Geni é uma revista virtual independente sobre gênero, sexualidade e temas afins. Ela é pensada e editada por um coletivo de jornalistas, acadêmicxs, pesquisadorxs, artistas e militantes. Geni nasce do compromisso com valores libertários e com a luta pela igualdade e pela diferença. ISSN 2358-2618

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A identidade mutante de Effy Mia

Com a sua morte, a militância transfeminista perde uma voz iconoclasta. Por Clara Lobo, de Buenos Aires

“A minha sexualidade está muito relacionada ao meu compromisso ativista, mas como uma ferramenta, não como uma bandeira ou uma finalidade. Nos últimos tempos, minhas lutas têm estado relacionadas principalmente à despenalização do aborto e à genuína igualdade de gênero, entendendo que os homens são também vítimas do machismo. Não posso ficar grávida e tampouco sou homem para que minha luta principal seja o reconhecimento dele como vítima do machismo; entretanto, minha luta e compromisso social têm a ver com algo que vai além do meu corpo e da minha sexualidade. Se posso, por meio do meu corpo, fazer uma ponte para que meu ponto de vista seja compreendido ou ao menos problematizado, obviamente o usarei.”

Há cerca de um mês, o corpo complexo e mutante de Effy Mia foi velado em um cemitério judaico de Buenos Aires. Seu suicídio surpreendeu amigos e colegas; muitos, chorando, diziam preferir acreditar que aquilo era apenas mais uma performance. Com apenas 25 anos, a artista visual, performer e militante transfeminista Elizabeth “Effy” Mia passou a integrar o grupo – numericamente alarmante – de pessoas LGBTTI que cometem suicídio.

Nascida em corpo masculino, Effy iniciou o seu tratamento hormonal aos 21 anos. Um ano depois, alguém lhe disse: “Ainda que te cresçam peitos, que tome hormônios, que opere os genitais, você nunca será mulher porque não menstrua e nem sabe o que isso significa”. Sua reação? Extrair meio litro de seu sangue e reparti-lo em 13 doses que representaram, em perfomances mensais, sua menstruação durante um ano. A obra, chamada “Nunca serás mujer”, fez de Effy uma figura conhecida no meio artístico de Buenos Aires.

Em 2011, ainda sem documentos que constassem o nome Elizabeth e o sexo feminino, Effy começou a desenhar a TRANSita, uma série de charges e histórias em quadrinhos sobre questões cotidianas da sua transgeneridade, como a reação das pessoas à sua aparência ambígua ou a violência do machismo e da translesbofobia.

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“O que é identidade para mim? Algo que muda”. O intercâmbio e a fluidez da identidade de gênero, como vista por Effy Mia, tornava-se evidente em um projeto fotográfico chamado “Lésbicas na Cama”, em que ela e sua então namorada trocam de genitais: a namorada recebe digitalmente o pênis de Effy, e Effy, sua vagina. Ali, a simbologia heteronormativa é posta em cheque quando, apesar do pênis e da vagina, elas se proclamam lésbicas. “Não existem gêneros, existe um: aquele que cada um escolhe!”, dizia um cartaz que Effy segurava na Marcha do Orgulho LGBTTI portenha de 2013.

Em 2012, como parte de seu contínuo ativismo feminista, começou a coletar histórias de violência sexual em âmbito seguro (ou seja, dentro de relações estáveis, por pessoas conhecidas ou dentro do sistema de saúde) contra pessoas de identidade feminina. Após gravar os relatos, passou a reproduzi-los na performance “Effy oferece sexo oral”, onde as pessoas que queriam receber sexo oral ouviam esses relatos em primeira pessoa enquanto Effy massageava suas coxas. As reações, de incômodo profundo, eram exatamente o que esperava a artista: “A ideia é conscientizar homens e mulheres sobre situações de violência que costumam ser silenciadas ou naturalizadas.”

Além de sua arte, Effy Mia nos deixou escritos em que refletia sobre gênero, patriarcado, discriminação, entre outros. Para que conheçam melhor essa interessantíssima mulher, que deixou cedo demais um mundo profundamente preconceituoso, traduzimos do espanhol dois textos curtos de sua autoria.

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Gêneros Domesticados

Por Effy Mia

Vivi uma puberdade, adolescência e parte da juventude transitando nas ruas de Buenos Aires com vestimenta e identidade masculinas. Há menos de três anos experimento diariamente transitar pelas mesmas ruas com vestimenta e identidade femininas. Muitas vezes compartilho situações que vivo na rua, e tanto homens, como algumas mulheres, minimizam esses relatos ou no que eles implicam. Aprendi muitas coisas com a visível transformação diária do meu corpo, e vejo muitas consequências diretas disso na minha intimidade, mas um exemplo bastante chamativo pode resumir o que quero dizer.

Ontem, caminhando na rua com um amigo, passamos por vários lugares onde me imaginei passar sem ele, e que tão diferente teria sido não só pelo que poderia ter acontecido, mas também, e mais importante, por como eu teria me sentido, como teria disposto meu corpo, como meu coração teria se acelerado, como teria abaixado o olhar, como minhas costas se retesariam.

Faz três anos que caminhar sozinha nas ruas já não é o mesmo para mim. Antes, minha identidade masculina me protegia; agora, estou oprimida, e a opressão não é algo que começa em mim, é uma questão social e política.

Queria poder me sentir do mesmo jeito caminhando sozinha ou acompanhada de um homem, ou igual ao que sentia quando eu mesma representava ser um homem.

Esse desejo, creio, é o que melhor descreve a violência que muitas pessoas naturalizam. Descreve ainda melhor do que qualquer fato pontual, geral, repetido ou único. Esse desejo de tranquilidade ao caminhar só, esse sentir falta das longas caminhadas que fazia sozinha, pensativa, sem ter que destinar nenhuma fibra da minha mente ou corpo ao outro. Essa é a evidência irrefutável do que muitos tratam de minimizar, isolar, ou, até mesmo, culpar-me.

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O vestígio do homem inclusivo nas universidades

Por Effy Mia

“A linguagem oral é um dos maiores inventos, depois vem a escrita. A partir daí o homem é homem.” (Docente da carreira de Crítica no Instituto Nacional Universitário de Artes, 2013)

Ultimamente, as universidades aumentaram não só a diversidade e pluralidade da sua população no que se refere a quem pode estudar para adquirir e gerar novos conhecimentos, como também, no corpo docente e diretivo, há cargos ocupados por pessoas que não se definem como homens.

Ainda assim, tanto em textos como na prática diária de ensinar sobre qualquer tópico, persiste o termo “homem” para se referir à ideia universal de “ser humano”, como no exemplo dado ao início deste texto. O mesmo professor, durante a mesma aula, disse que um som é “o que o homem percebe”, e assim o escreveu no quadro negro. Obviamente os cães também percebem sons e ele não os incluiu, ainda que tenha falado depois sobre a frequência em que eles percebem o som “e o homem não”. Ao escrever essas palavras no quadro, o professor teve a intenção de sinalizar o estudo do som, e “o homem” é aquele que dá sentido às vibrações, e quem tem a capacidade para diferenciar música de ruído, assim como fazer uma análise mais complexa que um animal. Depois, exemplificou a capacidade auditiva surpreendente dos morcegos e baleias, para depois voltar ao “homem”.

Na sala de aula, a maioria dxs que assistiam se qualificava culturalmente como mulher. No entanto, ninguém, com exceção de mim, parecia se alterar por causa do reiterado uso da palavra “homem”. Sem querer desviar a atenção da aula, levantei a mão, consciente de que sou claramente percebida como pessoa transgênero, e sugeri que ele dissesse “ser humano” em vez de “homem”.

Outra aluna intercedeu rapidamente, de maneira conciliadora, dizendo que quando dizemos “o homem” nos referimos tanto a homens quanto a mulheres. Eu sustentei que não, não nos referíamos, e sim que inviabilizávamos tanto as mulheres quanto outras identidades.

O argumento de “o homem” como inclusivo me parece que responde a um mesmo pensamento falocentrista, posto que se está legitimando o homem como centro, e como aquele que tem “o poder” e “a obrigação” de rejeitar ou aceitar tudo que não seja ele, decidindo assim se podemos fazer parte.

Por que devemos nos incluir em uma palavra que não tem direito de nos incluir? Como se a luta dos oprimidos fosse a inclusão a uma cosmovisão centrada não só no “homem”, como também em um homem muito específico… Em uma época, nós, mulheres, não podíamos votar nem ter acesso aos estudos universitários. E quando dizemos que nessa época só “o homem” era aceito na universidade, seguimos mentindo, porque não eram aceitos “os negros”, “os deficientes”, “os criminosos”, ainda que fossem concebidos culturalmente como do sexo masculino. Hoje, após muitas lutas individuais e coletivas, uma parte mais plural de nossa sociedade, sim, pode.

Voltando à ideia de que “homem” inclui todas as identidades que escapam ao protótipo “Homem”, por que no IUNA (Instituto Universitário Nacional de Arte), para dar um exemplo prático, onde mais de ¾ da população universitária é do que culturalmente qualificamos como sexo feminino, se diz “homem” e não “mulher”? Por que os estudantes homens não podem se sentir incluídos ao ouvir “mulher” em vez de “ser humano”?

Por isso proponho três modalidades para resolver esse dilema que parece naturalizado, consequência de uma sociedade que muda continuamente, mas que culturalmente não entende como se adaptar à mudança.

Em 2012 conseguimos que houvesse uma lei que respeita a identidade de gênero como cada um o experimenta. Os documentos seguem sendo binários (F ou M), ainda que seja de conhecimento público que haja pessoas que não se identificam dentro dessa divisão ou, se o fazem, podem transitar livremente entre eles e transgredir vários parâmetros opressivos. Mas para chegar a algo tão ambicioso como apagar o gênero como classificação obrigatória em nossa cultura, poderíamos começar por resolver algo pendente, que é uma cultura em que “o homem” já não é o centro e referência, e sim parte igual de uma diversidade, e que ele deixe de ser centro e referência em nosso léxico, primordialmente no marco educativo.

As três propostas são as seguintes:

1. Quando quisermos falar do “ser humano”, digamos “a mulher” em vez de “o homem”, já que o homem é minoria (ao menos dentro das carreiras universitárias de arte).

2. Que, se persistimos em dizer “o homem”, especifiquemos dizendo “o homem branco dominante”, pois assim seriam muito mais honestos os enunciados que o tomem como referência geral. Pois, do mesmo modo que não se está falando de uma lésbica, nem de uma trabalhadora sexual, nem de uma travesti, tampouco se fala de um homem de ascendência indígena, ou afro-americano, ou diagnosticado como doente mental.

3. Erradicar a palavra “homem” como termo que abarque e respeite o fator comum de todas as identidades: o humano. Deste modo, empregar como palavra abarcante o termo “ser humano”.

Há também uma quarta opção, que é a mais popular empregada no momento: quando alguém em sala de aula disser “o homem” para se referir a uma pluralidade, não importa o gênero, orientação sexual ou postura ideológica, que não digamos nada, e que tudo siga igual até que alguém resolva romper com isso.

Leia outros textos de Clara Lobo e da seção Perfil.

Ilustrações: Effy Mia, Nora Lezano (foto) e Bianca Muto.

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