Geni é uma revista virtual independente sobre gênero, sexualidade e temas afins. Ela é pensada e editada por um coletivo de jornalistas, acadêmicxs, pesquisadorxs, artistas e militantes. Geni nasce do compromisso com valores libertários e com a luta pela igualdade e pela diferença. ISSN 2358-2618

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Por causa da mulher

O que veio depois do “é uma menina”. Por Diego Garcia

Publicado em 09/03/2016

 

Sempre disse que queria ter um filho. Talvez por preguiça linguística, nunca me passou pela cabeça dizer “sempre quis ter um filho ou filha”, mesmo que o sexo, pensava, não fizesse diferença. Um dia, Clara me chamou no banheiro e mostrou o teste de gravidez. Chorei por 5 minutos, sentado na banheira, sustentando o teste à altura dos olhos.

 

A reação na primeira vez que senti o chute pela barriga de Clara também foi de choro. Houve outros momentos de emoção durante esse primeiro semestre de gravidez. As lágrimas sempre estiveram associadas a uma alegria confortável e cômoda. Vinham carregadas de imagens de um menino. E também nessas imagens, um pai sábio que teria um baú cheio de experiência de onde, quando necessário, tiraria a palavra certa, o comparativo adequado, para solucionar as dúvidas e angústias desse menino. E quando adolescente, eu com esse vasto conhecimento empírico do que é fazer merda entre os 15 e 20 anos, tiraria de letra as cabacisses desse meu rebento. Eu já teria tudo preparado. A vida já teria me ensinado.

 

Evidente que percebia que essa visão estava muito associada a uma idealização do que seria a minha conversão para pai. Muitas vezes tentava ser são, mas era só me distrair que já estava pensando sobre “o filho que eu quero ter”, como diz a canção.

 

Ultrassom com legenda

 

Creio que foi na 32º semana de gestação que fizemos um ultrassom e, sem que perguntássemos, a imagem borrada e em preto e branco veio com a legenda “é uma menina”. Não chorei. Lembro que larguei a mão de Clara e fiquei em silêncio. De soslaio, percebi que Clara olhava pra mim contente, como para compartilhar o momento. Fingi que não vi, e sinceramente, queria estar sozinho.

 

Não sei se foi essa desatenção com a língua, mas o “filho” que empregava no final da minha frase “quero ter um …” realmente me fez não levar em consideração gerar uma menina. E me surpreendeu o misto de sentimentos que começaram a habitar meu peito; amor doido, medo, euforia, agonia… me senti perdido. Me pus a analisar esses sentimentos e sua causa. A primeira coisa que me veio foi essa quebra de idealização furada que eu vinha moldando em ser um pai seguro, sábio. Aliás, a parentalidade, pra mim, se mostrou como um mundo obscuro e grave. Para um homem mediano como eu, foi um tapa na cara e um chute na consciência, era alguém dizendo “você ainda não aprendeu nada, garoto”.

E se esse mundo estranho e urgente que é ter um bebê em casa não me bastasse para aflorar todos os meus medos e expor meus limites, uma menina, meu deus!

 

Um dia estava no Uber conversando com o motorista e ele me disse que tinha uma filha de 4 anos. Disse que sempre foi um “jeca” e que antes da filha nascer já falava pra sua mulher que até ajudava na troca de fralda, mas banho não daria. A mulher se fazia de desentendida. Quando sua filha nasceu, não demorou muito e a esposa precisou que ele desse banho na bebê. O motorista me disse que achava um absurdo, mas devido a situação, foi banhar a filha, e nisso, se passaram 4 anos e até hoje ela toma banho com ele. Lembrei dessa conversa enquanto limpava minha filha. Era uma sensação estranha lidar com aquele corpinho no começo.
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Em uma festa com amigos de longa data, vi a filha de 15 anos de um grande amigo. Eu a tinha visto crescer, e naquele dia, de mini shorts e com os seios desenvolvidos, me sentia constrangido de direcionar meu olhar para ela. Primeiro pensei em como meu amigo lidava com isso, e depois, percebi que aquele mal-estar só vinha de mim.

 

Teresa

 

Sempre tentei ser razoável nesse aspecto, mas eu só tinha o mundo masculino heterossexual como referência formativa. Descobri que tinha algumas travas herdadas de um mundo machista. Agora com Teresa, me via ressignificando o corpo feminino. Aliás, essa ressignificação já vinha desde os primeiros momentos em que vi a barriga de Clara crescer.

Essa nova forma de olhar o corpo feminino somada a uma certa ignorância acerca das questões femininas me dava medo. Eu simplesmente não sabia (e não sei) como é a infância de uma menina, não sabia como era a adolescência de uma menina. Não sabia o que era essa relação de pai pra filha. Só conhecia a de pai pra filho.

 

Minha filha tem agora 07 meses e sinto que ainda tenho bastante tempo para pensar a paternidade. Há uma cultura toda dada e quase imposta que a colocará num lugar de cuidado em relação aos meninos. Como se ela estivesse fadada a ser ingênua e vítima. E eu, programado para sentir ciúme do primeiro namorado (isso porque a possibilidade de uma primeira namorada não existe nessa cultura que estou descrevendo), ser omisso em suas questões pessoais e ser apenas a figura do macho protetor e provedor. Essa cultura está do lado de fora da nossa casa. Aliás, quase não se vê em nossos círculos sociais, mas é só atravessar a rua que a cultura esta lá, forte e predominante, batendo panela.

 

Espero não ser omisso, espero dividir meus medos e defeitos com minha filha. Espero sempre lembrar do sentimento que me invadiu naquele dia em que soube que seria uma menina. Nunca me fez tanto sentido o que Gil disse: “Quem sabe, o super-homem venha nos restituir a glória mudando como um deus o curso da história por causa da mulher”. Teresa veio pra me lembrar que o mundo é preguiçoso e eu fazia parte dele. Me parece que para amá-la direitinho, vou ter que me mexer e mexer no mundo.  

 

Diego Garcia é videomaker e pai de Teresa. Tem o blog www.quandonasceumpai.com onde produz vídeos e textos sobre paternidade.

Ilustração: Bianca Muto

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