Geni é uma revista virtual independente sobre gênero, sexualidade e temas afins. Ela é pensada e editada por um coletivo de jornalistas, acadêmicxs, pesquisadorxs, artistas e militantes. Geni nasce do compromisso com valores libertários e com a luta pela igualdade e pela diferença. ISSN 2358-2618

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TUTTOMONDO | A virgem marica

Ave, marica, cheia desgraça, bendita é a vossa boca cheia, bendito o fruto da vossa condescendência, agora e na hora da vossa morte, amém. Por Marcos Visnadi


Um manto de látex azul, coração cravejado de rosas de plástico, e essa luz ofuscante que sai da cabeça detrás da cabeça, bondade e anonimato, olhando pra um ponto perdido entre a tomada que liga o fogão e o pano de prato pendurado, Santa Ceia pintada a quatro cores, manchas de molho de tomate.

 

“É novo o calendário?”

 

Os anos não entram na cozinha. Precisa de assunto pra que o assunto não apareça de repente e as pessoas se encontrem cravadas nele como a coroa de espinhos na testa aturdida do Senhor. “Deram semana passada na paróquia.” A vó pega o bolo de dentro do forno e repete três vezes, antes, durante e depois, negando sempre: “Fiz bolo”. É prudente, é a Providência, todo mundo come e se empapa de refrigerante, uma coceira no cu anuncia o silêncio, se esfrega na cadeira feito uma cadela, depois lambe os farelos. O cu, esse silêncio. As imagens de Cristo barulhentas. Corta pra 1990. Uma catedral invadida. Jesus usando camisinha. Corta pra 2015. Você quer mais um pedaço? Ave, marica, cheia desgraça, bendita é a vossa boca cheia, bendito o fruto da vossa condescendência, agora e na hora da vossa morte, amém.

 

Trinta e três anos e solteiro e funcionário público e entra no cinema onde não enxerga: homens de todas as idades, estados civis, profissões de fé. São também pais e filhos e avós. Há três amores. O dos azulejos, esse frio e azul-clarinho, família reunida ao redor de bichos mortos, tão eterno quanto o passado. O do escuro, pegajoso da sala de cinema, perigoso da rua madrugada, buraco no tempo e no corpo. E o das mucosas, moles vermelhas contagiosas. Tudo rimando medo e morte, esconderijo e implacabilidade. Santa marica, mãe de Deus.

 

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Depois se despedem, encontram-se de novo, perus e porcos e frangos, e casamentos batizados enterros, primeiro vem o da vó, o corpo encaixado entre jornais amassados revestidos de flores decepadas e o padre glorificando uma vida levada pelo temor e pela crença e abençoando a carne fria umedecida e trancada e aos trancos depositada num berço de cimento. O sangue estragado de Cristo escorre das paredes dos edifícios chove sobre as cidades. A Grande Puta se entrega ao Dragão. Sete bilhões de escorpiões correm atrás de cada um e picam e não matam. Os homens procurarão a morte e não a encontrarão; desejarão morrer, mas a morte fugirá deles. Com um oceano de sangue coagulado até a cintura, a virgem marica levará conforto a cada homem moribundo. E o mundo se abrirá em grande cu que acolhe. Derruída a vaidade das cozinhas esclarecidos os escuros mansas as mucosas, os dedos de Deus acariciarão enfim as nossas bordas. E assim se fará. Sobrevirá a tarde, e depois a manhã. E ele verá que isso será bom.

 

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Ilustração:  Bianca Muto.

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