Geni é uma revista virtual independente sobre gênero, sexualidade e temas afins. Ela é pensada e editada por um coletivo de jornalistas, acadêmicxs, pesquisadorxs, artistas e militantes. Geni nasce do compromisso com valores libertários e com a luta pela igualdade e pela diferença. ISSN 2358-2618

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Periferia Trans

Meu corpo é político! Por Bruno César Lopes

 

 

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A primeira edição do projeto Periferia Trans aconteceu durante todo o mês de março de 2015 no bairro do Grajaú e do Capão Redondo, em São Paulo. O projeto que teve apoio do PROAC LGBT, contou com uma programação artística especial voltada aos temas LGBT com apresentações de teatro, dança, shows, performances, debates e oficina.

Em parceria com a Cia Humbalada de Teatro, o projeto utilizou o Galpão Humbalada, próximo ao Terminal Grajaú. Alguns dos artistas participantes foram Luana Hansen, Cia. Os Crespos, Coletive Friccional, Paula Beatriz de Souza, Kleber Lourenço, Alex Leandro, Shanawaara, Núcleo Divinas Tetas, Robson Ferraz, entre outros.

 

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Após o término de todo o festival, ficam as perguntas: como de fato popularizar a luta LGBT? Como inserir na discussão de gênero e sexualidade a questão geográfica da cidade? Qual o papel da arte enquanto propulsão estética e ética de questões LGBT? O que significa pensar uma periferia trans?

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Em seu livro História da sexualidade I: a vontade de saber, Michel Foucault nos revela que tudo aquilo que é considerado um “segredo social” contém em si uma relação de poder envolvida. Isso significa que pensar os temas da sexualidade é, por consequência, pesquisar as relações de poder que permeiam o que entendemos hoje como sexo.

Nesse sentido, pensar um projeto que discuta a sexualidade e o corpo na periferia é uma das estratégias para retirar um véu espesso sobre nossos próprios olhos. Ao longo de toda nossa trajetória de luta na periferia, sempre sentimos falta da discussão LGBT em nossos bairros. Precisávamos, e ainda precisamos, partir rumo ao centro, pegar o buzão e o trem para, em algum espaço central, discutir o que nossos corpos vivenciam nas bordas da cidade. A intenção primeira do Periferia Trans era proporcionar um espaço de diálogo, discussão, e também de vivência LGBT no próprio bairro onde moramos. Problematizar e refletir o que seria ser gay, lésbica, bissexual, transexual, travesti ou transgênero em nossa periferia.

Por essa perspectiva, entendemos e utilizamos o termo “Trans” não apenas como uma relação à transexualidade, mas, sobretudo, na busca por um conceito trans. Uma atitude trans. Uma visão de mundo trans. Trans no sentido da transgressão; daquilo que não está nem ali e nem acolá não por falta de escolha mas por um desejo súbito de não ser mais o que as leis do normal regulam; de transitoriedade; de corpos em transbordamento; da potência do não-lugar. De entender uma periferia que pudesse se olhar de maneira trans, de maneira híbrida, em que o corpo desnormatizado pudesse não apenas ser “aceito” mas estar em estado de convivência, o corpo do outro em relação com o meu de forma verdadeiramente intensa. Encontrar no corpo do outro um pouco de mim… Pensar uma periferia trans iria por esse caminho…

 

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Talvez possamos encontrar nesse conceito as ideias queers de Judith Butler e Beatriz Preciado, no entendimento de que o corpo é “um texto socialmente construído, um arquivo orgânico da história da humanidade como história da produção-reprodução sexual” e que, portanto, poderíamos romper com a normatização imposta por uma hegemonia heterocentrada ao propor atitudes e performatividades queers. Seria possível pensar uma Periferia Queer?

Nesse viés, o tema da primeira edição foi “Meu corpo é político”. Com o intuito de – em primeira instância – entender, como Foucault nos revela, que vivemos em tempos de biopolítica, e que portanto a maneira como meu corpo se coloca na sociedade é reflexo de uma série de dispositivos de poder que incidem nele: então, buscar ser “alguma coisa” nos dias atuais já é político pra caramba! Em segunda instância, fazer do corpo uma busca, como Preciado diz, de identificar seus espaços errôneos, suas falhas e de reforçar “o poder dos desvios e derivações com relação ao sistema heterocentrado”.

No fim, tivemos um festival recheado de uma programação que buscou explodir qualquer possibilidade de normatizar a discussão. Espetáculos com casa cheia, performances em frente ao Terminal Grajaú, peças que utilizaram a rua como linguagem, um show de uma cantora que não nos interessava muito saber se era “homem” ou “mulher” ou as duas coisas ao mesmo tempo, e uma festa de encerramento que possibilitou que os corpos pudessem se sexualizar do jeito que bem entendessem, fazendo, como escreve Rico Dalasam, do fervo um protesto.

Mas ainda assim, mesmo em meio a comemorações, ainda fica a angústia: como de fato podemos continuar popularizando essas questões? Afinal de contas, a Andreia do hot dog não tem a menor ideia de quem seja Judith Butler, Foucault e nunca vai entender direito porque a Beatriz agora é o Beatriz. Não sabe, não porque lhe falte inteligência, mas porque o que lhe é urgente agora é colocar seus filhos na escola e conseguir uma vaga no hospital para sua sobrinha. Como fazer com que as Andreias comecem a entender que sexualidade e gênero são assuntos tão públicos quanto qualquer outro? E sem fazer dessa busca uma luta messiânica ou catequizadora na periferia. Não somos salvadores de nada e muito menos estamos aqui para explicar alguma coisa. Não somos explicadores.

Nesse sentido, o Periferia Trans acredita na potência da experiência estética como possibilidade de criação de novas subjetividades. A arte pra nós não é apenas uma ferramenta “pedagogizante” de interesses nossos, mas é por si só uma potência de transformação do sujeito que aceita a dialética como construção de pensamento.

Ainda acreditamos na arte. Em tempos de capitalismo conexionista, como coloca Peter Pal Pelbart, em que nossa subjetividade já está completamente cooptada pelo sistema, a arte não seria (ou deveria ser) uma ruptura, uma fenda ou uma dinamite desestruturante?

 

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Ao mesmo tempo, e fazendo uma autocrítica, “falar tanto de sexo (e aqui incluo corpo e gênero), organizar tantos dispositivos insistentes para fazer falar dele, mas sob estritas condições, não é a prova de que ele permanece secreto e que se procura, sobretudo, mantê-lo assim?” (Foucault). Ou seja, a manutenção de políticas públicas LGBT e projetos de discussão de sexualidade contribuem em que medida para que a discussão seja de fato ampliada e rompa com as tecnologias de controle? Estamos jogando o jogo de quem ao construir com o próprio dinheiro do Estado uma política sexual ou LGBT? O que significaria para a luta LGBT um “aceite” do Estado? Talvez o caso não seja criar políticas para “falar sobre sexo” ou diversidade sexual, mas desconstruir a ideia estabelecida que temos dele, ou ainda, propor uma contrassexualidade como levanta Preciado. (Se isso vai partir do Estado ou da população, ou dos dois, aí eu já não sei!)

O fato é que estamos todos na busca por uma existência plena. Se é que isso é possível. Em uma de suas palestras, a cartunista Laerte diz algo como: “o cara que sente ódio ou que quer matar não se importa muito se o outro é lésbica, gay, ou qualquer outra letra da sigla LGBT, sendo diferente do ‘normal’ ele quer matar!”. Nos parece que a luta deve caminhar um pouco na desconstrução desse ódio, na luta da vida como um direito. Na criação de estratégias, projetos e ações que caminhem no sentido da existência do corpo-outro como um direito constitucional.

Por fim, em meio a esse terreno lamacento de questões, continuemos na luta e na busca por uma periferia que possa olhar para si, se perguntar, se afirmar e, em alguma medida, agir.

Viva o Grajaú. Viva a luta LGBT. E viva todas as nossas insistentes tentativas de fazer com que a discussão não acabe nunca!

 

 

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Bruno César Lopes é ator e criador do projeto Periferia Trans no Grajaú. Há dez anos é integrante da Cia Humbalada de Teatro que atua no extremo da zona sul, local onde todos os integrantes moram. Cursa o mestrado na UNESP pesquisando o que denomina de “pedagogia marginal” e é coordenador pedagógico do PIA – Programa de Iniciação Artística com crianças da Prefeitura de São Paulo.

Fotografias: Paulo Henrique Sant’Anna

 

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