Geni é uma revista virtual independente sobre gênero, sexualidade e temas afins. Ela é pensada e editada por um coletivo de jornalistas, acadêmicxs, pesquisadorxs, artistas e militantes. Geni nasce do compromisso com valores libertários e com a luta pela igualdade e pela diferença. ISSN 2358-2618

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Entrevista com Aline Freitas

 

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Comente um pouco sobre a sua trajetória no “mundo da tecnologia” e como esse interesse foi se organizando até tornar uma profissão.

 

Minha primeira faculdade (incompleta) foi de ciências sociais. Na época me envolvi com um projeto de mídia alternativa chamado Centro de Mídia Independente (CMI). Era um site de notícias feito por não-jornalistas, onde qualquer pessoa poderia publicar textos, áudios, vídeos. Hoje é completamente banal, qualquer pessoa pode publicar em inúmeras plataformas, inclusive nas redes sociais, mas naquela época isso não existia. Não havia redes sociais, não havia Youtube. Nem mesmo blogs. De início meu interesse pelo CMI foi pelo lado do ativismo, de escrever e publicar conteúdo, mas aos poucos fui me interessando mais e mais pela parte técnica. Assim, logo me vi cuidando dos servidores do projeto.

Eu assumi minha identidade feminina nessa época em que estava envolvida com o CMI. Tive muito apoio das mulheres do coletivo, que me convidaram para fazer parte de um coletivo de mulheres ligadas à tecnologia, chamado Birosca. A Birosca foi onde pude me desenvolver de forma derradeira. Tínhamos uma servidora web que podíamos usar como um  laboratório de aprendizagem. E isso foi um ponto de partida para que eu pudesse aprender e me desenvolver. Meu aprendizado nunca foi direcionado a “carreira” ou “profissão”. Era mais como um hobby. Só se tornou profissão mais tarde, depois de anos, num momento em que me vi desempregada e resolvi ver aonde eu conseguiria chegar com o conhecimento que havia adquirido. Comecei trabalhando em ONGs e depois em agências publicitárias.

 

Recentemente houve o encontro para cocriação de políticas para Mulheres na Tecnologia, organizado pela Secretaria Municipal de Políticas para Mulheres e SP Negócios. Você sabe se foi debatida alguma política voltada às mulheres trans?

 

Eu não soube desse encontro e, pelo que pesquisei, não há nada específico em relação a mulheres trans.

 

Pensando em tecnologia em geral (não só em “informática”), quais avanços ou invenções tecnológicas trouxeram melhorias para a vida de pessoas trans?

 

A Internet em si representa uma mudança muito profunda e positiva para nossa comunidade. Eu mesma só me senti confortável em me assumir depois do contato com a Internet, conhecendo outras trans e compartilhando as próprias vivências. Na minha adolescência, o local onde se pesquisava era a biblioteca. Gastei muito tempo mergulhada, lendo e pesquisando o que eu podia. Foi numa biblioteca que entendi que a transexualidade é uma característica humana. Mas a falta de referências, de ter outras pessoas em que eu pudesse me ver sempre foi um problema. Tínhamos a Roberta Close, um ícone. Uma personalidade importantíssima, pela qual tenho enorme estima, mas eu sou muito diferente dela, seja enquanto mulher, seja em relação a minha história de vida. Com a Internet conheci inúmeras trans pelo Brasil e pude conhecer outras cujas histórias de vida faziam eco com a minha. Hoje vejo as meninas se assumindo bem cedo. Com catorze, quinze anos já se entendem como tal. Sem a Internet isso não era possível.

 

Como a tecnologia é usada atualmente como instrumento de ativismo pró-causas LGBT?

 

Gosto muito do poder de mobilização que conseguimos com as redes de informação, inclusive com as redes sociais. Fazíamos manifestações com poucos dias de antecedência pelo CMI e hoje conseguimos mobilizar pessoas pelas redes sociais também de forma rápida. Mas nem tudo são flores. No Facebook as informações são muito dinâmicas, diferente do formato de fórum, onde existe um tópico e você precisa enfrentar aquele conteúdo. No Facebook não há espaço para o diálogo coletivo, para o debate. A informação aparece e some em poucos instantes. Por força deste formato do Facebook ou não, há uma radicalização muito forte ultimamente. O Facebook é um espaço onde não há diálogo. O conteúdo é exibido de acordo com os interesses particulares. Para o ativismo isso é péssimo. Não temos mais construção, temos destruição. Participei de ativismos virtuais em diferentes formatos, seja no CMI, seja por listas de discussão, por emails, ou mesmo no Orkut (que ainda tinha formato de fórum) e posso dizer que essa era Facebook é a pior.

 

Quanto ao mercado de tecnologia

 

Sobre o ponto de vista profissional, como foi a aceitação no mercado de trabalho do uso do nome social? No caso de trabalhadores autônomxs como fica essa relação entre abertura de empresa, nota fiscal? Conta um pouquinho quais as dificuldades burocráticas implicadas nesse processo.

 

Eu trabalho em um meio onde no geral as pessoas não estão muito preocupadas sobre se você é trans ou marciana. Um pouco por isso nunca tive muitos problemas. Muitas pessoas que trabalham comigo sequer sabem que sou trans. Hoje tenho condições de escolher onde trabalhar e jamais aceitaria um lugar onde não sou respeitada.

 

Por que há tantos homens nessa área e poucas mulheres?

 

Porque somos desestimuladas desde sempre. Porque a TI [Tecnologia da Informação] é um ambiente tradicionalmente machista, de exacerbação masculina. Basta notar os blogs, cartuns e muito do conteúdo voltado para o profissional de TI. Isso tem mudado bastante nos últimos anos, mas essa cultura machista ainda persiste bastante. O meio da publicidade e das produtoras de mídia é no geral bem mais diverso, mais aceitável que outros meios, mas ainda assim conheci poucas programadoras, porque existem todas as outras barreiras até que você chegue lá.

 

Como você vê a aceitação de pessoas trans no mundo da tecnologia?

 

Por ser uma área onde há muita demanda somada a uma enorme carência de pessoas qualificadas, pode ser uma ótima área para pessoas trans. As empresas não podem se dar ao luxo de procurar muito. Sempre se precisa de programadores, sempre se precisa de alguém que programe bem, alguém que saiba se virar com qualquer linguagem. Por isso esta pode ser uma das poucas áreas onde pessoas trans podem construir carreiras bem-sucedidas. Entretanto, é necessário enfrentar as barreiras da área. Costumo incentivar os rapazes e moças trans a estudarem e entrarem nesta área.

 

Há empresas onde é possível construir uma carreira como pessoa trans? Uma mulher trans ou um homem trans recém-formadx tem espaço hoje em dia para iniciar e consolidar sua carreira na área de tecnologia, conforme sua identidade de gênero? Como isso ocorreu com você?

 

Há espaço sim. E em tese nem mesmo diploma é necessário. O mais importante é a capacidade de resolver problemas, de conseguir “se virar”. Existem inúmeras barreiras que se precisa quebrar para que mais trans sejam aceitxs. E a área por si mesma exige confiança em si, que você se sinta capaz de enfrentar qualquer desafio. Mas estamos falando de uma população que tem problemas de autoestima devido a inúmeras barreiras sociais. É preciso quebrar esse círculo vicioso.

 

Você acredita que os esforços de trazer mais mulheres para as (grandes) empresas de tecnologia buscam a igualdade de gênero ou a criação de reserva de mão de obra? Esses esforços também ocorrem visando incluir pessoas negras, trans ou de outras classes sociais?

 

Ainda estamos engatinhando em relação a políticas públicas para pessoas trans. Até eu me sinto surpresa quando vejo alguma campanha que não seja relacionada a DST/AIDS. Sim, são esforços muito raros. Os esforços de inclusão precisam cutucar nas feridas abertas: no machismo, na transfobia, no racismo ostentados nessa área.

 

Como é ser mulher e trabalhar em uma empresa de tecnologia, você já teve essa experiência?

 

Uma das minhas dificuldades iniciais foi conquistar o respeito das pessoas. Em um dos lugares onde trabalhei, as pessoas me olhavam de forma incrédula, “Quem é você? Deixa eu te ensinar como faz”. Acabei na época desenvolvendo uma postura rancorosa, porque precisava impor meu lugar. Aos poucos fui conquistando meu espaço, mas levou tempo. Hoje em dia meu trabalho é mais focado e estou num ambiente onde as pessoas se respeitam muito, é diferente.

 

Dizem que a área de tecnologia paga bem.  Há diferenças salariais entre mulheres e homens? Há diferenças salariais entre pessoas trans e cis?

 

Há uma discrepância muito grande entre faixas salariais na área de TI. E é um assunto sobre o qual que não se comenta. Isso abre caminho para que subjetividades influenciem. Se posso escolher onde trabalhar, isso me dá poder para negociar salários mais altos. Daí a discrepância. Daí também porque as trans tendem a ficar em desvantagem muito maior que na relação salarial entre homens e mulheres. Mas eu, particularmente, não acho que o salário seja o mais importante. Além do salário acho importante o ambiente, as pessoas, a rotina de trabalho, a liberdade com horários. Ter só o salário e não ter os outros não me parece convidativo.

 

Mesmo “pagando bem”, vemos no Brasil que há poucas pessoas na área (em concursos públicos, por exemplo, o índice de candidatos por vaga é menor para tecnologia). Por que você acha que isso acontece?

 

Porque é uma área onde se precisa estudar e estar aberto a aprender sempre. E além disso é preciso ter confiança em si. Se tudo pode ser resolvido, eu posso resolver. Persistência, muita paciência. Programar é como esculpir. Você inicia com um objeto sem forma (um arquivo de código em branco) e termina com esse objeto representando alguma coisa (seja uma interface com botões ou uma tarefa).

 

Às vezes, quando há palestras, websites, entrevistas sobre tecnologia voltada para mulheres, ainda se vê um reforço do estereótipo feminino (delicadeza, tons rosas, maternidade, dona de casa…). É coisa da nossa cabeça ou você também sente isso?


Quando falamos de eventos feitos por mulheres, voltados para mulheres, não necessariamente elas serão politizadas sobre questões de gênero, daí porque podem acabar reproduzindo estereótipos. A discussão sobre os estereótipos é totalmente válida, mas acho que é necessário cuidado quando lidamos com mulheres que nunca discutiram essas questões e que podem ter muitas outras coisas para acrescentar.

 

 

 

 

Ilustração: Nara Isoda

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