Geni é uma revista virtual independente sobre gênero, sexualidade e temas afins. Ela é pensada e editada por um coletivo de jornalistas, acadêmicxs, pesquisadorxs, artistas e militantes. Geni nasce do compromisso com valores libertários e com a luta pela igualdade e pela diferença. ISSN 2358-2618

entrevista

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Ser e envelhecer travesti

Ninguém mostrou nada, Thais Azevedo é que foi descobrindo. Por Carolina Menegatti, Cecília Rosas, Gui Mohallem e Mariana Kinjo

 

Na rua Major Sertório, no centro de São Paulo, ao lado do (trambolho do) Minhocão está o CRD – Centro de Referência e Defesa da Diversidade, um espaço de acolhimento para a população LGBT. Ali, Thais Azevedo trabalha como monitora socioeducativa – cargo que ela mesma é meio reticente em definir: “Deve ser uma pessoa que orienta as outras ou qualquer coisa assim”.

 

Nascida em 1949 no interior de Minas, em 1964 Thais saiu para o mundo no susto. As coisas foram acontecendo e ela de repente se viu na rua. Adolescente no Rio de Janeiro, se encantou com os bofes de Ipanema, trabalhou em uma loja de roupas, fez faxina na zona e, de close em close, foi forjando sua imagem e seus modelos em um mundo hostil à pluralidade. E assim completa agora 65 anos, algo bastante raro na população trans.

 

Com um discurso caudaloso e reflexivo – e a sabedoria de quem já viveu de um tudo –, Thais falou com Geni sobre o que foi e o que é ser travesti nesses 65 anos: a violência policial, a aids, a luta por direitos e a busca por respostas a suas questões pessoais. No meio de tudo isso, falou com orgulho sobre o que é ser uma referência e orientar as meninas mais novas. E garante que a vida não tem receita: “a gente vai descobrindo, ninguém mostra nada, não. Só a sociedade arrumadinha, sobretudo os heterossexuais, é que imagina que é tudo arrumado”.

 

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Onde você nasceu?

 

Em Várzea da Palma (MG).

 

 

Há quanto tempo você saiu de lá?

 

Ai… Eu nasci em 1949, saí de Minas em 1964, por aí. A ditadura estava nascendo e eu florescendo na minha adolescência.

 

 

Aí você veio pra São Paulo direto?

 

Não, eu fui pro Rio de Janeiro primeiro. Fui estudar, [morar] na casa de uma tia, mas aí degringolou, né [risos].

 

 

É muito diferente, né, uma cidade pequenininha e o Rio de Janeiro…

 

É, mas você sabe que eu fui pro mundo e não vi diferença em nada? Tudo pra mim sempre foi tão natural.

 

Costumo achar engraçadas as pessoas que não acham as coisas naturais. Elas têm problema com a travesti. Eu não tenho problema comigo, a sociedade é que tem problema comigo. O universo heterossexual é muito limitado, na questão de diversidade, de universo, de mundo. E da pluralidade da vida. Das necessidades, desejos, expressões. Homem e mulher fazem filho, e o resto faz a beleza do mundo [risos]. Não é? Eu penso assim.

 

 

A gente também, por isso estamos aqui.

 

Vocês são heterossexuais?

 

 

Cecília: Eu sou bissexual.

 

Eu tenho inveja de vocês, bissexuais, têm muito mais opção. Eu já tive relação com um homem e uma mulher, mas nunca tive relação com uma mulher. Quer dizer, já tive relação com mulher, mas foi situação, não foi opção. Mas eu acho que é superconfortável você poder desejar os dois sexos.

 

 

Carol: Eu estou me descobrindo bissexual.

 

Mari: Estou meio que nem a Carol.

 

Mas não pode ser modismo. A questão sexual é algo muito sério. Porque se você não está bem sexualmente, o resto não está bem.

 

 

Gui: Eu sou gay desde pequenininho, desde os seis anos.

 

Eu acho que não saber o que se quer é muito doloroso. Principalmente sexualmente. Eu preciso estar bem sexualmente pro resto funcionar.

 

 

E você?

 

Não sei.

 

 

Você pode não saber, então.

 

As pessoas se confundem tanto que elas acabam confundindo a gente. Eu, na verdade, sou homossexual. Eu seria homossexual. Mas eu não gosto. Na verdade, não sou mulher nem homem. Eu procuro uma resposta pra mim, mas não achei ainda. Eu acho ser homem ou ser mulher muito limitado, entendeu? Por que eu tenho que ser homem ou ser mulher? Eu não acho uma resposta pra isso. E olha que eu busco resposta pra tudo. Acho que não dou muita importância pra essa resposta.

 

Eu faço um bom uso do meu corpo, enquanto cidadã social, do meu cérebro. Faço um bom uso do meu corpo enquanto sexo. Eu acho que os meus parceiros também gostam muito, porque eles estão sempre à minha volta há muitos anos. Eu não gosto de nada que me lembre homem e/ou mulher, família instituída. Eu acho que são obrigações que a sociedade gera sem se questionar, porque alguém que gera essas coisas tem algum proveito. E a gente se deixa manipular muito facilmente. Eu vou em busca das minhas perguntas.

 

Estou com 65 anos e ainda não consegui responder pra você o que que eu sou. Porque ser homem ou ser mulher é muito pequeno pra mim, é muito estreito. Porque eu, como ser, preciso de mais pra me expressar. Eu preciso de mais do que homem ou mulher.

 

 

Você acha que hoje em dia tem um pouco mais de flexibilidade entre as categorias homem e mulher?

 

Sim, tanto é que vocês duas ficaram vagas na resposta sobre a sexualidade de vocês. Sabe por que que eu fiz essa pergunta? É porque as pessoas agora estão indecisas na resposta da sua sexualidade. E isso é muito bom. É porque essas pessoas estão pensando em sexo e em sexualidade. A gente continua tendo tesão, graças a Deus, mas começa a se perguntar o que é melhor. E isso é muito bom, porque quando você começa a perguntar o que é melhor, vai descobrir o que é melhor pra você. E você vai fazer sexo com consciência. Não é como antigamente, que o sexo levava a gente pra vida, como os animais.

 

Eu sou um ser e quero me expressar de maneira que eu me sinta confortável e feliz. De repente é como mulher, de repente é como homem. Mas, pra ter uma relação sexual, eu preciso de muito mais que o meu órgão, eu preciso do meu cérebro. É seu cérebro que faz seu pau ficar duro, é seu cérebro que faz seu clítoris… não é? É o cérebro que gera tudo. É ele que vai te levar ao universo que é o teu corpo. Aí você vai entender porque as cobras ficam 6 horas fazendo sexo uma com a outra. Depois a gente “racional” acha que é muito inteligente. Eu fico olhando todas essas coisas pra ver onde eu estou situada neste planeta. Aí vem a resposta sem resposta: o que que eu sou? Eu sou uma coisa curiosa. Eu descubro meu corpo todo dia. Eu descubro formas de prazer solitárias. É porque você precisa conhecer o próprio corpo, pra depois ajudar o parceiro a te conhecer sexualmente. Conhecer o corpo: questão de saúde, questão mental. Todo ser que está bem mentalmente está muito mais perto do bem espiritual.

 

 

Você vê diferença entre como era antes e como é agora? Assim…

 

[Interrompendo] Ah, querida, o ontem não foi igual ao hoje. Há uma diferença, sim. Pra você ter uma ideia, em 1980, quando começou a brotar essa travesti moderna, paramentada, hormonizada, siliconizada, ela estava começando a sair do armário. Ela não existia. Ela se montava e aparecia numas vielas e nos becos à noite pra se prostituir. De dia, ela não existia, ela não saía na rua. Caso fosse pega na rua de dia, ela ia pra cadeia por três meses, sem porquê, só por ser viado.

 

Porque as meninas não tinham essa aparência totalmente feminina que hoje a gente pode ter por causa da tecnologia, essas coisas. Ali não, era peruca na cabeça. E, na cadeia, a primeira coisa que faziam era raspar a cabeça, então não tinha cabelo, tinha que ter peruca. Era muita maquiagem, muita coisa, quase como drag queen. Tinha a visão de uma mulher perua, muito espalhafatosa. E tomava hormônio, o peito aparecia, você adquiria características mais femininas. Isso nos anos 80.

 

Na sociedade era um “ai, que que é isso?!”, levavam as travestis pras festas, elas ainda eram meninas que eram maquiadoras, cabeleireiras. E no submundo. Depois é que surgiram as lutas pela liberdade. A polícia começou a ficar em cima, as famílias foram começando a reclamar. Os anos 90 foram um período difícil, e mesmo no começo do terceiro milênio ainda tem muito problema com a polícia. A travesti, a transexual, está se libertando desses grilhões. Agora ela está começando a ser reconhecida como ser – não é nem como cidadã, é como ser. [Um ser] estranho, mas ela está sendo vista e discutida agora. A prova são vocês me entrevistando.

 

 

 

 

Você falou que, nos anos 60, 70, as travestis eram presas e a polícia raspava os cabelos delas.

 

Elas eram presas. São presas até hoje, não? Não com a violência que era, mas ainda são presas. Antigamente, as travestis eram presas porque elas existiam. A polícia vinha e corria atrás como se você fosse o pior bandido. Pegava todo mundo que pudesse ser travesti e levava pra cadeia.

 

 

Já pegaram você? Você sofreu algum tipo de abuso policial?

 

Claro. Todo mundo aqui sofria. Por aqui tinha as boates. Sabe o que a polícia fazia? Encostava o camburão com o fundo aberto, a gente ia saindo [da boate] e eles iam jogando a gente dentro. Nem te perguntavam se você tinha documento ou não, se você trabalhava ou não. Você não era gente, você era viado.

 

As profissionais do sexo eram caçadas todos os dias. Todos os dias não, todas as noites, porque quando elas botavam a cara pra fora era à noite. E, nos anos 80 ainda, anos 90, os policiais ficavam com uns cachorros enormes e botavam os cachorros em cima das meninas, em cima da gente. Eu vi esse universo todo.

 

Quando eu me travesti, foi porque eu me sentia desconfortável nessa mentira toda que é a sociedade, essa questão “homem, mulher”. Os homens são hipócritas, as mulheres mais ainda. A mulher agora que se libertou. O marido comia a empregada, a mulher fingia que não percebia. Essa submissão, essa coisa toda, isso era muito desconfortável pra mim. Eu não queria representar esses seres. Eu não quero representar essas mentiras. Acho que a gente precisa de verdades pra ser feliz. E as pessoas precisam aprender a, no mínimo, aceitar a verdade do outro.

 

Quando eu me travesti, foi porque eu me sentia desconfortável nessa mentira toda que é a sociedade, essa questão “homem, mulher”. Os homens são hipócritas, as mulheres mais ainda. A mulher agora que se libertou. O marido comia a empregada, a mulher fingia que não percebia. Essa submissão, essa coisa toda, isso era muito desconfortável pra mim. Eu não queria representar esses seres. Eu não quero representar essas mentiras. Acho que a gente precisa de verdades pra ser feliz. E as pessoas precisam aprender a, no mínimo, aceitar a verdade do outro.

 

 

Você foi entrevistada pelo Pedro Sammarco para o livro dele sobre o envelhecimento de travestis. Como você encara essa ideia de ser reconhecida como uma travesti mais velha, levando em conta o problema da expectativa de vida das travestis?

 

É assim, quando você olha a questão social, questão de doença, de vulnerabilidade a que a transexual é exposta, eu agradeço muito, porque eu sou uma referência. Eu estou entre as pouquíssimas travestis que chegaram à minha idade, e é muito triste pro ser humano constatar isso, que algumas pessoas não podem viver como as outras e sucumbem, porque a vida delas é tão precária, e essa precariedade foi gerada pela intolerância, pela ignorância. O homem não é tão fabuloso quanto ele pretende, porque ele cerceia a liberdade e paralisa, e esse segmento da sociedade sucumbe antes de formar uma vida.

 

É impossível viver na miséria. Não estou falando só de miséria material, mas de miséria moral, espiritual… Uma miséria de todo tipo de informação e conhecimento. Eu vou me embrutecendo de maneira tal que preciso colocar silicone no meu corpo, preciso me transformar, porque isso é o meu material de trabalho para sobreviver. E o homem, a sociedade se serve disso. Não tem o mínimo de respeito por mim. Toda noite em que eu boto meu salto e minha minissaia, eu não sei se vou voltar.

 

Hoje você pode falar com sua amiguinha lá no Japão, olhando na cara dela. O homem é capaz de engendrar uma máquina dessas [aponta para uma câmera] e não é capaz de [resolver] pequenas questões como esta: por que nós estamos gerando essa violência?

 

 

O que você acha?

 

Eu acho que é porque o homem ainda não cresceu como ele acha que cresceu. Nós não somos máquinas, somos células muito mais interligadas ao todo do que a gente imagina e para pra refletir. Talvez quem vá mostrar isso seja a física quântica. Esse espaço que nós percebemos entre nós é bem mais mentiroso do que a gente pensa, essa distância que a gente imagina que há entre nós, essa diferença que a gente imagina que há entre nós é inexistente. Nós somos o todo, uma massa de energia.

 

Isso é o homem do futuro, não este troglodita de agora. Nós ainda somos trogloditas, nós ainda matamos o outro por muito pouco e ninguém se questiona ou, se se questiona, não busca a resposta. Eu busco a resposta! Hoje a gente observa esses fundamentalistas… Eu não vou muito pra esse universo, mas eu vejo as coisas. Eles fazem uma verdadeira propaganda contra o universo LGBT, que está gerando uma violência muito grande em nome de Deus. Eu não sei que Deus é esse. Todo Deus que eu conheci até hoje na história é um sanguinário, ele é imposto: “Ou você reza como eu rezo ou eu te mato”. Você vai pra fogueira, pra guilhotina, é fuzilado, é tudo, porque ainda acontecem essas coisas no nosso planeta e tudo em nome da religião.

 

Quando eu estou num país como o Brasil, que esteve 20, 25 anos na ditadura, nós [ainda] estamos saindo disso, e eu começo a escutar pessoas fazendo passeata porque não estão felizes com determinado presidente e que pedem a ditadura de volta, isso é uma prova de alienação tão grande… O que a gente fez nestes anos todos, além de fazer mais gente?

 

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Conta um pouco sobre o que vocês fazem aqui no CRD.

 

Nós fazemos assim… Eu não sou funcionária do governo, sou funcionária da ONG, que se chama Grupo pela Vidda. É uma organização que trabalha há 25 anos com isso. É bem sofrido o trabalho, porque eles começaram a levantar bandeira sobre as questões do HIV. Então esse pessoal que trabalha no Grupo pela Vidda sabe tudo sobre HIV. O Eduardo [Luiz Barbosa], por exemplo, é o nosso coordenador e ele é um dos diretores do Centro de Referência e Treinamento em DST/AIDS, que é o CRT. Ele trabalha lá e trabalha aqui com a nossa questão.

 

O Grupo pela Vidda trabalhou esses anos todos na luta em defesa dos direitos da pessoa que é soropositiva. Há sete anos eles fundaram aqui e eu estou desde a fundação. Trabalhei a princípio como recepcionista, porque eles precisam de alguém que recepcione as situações, e depois eu fiquei como o que a gente chama de monitora socioeducativa. Não me pergunte o que significa isso, mas deve ser uma pessoa que orienta as outras ou qualquer coisa assim.

 

É um projeto iniciado pela [ex-prefeita] Marta Suplicy junto com a União Europeia, a França mais propriamente, porque eles fizeram um contrato de um ano com um grupo da prefeitura de São Paulo que se chamava Nós do Centro. Quando acabou o contrato com a França, a prefeitura continuou, então nós temos uma parceria com a prefeitura. Trabalhamos oferecendo psicólogos, temos dois deles; duas assistentes sociais; nós, que somos monitores, somos quatro, trabalhamos interagindo com esse pessoal; e tem a equipe técnica, que é pessoal que trabalha em serviço de cozinha, pra que a gente faça um lanche para os estudantes, porque nós oferecemos cursos de ioga, maquiagem, cabeleireiro, DJ, teatro… Nós temos uma advogada que orienta de segunda, quarta e sexta. Ela faz um trabalho em equipe junto comigo, o Espaço Cidadão, em que a gente vai orientando as pessoas nessas questões de como se defender, como buscar seus direitos. A gente está fazendo esse serviço social com as pessoas que são extremamente marginalizadas, principalmente no universo LGBTT, os rapazes, mulheres e transexuais profissionais do sexo.

 

Eu agora estou deixando de falar em travesti e transexual, porque o ideal é que fique uma coisa ou outra. Já é coisa demais isso de dizer “eu sou homem, sou mulher, sou travesti, sou gay…”, as pessoas sentem uma necessidade inútil de explicações que nem caberiam, se você quer saber… Quando vocês começam a conversar comigo, não acham que essa ideia de travesti cai um pouco por terra? Não ficam outras coisas a ver, a saber e a indagar? Eu acho… Daí você vai vendo a banalidade dessas questões. O que eu sou? Senhora? Senhor?

 

 

Mas tem gente que defende que essas separações existem justamente para demandas de política pública, para a luta de direitos…

 

Mas aí a política pública vai fazer alguma coisa para a travesti e outra para a transexual? O que é travesti e o que é transexual?

 

 

Você não acha que tem também um conteúdo político em se dizer travesti? Que significa que você está assumindo para si uma identidade que foi vista…

 

[Interrompendo] Não necessariamente. Eu não nasci travesti. Talvez eu tenha tido vontade de virar travesti, de botar saia, essas coisas todas, mas então eu sou transexual e não travesti. E eu tive vontade de botar roupa de mulher com quatro anos de idade. Não me pergunte porquê. Eu também nunca me perguntei, nunca me interessei. É que eu acho bonito, eu gosto. Mas eu tinha uma visão política e social sobre isso? Às vezes é assim.

 

Eu gosto de ter relações sexuais com a pessoa do mesmo sexo que eu e tenho atitudes que me denunciam. Aí, meus pais não gostam, me rejeitam. Eu tenho 13, 14 anos, e vou pra rua. Lá, encontro meninos que podem ser meninas ou podem vir a se transformar em meninas, como eu. E a gente precisa sobreviver na noite e descobre que existem pessoas que pagam pra ter relações sexuais. Será que é a relação sexual que eu gostaria de ter ou é um meio de sobrevivência? E quando eu me transformo em travesti para sobreviver, eu estou tendo uma conotação política? Estou tendo direitos de me afirmar como tal? Você entende como é tudo muito delicado?

 

Agora, para a sociedade heterossexual binária é muito confortável, não é? Mas para eu criar políticas, querida, fica muito difícil, porque a travesti, ainda que o prefeito [Fernando Haddad] esteja fazendo um trabalho social bonito, botando as meninas para fazer o ensino fundamental, isso não vai te levar a lugar nenhum, porque você precisa se qualificar profissionalmente. Eu cresci em pé numa esquina, vendo o lado negro da vida. Então, como vai ser minha conduta diante de uma empresa que queira pegar o meu serviço? Tem gente preparada pra qualificar essas pessoas? A nossa rede, nosso serviço social é limitado quanto a essas relações. Nós, do Centro de Referência em Defesa da Diversidade, por exemplo, vamos à rede social sensibilizar os profissionais no tocante a essas questões. Como elas devem ser tratadas, como devem se relacionar com a transexual? Porque é um universo desconhecido.

 

 

Teve um momento na sua vida em que você sentiu a necessidade de se politizar?

 

Eu sempre fui politizada, pelo seguinte: eu acredito muito em ser, em espírito, em eternidade. Não fui uma pessoa muito conduzida por energias extras — isso pode assustar um pouco, mas que existe, existe. Eu sempre tive uma necessidade de me descobrir, de me desvendar, porque eu sabia que o meu irmão, que era um ano mais novo que eu, e o outro, que era um ano mais velho, tinham os desejos que eu não tinha. Mas em nenhum momento eu me senti aberrante. Eu imediatamente detectei que era diferente deles no quesito organização de desejos sexuais. E eu fui buscar.

 

Eu sou de uma geração em que não se falava de sexo. Então, onde que eu poderia buscar isso? Nos livros. Comecei a ler sobre urologia, ginecologia, hormônios e todas essas coisas, porque primeiro eu busquei respostas físicas — a única referência que eu escutava era essa: se fosse doença, tinha cura. Eu não queria me admitir enquanto pessoa doente. Nunca aceitei isso, porque eu era uma pessoa muito bem resolvida escolar, socialmente, sempre estava na frente de tudo, gerava teatro, shows, fazia uma série de coisas desde criança na minha escola. O que tinha de doente em mim, tão cheia de vida, tão mais pra cima, mais moderna, mais arrojada do que o pessoal da minha geração? Eu não podia ser doente. Não é porque eu desejava uma pessoa que tinha o mesmo corpo que eu.

 

E a questão da travesti é uma coisa assim… Eu gostava de me imaginar com peitos e descobri que podia ter peitos. Talvez até nem precisasse deles, porque o que eu precisava era de um parceiro pra trabalho. Mas fui forjando a minha imagem e descobrindo que essa imagem incomodava. Daí que eu gostei dela, porque não era uma imagem de mulher, nem de peitos, era uma bandeira — pá! — na cara do meu pai e da minha mãe, daquela cidadezinha, daquele arraialzinho, que era tão estreito. E lá era tudo muito de mentira, porque todo mundo trepava, todo mundo fazia tudo debaixo dos panos. Eu não gostava dessas coisas, queria bagunçar um pouquinho.

 

Era um revide. Não era uma vingança, porque eu nunca fui uma pessoa revoltada nem amarga. Eu sempre gostei de dar o troco, de dar respostas. Não é vingança isso. Mas é muito gostoso você pegar um detrator — e ele não sabe nada de você, apenas que você é diferente — que pretende te diminuir, e você tem argumentação pra deixar ele calado. Isso é muito gostoso! E você vai aprender isso onde? Nas escolas? Os livros, os escritores são fabulosos. Os escritores! E o ideal é que a gente leia todo tipo de literatura. Até de sacanagem, porque você aprende muito sobre sexo.

 

Mas uma coisa é certa: eu posso falar muita besteira, mas eu sempre estarei em defesa dos meus ideais. Do que eu acho que é liberdade. Porque poder pra mim é isso: poder ser livre. E eu sei que eu nunca vou ser livre se eu não respeitar a sua liberdade. Só existe liberdade onde todo mundo é livre. Isso é muito importante pra mim. Eu trabalho pra isso, eu discuto pra isso, eu falo muito pra isso. E vou morrer falando disso. Pela diferença. Até pela mediocridade, porque nem todo mundo é luminoso, é glorioso, é preciso que haja medíocres, porque se não sua luminosidade não tem razão de ser. É preciso que haja pessoas que sejam antagônicas a nós e aos nossos desejos. É preciso que ela diga: “Eu não sou assim, eu não gosto assim”.  Mas ela não pode esquecer de me respeitar e respeitar os meus desejos. Eu respeito todo mundo com os seus desejos, e preciso que me respeitem também. E a gente ainda tem muito caminho pra viver em liberdade realmente.

 

 

Como é a sua relação com as transexuais mais novas, que estão se descobrindo?

 

A nossa relação é muito normal. Sabe por quê? Porque imediatamente as pessoas esquecem que a gente tem uma diferença de idade. De repente elas estão brincando comigo como se eu fosse da idade delas, porque eu sou uma pessoa que sempre viveu com o público. Já fui vendedora, estou sempre no meio do público, então eu sei me comunicar com todo tipo de pessoa… Eu tenho uma comunicabilidade superfácil, então a gente se relaciona muito bem.

 

É claro que de vez em quando eu preciso incorporar a velha [risos]. Até assusta, porque é muito difícil eu ficar brava, mas às vezes você está lidando com pessoas que precisam ser orientadas, encaminhadas. Por exemplo, a menina está fazendo o curso pra ser cabeleireira aqui e vai trabalhar num salão. Ela vai atender pessoas que talvez nem tenham visto uma travesti de perto na vida. Como vai ser a relação da profissional com essa cidadã? Essa profissional tem que, no mínimo, saber se posicionar de maneira respeitosa, até pela ignorância da pessoa, porque ninguém é obrigado a entender o que eu sou. Eu, enquanto profissional, tenho que respeitar isso. Tenho que conduzir essa situação de uma maneira que essa pessoa descubra que eu sou uma pessoa igual a ela. Simples assim.

 

 

Qual orientação é dada nesses casos?

 

A orientação não pode ser um compêndio teórico. Ela é um convívio. Eu sou muito brincalhona e tudo, mas eu tenho uma postura. Eu tenho uma conduta pra me vestir, pra me calçar, no meu tom de voz. Às vezes, eu chamo e falo. Não quero ficar parecendo moralista nem professoral, porque essas pessoas são avessas a regras e normas e eu entendo muito isso. Mas eu busco uma atitude que faça com que elas gostem. Atitudes que são mais organizadas, mais de disciplina. Quando você gosta de disciplina, você passa a entendê-la. Ela é necessária. Se você olhar para a galáxia, você vê uma disciplina. Imagina se ela se perde! A disciplina faz um bem enorme e você precisa gostar dela. Eu não posso impô-la a você, mas tenho que ter argumento para ensinar a gostar dela. Talvez isso não se dê com o discurso, mas com a sua atitude. Os filhos copiam os pais; e os jovens, se o velho for jovem, eles vão copiá-lo inconscientemente.

 

 

Quando você chegou no Rio, aos 14 anos, quem foram as pessoas com quem você começou a sair, que te mostraram como as coisas funcionavam?

 

Isso a gente vai descobrindo, ninguém mostra nada, não. Só a sociedade arrumadinha, sobretudo os heterossexuais, é que imagina que é tudo arrumado. Essas coisas vão acontecendo. Somos muito pretensiosos de achar que nós conduzimos nossa vida. É mentira. Eu nunca, em nenhum momento da minha vida, posso dizer que conduzi a minha vida. As coisas foram acontecendo. De repente eu me vi na rua.

 

A escola em que eu fui estudar era particular, só de filhinhos de papai, e eu era pintosíssima e preta. Porque no Brasil não tem preto nas escolas assim, imagina nos anos 1970! Uma bicha preta pintosa numa escola lá no Posto 6, quase chegando em Ipanema. Era uma situação… pior que sapato apertado no pé. Aquilo foi ficando meio insustentável. E eu com o tesão até aqui, era adolescente e tinha tanto homem seminu, Leblon ali, o Arpoador, um píer, aquelas coisas maravilhosas. Eu pensava: “Vou pra escola, pra esse inferno?”, e comecei a matar aula, comecei a transar — porque, antigamente, a gente que era homossexual transava muito, porque as moças não transavam. Nos anos 60, início dos 70, só transavam depois de casadas. E bicha que era como eu, superfeminina, delicada, então, nossa senhora! Eu tinha que escolher parceiros, a vida sexual era muito chamativa, muito apelativa.

 

Aí eu comecei a faltar às aulas. Só que a escola era paga. E lá na casa da minha tia tinha uma empregada que tinha adoração por mim, ela sabia que eu era bicha, eu contava todas as minhas histórias pra ela. Mas um dia cheguei em casa e ela estava apavorada, já tinha três meses que eu estava faltando e a minha tia continuava pagando a escola. Aí o colégio ligou perguntando porque é que estavam pagando se eu não frequentava. E foi a empregada que atendeu ao telefonema. Quando eu cheguei, soube e saí correndo. Com a roupa do corpo. Aí conheci um motorista de taxi que me levou pra zona.

 

Vocês já ouviram falar em zona? Era algumas ruas que tinha no Rio de Janeiro que eram fechadas, tinha uns tapumes na frente, e as profissionais do sexo. Mulheres que trabalhavam ali. Era um universo à parte. Ele me levou pra lá, me apresentou pra uma senhora que fazia comida pras prostitutas, ela levava os pratos. Aí eu fui pra casa dela. Ela tinha um filho de 9 anos, separada do marido, morava num quartinho, fui morar com ela, levava a comida pras profissionais do sexo e ajudava o menino na escola. Porque eu era assim, com 15 anos eu dava aula pro povo de nível mais baixo no colégio, fui sempre atirada pra essas coisas.

 

Fiz uma relação boa com ela, mas o trabalho era muito pesado. E eu nunca tinha pegado numa vassoura na minha vida. Você tem noção do que era isso? Eu, que na minha terra era um mauricinho, uma patricinha, carregando sacola pesada com marmita pra vender? Era um universo à parte do meu. Era muito pesado. Mas ali eu conheci uma cafetina, fui trabalhar na casa dela. Arrumava a casa, lavava a louça, atendia os hóspedes. Era um trabalho muito pesado também. Eu era uma adolescente muito frágil, muito magra. Tive uma vida penosa.

 

Aí conheci um menino que morava num quarto, um estudante que era gay. Ele arrumou de eu trabalhar na casa de um casal alemão em Ipanema. Esse casal era muito chique, era um apartamento de dois andares, aí aprendi a servir a mesa, a ser garçonete, era um serviço mais leve. E era um salário. Porque todos os trabalhos que eu tinha feito eram só casa e comida. Ali eu conheci um homem. Ele era bem mais velho que eu, eu devia ter 18 e ele, 40. Advogado. Comecei a tomar hormônio, meu cabelo já estava crescendo, ficou muito grande pra casa da mulher. Só que aí o Paulo já estava comigo e montou um apartamento pra mim no Posto 6, fiquei morando com ele.

 

Virei uma moça belíssima, cabelo aqui embaixo, todo mundo me chamava de Gabriela, saiões batendo aqui embaixo, barriga de fora, a exuberância em pessoa! Mas ele me sufocava. A coisa não estava boa pra esse lado, mas eu não sabia fazer nada, não era qualificada pra nada. Não tinha nem o diploma completo do ensino médio. E já era travesti, então procurar emprego nem pensar, porque quando eu desse meu documento… Aí uma amiga minha, cabeleireira, falou: só se você for ser faxineira, diarista. Isso eu organizando a vida pra ganhar dinheiro e largar o marido, e eu tinha empregada em casa. Olha só que loucura. Aí ela arranjou pra eu fazer faxina numa loja. A patroa chamava Blanche, era uma loja de pronta entrega ali na Santa Clara, fui pra lá me oferecer como faxineira e, no dia que fui pra entrevista, a mulher falou: “Você tem um visual de vendedora, não quer tentar?”.

 

Barbarizei como vendedora. No final do dia ela queria a minha carteira profissional pra assinar, ela tinha ficado deslumbrada com a vendedora. E pra mostrar minha carteira?! Mas era uma mulher muito metida com os gays, ela mesmo parecia uma travesti. Passou um dia, dois dias. No fim da semana ela disse: “Vem cá, mocinha”, fomos no escritório, e ela: “Traga a sua carteira, ninguém sabe e ninguém vai saber, mas eu sei que você não é mulher. Vamos lá”. Aí eu dei minha carteira.

 

Quinze dias depois apareceu o Carlos e o Lino Villaventura, que disputavam a moda em São Paulo. Clodovil, Dener, esse pessoal já estava cedendo espaço. E ele ficou deslumbrado comigo. Aí eu vim pra São Paulo pra ser modelo de prova dele, porque ele gostava de fazer a roupa no corpo da manequim e tinha muita dificuldade, porque as mocinhas não queriam ficar peladas naquela época. E travesti queria mais é isso, ficar pelada. Mostrar o corpo perfeito! E fiquei trabalhando com ele. Era maravilhoso, eu desfilava na Avenida, que hoje é Fashion Week, nossa, era um deslumbramento só. Imagina um menino que veio lá da roça, do interior de Minas, desfilando com flashes? Televisão, essa coisa toda, dando entrevistas como mulher, com roupas de mulher! Ele fazia cerca de 260 modelos a cada estação, e essas roupas eram todas feitas no meu corpo! E ficavam pra mim. Ele fazia sapato, bolsinha, roupa de banho também. Eu tinha tudo isso. Imagina como mudou minha vida. Me transformei numa bonequinha de luxo.

 

Mas eu vendia lá no shopping center Ibirapuera, e eles só pagavam um salário mínimo. E me colocavam pra fazer faxina e tudo, falando que eu tinha que ficar calada porque eu era travesti e ninguém ia me dar dois mil. Esse era o discurso. E eu não tinha talento nenhum pra prostituição. Eu trabalhava até as seis, ali na Juscelino Kubitschek. Isso já era 1974. Eu comecei a trabalhar no Ibirapuera assim que ele foi começando a se montar. Nasci ali junto com o shopping center. Trabalhava desde manhã cedo até as dez horas da noite. Imagina minha carga horária de trabalho. Lá eu ganhava comissão do que eu vendia. Fiquei assim por três anos, até que uma gerente pegou minha carteira e descobriu que eu não era mulher. Aí as mulheres fizeram um abaixo-assinado para me tirar, dizendo que eu não era mulher e usava banheiro de mulher. Três anos depois! Mas era assim, eu era uma mulher, modéstia à parte, fabulosa. Incomodava demais. Porque as mulheres, até os anos 70, eram preparadas pra casar. Qualquer outra mulher era uma adversária em potencial.

 

 

Como vendedora, as pessoas também imaginavam que você fosse prostituta?

 

É, eu era uma mulher negra, bonita. Aquela região ali era só de garotões, filhinhos de papai, gente muito rica. Os carros não andavam, lotava. Não tinha muita coisa pra fazer também. Era isso, caçação. E quem eles iam caçar? Meninas pobres. Vendedoras. Porque as riquinhas tinham que casar, né?

 

 

Como você sentia isso?

 

Eu tinha 18 anos e achava tudo o máximo. Gente! Eu nasci biologicamente um homem e de repente eu era desejada. Todos homens maravilhosos! Então tudo era maravilhoso pra mim também. Eu não era infeliz. Agora, o episódio do abaixo-assinado pra eu não trabalhar mais lá no shopping me jogou uma realidade que até então eu não questionava: enquanto travesti, eu não tinha nenhuma dificuldade. Eu era uma mocinha linda, bem-vestida, tudo o que a sociedade gosta, pronta pra servir ao homem. E aí, pá, essa realidade. E se eu for mandada embora dessa loja? O que eu vou fazer? Imagina, pra mim, depois de ter pisado em passarelas, ir pra esquina de São Paulo me prostituir?

 

Isso foi muito bom, porque foi um chamamento da realidade. Estudar eu não podia. Queria, mas travesti estudar? Tá louca, não chegaria nem no portão da faculdade. Aí eu tinha uma amiga que fugiu. Na época a perseguição da polícia foi tão grande que eu arranjei um emprego pra ela lá na minha firma. E ela ficou com um sentimento de gratidão muito grande por mim. Porque enquanto ela trabalhou ali ela não tinha qualificação nenhuma, começou a passar roupa, pregar botão na confecção, ela foi juntando um dinheiro que ela descobriu que precisava sair. Que não dava mais. Aí ela juntou dinheiro e foi pra França. E ficou super bem lá. Era o começo das travestis brasileiras, o boom, aí ela ligou pra mim e perguntou se eu não queria ir. Ela era bem branquinha e falava: fico imaginando você aqui com essa cor, as pessoas vão ficar enlouquecidas. Arrumei minhas coisas e fui pra Europa.

 

Na Europa, eu sempre fui muito sábia, cortei meu cabelão, fiz a fina, sabe aquela garota de programa Madame Claude? Era moda esse filme, me inspirei, comecei a me transformar numa mocinha bem chique, colarzinho de pérola, blusão de lã, uma sainha batendo aqui na parte de baixo, mocassim. Aquele visual bem pequeno-burguês. Comecei a passear na Champs-Élysées, parar nas vitrines, aí comecei a ser abordada. Comecei a trabalhar como garota de programa.

 

Fui fazendo e estudando, fazendo e estudando, depois descobri que o mundo era grande. Pedia carona, fui pra Itália, lá estava eu, desbundando de novo. Mas estudei por todo o período em que estive na França, cheguei a fazer quase três anos de literatura francesa na Sorbonne. Porque na França, na Europa toda, a documentação… Ninguém que me atendeu nunca levantou o olho pra verificar a documentação. E o nosso passaporte era bem grandão assim na frente: “FULANO DE TAL, SEXO MASCULINO”, mas nunca houve um questionamento. Eu estudei na École de France, na Sorbonne, no Dante Alighieri em Roma, e nunca observei uma situação que fizesse lembrar que eu fosse diferente das outras pessoas. Em nenhum momento eu presenciei esse tipo de atitude. E estou falando de quase 40 anos atrás. Veja como o respeito ao outro, na Europa…

 

O brasileiro precisa andar mais rápido. Tem que começar a respeitar, porque o povo ainda dá uma risadinha quando atende a gente nos balcões. Pode não dar risadinha na sua cara, mas depois fala lá com o outro, começa a rir… E às vezes você liga pedindo um serviço social, explica que é travesti, aí: “Fulana, é B.O.”. B.O. é Boletim de Ocorrência, então travesti é… O que te lembra quando você precisa fazer um boletim de ocorrência? Tudo de ruim, não é? Então a pessoa vê a transexual, a travesti por esse viés e não faz questão de esconder a ignorância. E está num serviço social, atendimento social. Então, quer dizer, tem muita coisa ainda pra melhorar.

 

 

Uma pergunta que eu queria muito fazer: a sua geração passou pela epidemia da aids…

 

[Interrompendo] Nossa, foi um horror! Porque não era HIV, era “peste gay”. Tinha um bar perto de casa onde eu ia sempre, cheguei e pedi: “E o meu cafezinho?”. Veio um copo de plástico, nós nem sabíamos o que era copo descartável…

 

O hospital Emílio Ribas estava vazio de profissionais. Ali sempre foi a infectologia, mas todo mundo tinha pavor de contrair HIV, então muitos profissionais saltavam da área. No começo dos anos 80, tinha uma cafetina chamada Brenda Lee, e as meninas dela começaram todas a tombar com o HIV. E aí começaram a pensar: “Vamos dar uma mãozinha pra ela? Essas bichas vão morrer logo, aí daqui a pouco acaba”. E eu fui trabalhar com ela como voluntária, porque meu mundo mesmo estava aqui. Fui pra França, voltei da França, pro mesmo emprego. Eu não gostava de me prostituir. Voltei a trabalhar, mas sempre me desgastava tanto, aquelas mulheres tão vazias, o universo delas era tão fútil! E fui ser voluntária na casa da Brenda.

 

Era um horror. Teve um dia que saíram oito corpos. As pessoas entravam lá pra morrer, era um depósito. E ninguém trabalhava com ela de noite. Tinha gente de dia, mas não tinha de noite. Então ela trabalhava muito de dia e de noite. Então eu comecei a trabalhar como voluntária à noite. Ajudava ela. Na casa cabiam 40 pessoas, 40 camas. A frente da casa era toda preta de mármore, com a porta da frente toda em metal dourado. Não era lugar pra se tratar ninguém, aqueles quartos todos sem janela, sem nada, no subsolo. Então imagine você, tratar as pessoas infectadas… Virava um depósito de tuberculose, pneumocistose, todo tipo de doença infectocontagiosa.

 

Era assim, e foi assim que o governo manteve sua ajuda a essas pessoas. Teve cidades aqui que botaram uma porção de bicha dentro do carro e botaram pra fora da cidade. Foi uma vergonha da humanidade. Nós estávamos voltando pra 2 mil anos atrás, com os leprosos. Só não fizeram isso aqui por causa de Brenda e das pessoas que tinham dinheiro, família. Ficamos assim até 1997, quando começou a surgir o DDI, o AZT, e as pessoas começaram a viver. Porque era assim: detectou o HIV, a pessoa já morria. As pessoas já morriam de pânico, porque sabiam que era uma doença letal. Então muita gente morreu por medo. Por medo de descobrirem que você era gay. Porque quando você vivia ninguém sabia que você era gay, mas com HIV você era gay.

 

 

Como você sobreviveu?

 

Eu sobrevivi, eu falo pra você, por sorte. Só por isso. Só por isso. Eu perdi todos os meus amigos. Eu era rodeada de muita gente, e esse pessoal morreu todo de HIV. Você não tem noção do tanto de pessoas que morreram com HIV. Mas a maioria dessas pessoas morreram de medo e susto. Se suicidaram quando se descobriram soropositivas. Você sabe o que é se descobrir, no meio de uma sociedade machista como a nossa, com um rótulo na cara de que você é viado? Não era nem a aids, era o viado. Porque todo mundo aqui era enrustido, por isso que a travesti proliferava muito, rendia muito. Se eu estou com uma travesti, eu estou com uma menina dentro do meu carro, quem passa vê uma mulher. É muito mais fácil.

 

E aí aconteceram coisas assim. Esse povo que é homem lá na faculdade, que é homem em casa, de repente está com HIV. E some. Se mata. A própria sociedade cria mecanismos que mostram como se permitir. Muita gente que era soropositiva, se não tivesse esse pavor, teria vivido. Não teria morrido. Mas era uma responsabilidade muito grande, o HIV. Ninguém quer ser rejeitado, nem todo mundo tem essa força, coragem de suportar. Ou você é muito corajosa, ou você é muito alienada, também. Às vezes a alienação faz você dar as costas. O mundo dá as costas pra gente e você enfrenta isso. Mas não é fácil.

 

Nos anos 1950, a coisa mais comum era: “O Ricardinho se matou, filho de fulano”. Ninguém falava por que Ricardinho se matou. As lésbicas não se matavam porque não existiam. Existiam, mas não existiam. Agora, os rapazes… Não tinha como ser homem mesmo, aí tinha que apresentar a mulher pro pai, casar, essas coisas todas, e aí? Se matava. Entendeu? Assim foi. Assim é. A não ser que vocês comecem a trabalhar pra que isso mude.

 

Olha, eu não conto todo o lado podre da história, não, porque se eu contar… Quanta água, gente… É um livro, não é uma entrevista! E a gente tem que ir embora, já. Vai fechar o CRD. Olha, faltam só 20 minutos pra eu ir embora. Eu moro lá em Tucuruvi.

 

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Ilustração: Gui Mohallem.

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