente interpretativa, o que se percebe é uma proximidade entre economia e política que não se dá por acaso.

 

lgbt política revista geni cecilia silveira

 

Moral, politica e economia

 

A tentativa de separação entre política e economia (operação contraintuitiva, mas deliberada) não é, portanto, apenas uma distinção didática e aleatória para que o mundo que experienciamos receba nomes, e as coisas sejam partilhadas a partir dos nomes que atribuímos a elas. É necessário, para a manutenção do status quo, que apostemos em uma instância decisória que não está controlada pelo poder econômico. Assim, podemos considerar possível, por exemplo, uma reforma política sem que esta venha acompanhada de transformações estruturais e superestruturais de outras ordens. Também podemos compreender a minirreforma eleitoral aprovada pelo poder executivo no fim de 2013, que alterou alguns critérios relativos ao financiamento e à publicidade das campanhas eleitorais, mas não colocou seriamente em questão a existência de conglomerados economicamente poderosos que influenciam diretamente, ainda que de maneira difusa, a escolha dos candidatos.

 

Sabemos que o machismo, o patriarcalismo e a homolesbotransfobia são problemas políticos, e não apenas de foro íntimo. Mas então, considerando as relações entre política e economia explicitadas acima, precisamos nos perguntar: esses problemas podem ser resolvidos sem a supressão do capitalismo?

 

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