Geni é uma revista virtual independente sobre gênero, sexualidade e temas afins. Ela é pensada e editada por um coletivo de jornalistas, acadêmicxs, pesquisadorxs, artistas e militantes. Geni nasce do compromisso com valores libertários e com a luta pela igualdade e pela diferença. ISSN 2358-2618

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Identidade em movimento

Os 30 anos do Movimento das Mulheres Camponesas. Por Karolyna Herrera e Lia Urbini


Publicado em 15/06/2015

Articulações entre identidade e movimento

 

A tarefa de analisar a construção da(s) identidade(s) de um determinado movimento social nos permite conhecer um pouco de sua história, revelando relações mais amplas com o contexto. Os sociólogos Carlos Naujorks e Marcelo Silva afirmam que os aspectos identitários de um movimento social estão diretamente relacionados à sua formação e desenvolvimento; aos processos de participação e engajamento dos integrantes no interior das organizações; e por fim, aos significados culturais, políticos e sociais construídos e veiculados coletivamente (NAUJORKS; SILVA, 2010).

 

Para Rafael Alvarez (2000), a identidade transcende delimitações territoriais e tampouco é definida de antemão por elementos genéticos. Ela é constituída a partir do lugar que o sujeito ocupa nos campos social, político, simbólico e cultural. É relacional e, nesse sentido, sua construção se dá nos processos de luta ou de reconhecimento de diferenças.

 

Ao pensar sobre uma contribuição possível para a edição especial sobre campo na Geni, e interessadas justamente nas articulações concretas entre os debates sobre identidade/diferença e os históricos de movimentos sociais, nos propomos a revisitar a trajetória do Movimento de Mulheres Camponesas (MMC) para refletir sobre a constituição da(s) identidade (s) deste movimento, que no ano passado completou 31 anos de existência.

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O movimento das mulheres camponesas

 

O MMC surgiu em 1983 com o nome de Movimento de Mulheres Agricultoras (MMA). A organização inicial do MMA, formado por trabalhadoras rurais catarinenses, ocorreu em meio a um cenário desfavorável ao desenvolvimento e manutenção da agricultura familiar na região oeste de Santa Catarina. Naquele momento, o processo de modernização da agricultura se acentuava, favorecendo os grandes proprietários agrícolas e excluindo os pequenos agricultores do processo de produção. Como consequência, teve início um crescente êxodo em direção às cidades, acompanhado de um crescente empobrecimento da população rural.

A organização inicial do movimento recebeu a influência marcante da Igreja Católica, que no contexto da década de 1980 estava engajada em projetos de transformação social através das chamadas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), inspirada nos ideários da Teologia da Libertação. Naquele momento, as CEBs organizavam a mobilização de movimentos sociais e funcionavam como um espaço de ação política para os movimentos no campo.

Nesses primeiros anos, a reivindicação do MMA constituiu-se a partir de uma agenda especificamente classista e trabalhista, além de pautar o direito à participação nos sindicatos, que naquele momento eram compostos exclusivamente por homens.

 

[Éramos] motivadas pela bandeira do reconhecimento e valorização das trabalhadoras rurais, desencadeamos lutas como: a libertação da mulher, sindicalização, documentação, direitos previdenciários (salário-maternidade, aposentadoria, etc.), participação política, entre outras.” (MOVIMENTO DAS MULHERES CAMPONESAS, 2013).

 

A primeira pauta de luta do movimento orientou-se para o fortalecimento da imagem da mulher fora do ambiente doméstico, contribuindo para evidenciar o seu papel no espaço público, o que as permitia empreender lutas que contribuíssem para afirma-las enquanto sujeitos autônomos. Nessa etapa, apesar da discussão sobre gênero não integrar diretamente as reivindicações, podemos afirmar que o eixo central da ação política estava relacionado ao questionamento das mulheres rurais acerca dos seus direitos.

 

A partir da década de 1990, o MMA aproxima-se de outros movimentos sociais rurais também organizados por mulheres. Em 1995 foi criada a Articulação Nacional de Mulheres Trabalhadoras Rurais (ANMTR), reunindo as mulheres dos Movimentos Autônomos, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), da Pastoral da Juventude Rural (PJR), do Movimento dos Atingidos pelas Barragens (MAB), de sindicatos de Trabalhadores Rurais e, no último período, do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA).

 

Este processo de articulação, segundo o próprio movimento, foi marcado por uma extensa agenda de reivindicações e atividades, tais como: mobilizações, através de acampamentos estaduais e nacional; celebração de datas históricas e significativas (…); parceria na luta, por meio da reivindicação pela continuidade e ampliação dos direitos previdenciários, pelo direito à saúde pública, por um novo projeto popular de agricultura, pela reforma agrária, e pela campanha de documentação;  formação política e ideológica; e elaboração de instrumentos de trabalho para a base e para as lutas (como cartilhas e panfletos).

 

Esta articulação influenciou o MMA a incorporar as questões de gênero em sua pauta.  “Toda esta bagagem trazida pelos movimentos autônomos de mulheres, associada aos demais movimentos, reafirmou a luta das mulheres em dois eixos: gênero e classe”. A incorporação de questões de gênero na pauta política do movimento acabou por afastar o movimento da Igreja Católica, uma vez que a Igreja considerava polêmico reivindicar a participação da mulher no espaço público, o que acabaria por distanciá-la de sua função no espaço doméstico (PAULILO, 2010).

 

O debate sobre gênero trouxe à tona a questão do patriarcalismo, muito presente no meio rural; além de “questionar a participação das mulheres na sociedade” e colocar foco nas relações desiguais para o acesso ao crédito e na ação política, naturalizadas historicamente na imagem do “chefe da família” (BONI, 2012). A incorporação desta “nova” agenda não excluiu a continuidade da luta de classes, tampouco a reivindicação por direitos trabalhistas.

 

A partir de então, o movimento segue em estreita colaboração com a ANMTR. Depois de várias atividades nos grupos de base, nos municípios e estados, o MMA procurou ultrapassar as fronteiras estaduais, promovendo, assim, a realização de seu primeiro congresso nacional em 2003, com a participação de vários movimentos autônomos de mulheres existentes no Brasil.

 

Em 2004, o movimento é renomeado como Movimento das Mulheres Camponesas (MMC). A mudança do nome está vinculada à necessidade de afirmar a identidade camponesa, que, segundo as integrantes do movimento, permite englobar as diferentes identidades de trabalhadoras no meio rural.

 

“Fizemos debates sobre a categoria camponês, que compreende a unidade produtiva camponesa centrada no núcleo familiar a qual se dedica, por um lado, a uma produção agrícola e artesanal autônoma com o objetivo de satisfazer as necessidades familiares de subsistência e, por outro, comercializa parte de sua produção para garantir recursos necessários à compra de produtos e serviços que não produz. Neste sentido, “mulher camponesa, é aquela que, de uma ou de outra maneira, produz o alimento e garante a subsistência da família. É a pequena agricultora, a pescadora artesanal, a quebradeira de coco, as extrativistas, arrendatárias, meeiras, ribeirinhas, posseiras, bóias-frias, diaristas, parceiras, sem terra, acampadas e assentadas, assalariadas rurais e indígenas.” (MOVIMENTO DAS MULHERES CAMPONESAS, 2013).

 

Segundo Boni (2012), existe a hipótese da mudança de nome ter sido motivada pela articulação do MMA com a Via Campesina, por ocasião da IV Conferência da Via Campesina que ocorreu em junho de 2004 no Brasil. Esta organização, criada em 1993, tem como objetivo desenvolver a solidariedade e unidade entre organizações camponesas, trabalhadores agrícolas, mulheres rurais e comunidades indígenas e negras da Ásia, África, América e Europa.

 

Paulilo (2010) acrescenta que a articulação com a Via Campesina não interferiria somente na renomeação do movimento, mas incluiria também uma nova agenda política, constituída pela reivindicação de um novo projeto de agricultura agroecológica, tendo em vista a preservação de sementes crioulas e o resgate da sabedoria popular (camponesa), buscando a preservação da biodiversidade. Ainda segundo a autora, “a preocupação das agricultoras com a agroecologia faz com que o movimento a que pertencem possa ser considerado uma corrente dos movimentos ecofeministas, mesmo que este não seja um termo usualmente utilizado pelas militantes”. (PAULILO, 2010)

 

A partir da articulação com a Via Campesina e outros movimentos sociais, o MMC sente a necessidade de se reunir com estes movimentos. Desta forma, no ano de 2013 o MMC promoveu o I Encontro Nacional em Brasília. Este evento teve como objetivo unir as mulheres integrantes do MMC e de outros movimentos articulados em busca da discussão de uma pauta comum. Conforme indica a fala de uma das integrantes do movimento, apesar do MMC e de outros movimentos serem compostos por diferentes mulheres com diferentes identidades, os problemas que elas enfrentam em geral são os mesmos e as reivindicações por melhores condições são comuns (fonte: vídeo do I Encontro Nacional). Este encontro teve como lema o combate à violência contra a mulher, assumindo que a violência é um problema de todas as mulheres, pois é fruto de uma sociedade capitalista, patriarcal e machista. Além da temática da violência, o movimento reafirmou seu discurso sobre a soberania alimentar, respaldado pelo cultivo de sementes crioulas e pela produção agroecológica.

 

Neste mesmo ano, o MMC celebrou seus trinta anos em evento realizado na cidade de Xanxerê, no oeste Catarinense. Esta comemoração teve como objetivo relembrar a trajetória do movimento, além de celebrar as conquistas obtidas e reforçar a agenda política voltada para as reivindicações de classe e gênero. Neste evento, o MMC passar a se considerar assumidamente um movimento feminista (contra o patriarcado e o machismo), socialista (contra o capitalismo) e agroecológico, identidade esta que veio assumindo nos últimos anos.

 

A/s identidade/s do movimento

 

O histórico que apresentamos dos trinta anos do MMC tem por objetivo evidenciar duas dimensões que aparecem como igualmente importantes nessa trajetória: a de gênero e a de classe. Em situação distinta dos quadros clássicos de descrição dos percursos de movimentos sociais na contemporaneidade – que se pautam por uma espécie de guinada culturalista que deslocaria as lutas emancipatórias de seu caráter de classe para outras identidades transversais, como a étnica ou a de gênero –, a trajetória do MMC se constitui em constantes conexões entre ambas as identidades.

 

De acordo com Scherer-Warren (2006), atualmente as identidades nos movimentos sociais incluem múltiplas dimensões do self, tais como dimensões de gênero, étnica, de classe, regional, assim como “dimensões de afinidades ou de opções políticas e de valores: pela igualdade, pela liberdade, pela paz, pelo ecologicamente correto, pela sustentabilidade social e ambiental, pelo respeito à diversidade e às diferenças culturais, etc.” (2006; p.115)

 

É certo que, conforme o panorama internacional evidencia determinadas ênfases em certas práticas e reflexões, as lutas regionais podem se beneficiar com o movimento mais geral, o que intuímos acontecer com as dimensões de gênero e classe para o MMC. A prática de revisão da identidade deste movimento está associada à questão do exterior constitutivo, termo cunhado por Boaventura de Souza Santos (2003).  Nos termos do autor, é a partir da identificação e diferenciação na construção da identidade que o movimento tem a oportunidade de se estruturar de forma emancipadora, e do nosso ponto de vista, o MMC espelha-se no exterior constitutivo sem a necessidade de produzir sua identidade dentro da lógica hegemônica colonialista.

 

O que também observamos, dentro do contexto atual de razoável aceitação pública do debate em torno das questões de gênero, é que as mulheres do MMC acabam por se vincular gradativamente com a luta pela emancipação em termos de gênero até a situação atual, na qual se autoidentificam como feministas. Do mesmo modo, podemos evidenciar esta prática na transição do conceito de “agricultoras” para o conceito de “camponesas”. Esta transição pode ter sido influenciada pelo contexto internacional da resistência no campo, que toma o termo “camponês” como categoria mais associada a uma identidade sob ameaça, se comparada com a identidade “agricultora”, que em algumas situações se adapta e coexiste com as formas atuais de modernização da produção no campo.

 

Ainda no que se refere à situação de classe, também é possível observar uma revisão em termos das concepções dessa identidade ao longo desses trinta anos. Inicialmente, a luta política de classe estava mais associada às atividades de reivindicação dos direitos trabalhistas e do movimento de sindicalização. Posteriormente, outros sentidos foram se sobrepondo ao conceito, até o momento em que se encontra no MMC uma percepção de classe não apenas centrada nas questões do trabalho, mas também do que não é considerado trabalho e das condições de vida no campo, evidenciada pela ênfase na prática de produção agroecológica e na preservação de sementes crioulas.

 

À guisa de conclusão, recorremos a Nancy Fraser, entendendo que a luta e a autorepresentação do MMC se afinam na prática com a proposta da autora de desenvolvimento de uma teoria crítica do reconhecimento, na qual a política cultural da diferença e da igualdade deveriam estar mutuamente imbricadas (FRASER, 2007). Rechaçando a versão de que a luta por redistribuição teria sido suplantada pela luta por reconhecimento, por considerar que as lutas por reconhecimento atualmente se dão em terrenos de sérias desigualdades materiais, Nancy Fraser deseja reformular o dilema redistribuição/reconhecimento contextualizando-o à realidade das últimas três décadas. Arriscamos concluir que o MMC é um dos movimentos que exercita essa reformulação em seu cotidiano.

Karol Herrera é feminista.  Ex-contadora, ex-estagiária de multinacional, ex-bancária de banco de investimentos, ex-cooperativista internacional, paulistana da zl, meio espanhola, aspirante a manezinha, mestre em internacionalização, urbanóide, agricultora de manual, pesquisadora do rural, mestra e doutoranda em sociologia política.

Ilustração: Ana Mohallem

REFERÊNCIAS

ALVAREZ, Rafael. La dimensión política en la constitución de la identidad del sujeto. Guadalajara: Espiral, vol. VI, n. 17, 71-83, 2000

BONI, Valdete. De agricultora a camponesas: O movimento das mulheres camponesas em Santa Catarina e suas Práticas. Tese. Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2012.

FRASER, Nancy. Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça na era pós- socialista. In: SOUZA, J. Democracia hoje: novos desafios para a teoria democrática contemporânea. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 2007.

MOVIMENTO DAS MULHERES CAMPONESAS. Site informativo. Disponível em: http://www.mmcbrasil.com.br/site/. Acesso em: 05 de dezembro de 2013.

NAUJORKS, Carlos; SILVA, Marcelo. Teorias da Identidade e Movimentos Sociais. Anais do III Seminário Nacional e I Seminário Internacional Movimentos Sociais Participação e Democracia. UFSC, Florianópolis, 2010.

PAULILO, Maria Ignez. Intelectuais e Militantes e as Possibilidades de Diálogo. Anais do III  Seminário Nacional e I Seminário Internacional Movimentos Sociais Participação e Democracia. UFSC, Florianópolis, 2010

SANTOS, Boaventura de Sousa; NUNES, João Arriscado. Introdução: para ampliar o cânone do reconhecimento, da diferença e da igualdade. In: SANTOS, Boaventura de Sousa (org.) Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitismo multicultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

SCHERER-WARREN, Ilse. Das Mobilizações às redes de Movimentos Sociais. Revista Sociedade e Estado. Universidade de Brasília, Brasília. 21, 01, 2006.

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