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Rasgando a fantasia

Paula Costa bota a cara no sol e revela uma história de procuras, encontros e esperanças. Por Mariana Kinjo

 

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Foi muita batalha, desencontro, coincidência e sorte até que a Paula fosse realmente a Paula. Nas suas quase cinco décadas de vida, ela enfrentou muito preconceito – inclusive o pior deles, o dela mesma. Mas encontrou também muito apoio, carinho e amizade de pessoas inesperadas.

 

Embora esteja muito além das expectativas de vida de uma pessoa transgênera – que se estima ser de apenas 35 anos –, Paula ainda não é, de fato, uma idosa. Mas o que importa é que ela tem é muita coisa pra contar.

 

Sua história, incomum no imaginário da transexualidade, não é tão difícil de encontrar na vida, no fim das contas. Paula é uma pessoa que só assumiu ser uma mulher transexual após os 40 anos de idade, depois de ter construído uma família e uma carreira como outra pessoa, que, na verdade, “nem existe, foi pura fantasia”.

 

Atualmente, é corretora de imóveis e não gosta muito de aparecer – ela só quer levar uma vida comum. No entanto, quando convidada pra botar a cara na Geni, ela mostrou que, mesmo escondidinha no seu cafofo, sabe o valor da visibilidade: “Não gosto muito de aparecer. Só tô fazendo isso porque pode ajudar outras meninas como eu”.

 

 

O homem de bem – ou Antes de Paula – ou Um passado no masculino

 

Caçula com duas irmãs mais velhas, Paula aprendeu desde cedo a se esconder. Durante muito tempo na sua vida, a camuflagem foi seu refúgio. Primeiro na juventude, tentando não dar pinta. Depois, literalmente camuflada, servindo ao Exército. E, finalmente, construindo uma família nos moldes da tradição cristã.

 

Uma coisa que ressoa nessa parte de sua história é a repressão. Teve ditadura, teve Igreja Evangélica tradicional e teve o medo de si mesma. Foram duas tentativas de suicídio – felizmente malsucedidas. “Eu tentei besteira duas vezes”, diz a Paula. “Que bom que não deu certo”, é a nossa resposta. Há fracassos que vem para o bem, não é mesmo?

 

Toda a estrutura agressiva, preconceituosa e opressora da época se internalizou de maneira perversa na jovem Paula. Ela buscou, e conseguiu, ser um homem de família. Na vida profissional, foi servidor(a) do Tribunal Regional Federal, motorista de táxi e corretor(a) de imóveis. Soa estranho, ao mesmo tempo que absurdamente coerente, ouvi-la falando de si no masculino. A Paula estava ali, só que fingindo bem demais ser outra pessoa.

 

Foi nessa época de juventude, confusa com sua sexualidade e sua identidade, que Paula encontrou uma esperança na religião. Pra ela, pelo menos por algum tempo, e nas aparências, houve uma “cura gay” – por um preço bem alto, o de não viver sua vida de verdade.

 

Na luta por afirmar sua masculinidade, casou-se com uma moça da igreja que frequentava. Formaram uma família, adotando uma filha que hoje tem seus 17 anos. Pra quem olhava de longe, ou mesmo de perto, mas sem muita atenção, era um bom relacionamento: tinha companheirismo, amizade, respeito. Só que uma das pessoas, na verdade, tinha uma existência capenga.

 

 

Santo Orkut

 

O tempo passou e a Paula sofreu ali, calada. Até que um dia a revista Veja deu um empurrão na sua vida. Isso mesmo, gente, a Veja. Com a mania de ler tudo que aparece na sua frente, Paula chegou a uma reportagem da tal da revista que contava o casamento de duas moças.

 

Foi um clique! Tanto que ela caiu na busca do Orkut, santo e finado Orkut, atrás das moças que se casaram. E não é que as encontrou? Foi aí que a Paula, por meio desse casal, chegou a grupos que a ajudaram a se aceitar: a Igreja da Comunidade Metropolitana e os clubes de crossdressers (o mais famoso é o Brazilian Crossdresser Club).

 

Paula sempre foi e ainda é religiosa, então seu encontro com a ICM foi amor à primeira vista. Só que o mesmo não aconteceu com sua esposa, que, na época, se sentia um tanto quanto desconfortável, até porque passar de uma igreja homofóbica pra uma LGBT-friendly é um baita de um salto. O apego à família falou mais forte, e Paula congelou seu laço com a ICM.

 

Passou, porém, a frequentar os grupos de crossdressers e, pouco a pouco, foi ganhando a confiança de sua esposa. De repente, a Paula começou a aparecer como uma espécie de fantasia. Mas é claro que não era o suficiente. A Paula não era fantasia: era ela que existia, ocultada pela figura de um homem.

 

Paula fala com carinho de sua experiência como crossdresser e diz que lembra de muitas pessoas que, como ela, usavam o mecanismo do crossdressing como uma válvula de escape da transexualidade. A cartunista Laerte Coutinho, que ela aliás conheceu nesses grupos, é o exemplo mais famoso disso.

 

Por outro lado, homens cis héteros casados estavam ali se realizando completamente pelo crossdressing. Como ironia, ou só como uma boa peça do destino, Paula e sua esposa serviram de modelo pra outros casais heterossexuais que frequentavam os mesmos espaços.

 

 

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“Finalmente sendo eu mesma”

 

O fato é que o mundo crossdresser foi só o trampolim pra que a Paula realmente surgisse. Chegou um ponto em que o casamento não resistiu mais. Isso que não significa, porém, que a família deixou de existir. Paula ainda mantém uma relação amigável com sua ex-esposa e tem todo o apoio de sua filha adolescente quase adulta (QUASE, antes que achem que redução da maioridade penal é algo razoável).

 

É claro que a mudança não foi imediata. Durante dois longos e intermináveis anos, ela continuou trabalhando como corretor de imóveis, fantasiada de homem. Nos eventos sociais e na ICM, que passou a frequentar com sua verdadeira identidade, ela já era a Paula. Mas no trabalho não.

 

E de novo não foi suficiente. Paula chegou a tentar ganhar a vida como costureira, só que não deu certo. Nesse vai-não-vai, decidiu arriscar e se assumir para suas chefes imediatas na corretagem de imóveis. Era tudo ou nada. Era a Paula ou adeus.

 

Com uma certa dificuldade e muita preocupação, as chefes conseguiram uma maneira de inserir no ambiente de trabalho a Paula sem fantasias. Combinaram tudo pra uma segunda-feira, mas amarelaram. De última hora, as chefes ficaram com medo e foram cancelar o combinado. Só que a Paula, com problemas no celular, não ficou sabendo.

 

De novo, a sorte agiu em favor da nossa heroína. Escapadas da morte, revista Veja, Orkut e agora a falha do Whatsapp atuando em favor da Paula. Ela não viu as mensagens das chefes e apareceu como Paula no trabalho. E deu tudo certo. “Numa escala de zero a dez, foi nota mil!.” Podia ser algo mirabolante, mas foi fácil e ela se alegra com isso. Nós também.

 

 

Presente e futuro – governo e políticas públicas

 

Paula talvez se ressinta um pouco de não ter assumido sua verdadeira identidade antes, mas sabe que as condições de hoje, mesmo que ainda difíceis, são mais favoráveis que as de sua juventude. Hoje em dia, ela vive numa grande euforia de ser ela mesma, de ter o apoio de sua filha e de conseguir engatar sua carreira profissional nessa nova fase, real e sem fantasias.

 

Ela tem esperanças, mas também tem demandas de políticas públicas. Pra ela, a saúde é algo que precisa melhorar muito – e não só, mas principalmente pras pessoas transgêneras. Logo que Paula aceitou ser a Paula, ela se inscreveu no Centro de Referência e Treinamento em DST/Aids do estado de São Paulo, mas por causa do trabalho, não conseguiu comparecer. Aqui vale um parentêse pra dizer que este é o único Ambulatório de Travestis e Transexuais do estado e um dos poucos que existem no país inteiro, então imaginem a enormidade da demanda… Embora seja um assunto que não caiba nesta matéria, é sempre bom lembrar das dificuldades que as pessoas transgêneras enfrentam em relação ao atendimento na área da saúde, como o reduzido número de hospitais brasileiros que realizam a cirurgia de redesignação sexual.

 

Apesar dessas dificuldades, ela é uma pessoa muito confiante. Cristã, se decepciona com a posição da bancada evangélica no Congresso Nacional: “Isso não é democracia, impor a sua visão pra todos”. O ponto é que ela, como cristã, se sente ofendida pela maneira como manipulam aquilo em que ela e tantas outras cidadãs, cis e trans, acreditam.

 

Afinal, a Igreja é uma de suas redes de apoio. Assumir a transexualidade não teria sido possível sem o encontro com histórias semelhantes que foram, em alguma medida, alterando sua trajetória de vida, para um caminho melhor. E foi por isso que ela aceitou contar sua história e nos receber tão alegremente em sua casa. Obrigada, Paula!

 

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Ilustração: Aline Sodré.

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