Geni é uma revista virtual independente sobre gênero, sexualidade e temas afins. Ela é pensada e editada por um coletivo de jornalistas, acadêmicxs, pesquisadorxs, artistas e militantes. Geni nasce do compromisso com valores libertários e com a luta pela igualdade e pela diferença. ISSN 2358-2618

teatro

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Capulanas Cia. de Arte Negra

Protagonismo feminino na arte negra contemporânea. Por Adriana Paixão

Publicado em 11/05/2016

Capulanas surgiu na cidade de São Paulo, em 2007, composto inicialmente por quatro jovens negras moradoras da periferia sul: eu – Adriana Paixão, Debora Marçal, Flavia Rosa e Priscila Obaci. Éramos, naquela ocasião, recém-formadas do curso de graduação em Artes do Corpo, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

 

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A primeira montagem teatral do grupo foi Solano Trindades e suas negras poesias, onde buscamos compreender o lugar da presença feminina, reelaborando a obra de Solano Trindade nas perspectivas do teatro negro. Essa ideia foi fruto da constatação imediata da quase total ausência de vozes de mulheres negras na nossa construção estética e política.

 

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Ao refletir um horizonte de mudança e transformação nas relações sociais, raciais e afetivas, nossas peças e montagens envolvem as questões dos vários níveis da saúde da mulher e das mulheres negras, frisando as suas especificidades históricas e culturais. A localização e quebra dos processos sociais de dominação e adoecimento só encontram respostas no que entendemos por ancestralidade. Um sagrado feminino que produz a exortação ao autorreconhecimento, a busca de uma origem africana atemporal e mítica capaz de refazer o caminho de liberdade, emancipação e superação da dor e do silêncio.

 

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Quando trazemos a questão da saúde, não se trata da patologização das mulheres negras, tal como fizeram os médicos psiquiatras diante das religiões negras no final do século XIX; mas de propor a abertura de um debate franco sobre os efeitos psicossociais do racismo e machismo combinados. E o possível encontro da cura, que não é tanto física, mas sim, uma cura social; algo que ocorrerá no âmbito da cultura. Busca-se uma nova forma de vivência entre iguais, mas também entre diferentes. Uma autoconstrução-reconstrução das mulheres negras. O foco é um ato de “resistência cultural”, como abordado por Kabengele Munanga.

 

Estamos, em termo de grupo, em processos intelectuais pessoais, em diálogo constante com pensadoras negras como Beatriz Nascimento e bell hooks, que nos apresentam novas possibilidades de abordar os estudos de gênero e etnia. Elas sustentam que há a necessidade de dês-coisificação do corpo e do sexo da mulher negra, que tentam escapar do estigma e da pretensa erotização exacerbada, uma das imagens projetada sobre seu corpo. Busca-se uma equiparação sexual e racial dos lugares de poder e de fala na sociedade.

 

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Coletivamente, os projetos engendrados pelas ativistas negras ao longo do século XX, e que legaram algum tipo de registro, nos dão uma mostra da dimensão maior da problemática de gênero e raça. As mulheres negras situadas na última escala da hierarquia social foram e são vitoriosas na manutenção das famílias escravizadas e na luta pela liberdade de si e de seus companheiros. Além disso, têm sido guardiãs dos legados ancestrais, como no caso dos saberes religiosos do Candomblé e da Umbanda. Contudo, elas ainda hoje têm dificuldades na transmissão desses legados históricos, ou mesmo na conservação da própria memória das suas lutas específicas contra a dupla dominação.

 

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Examinando o discurso político e as práticas estéticas de Capulanas em um todo, mas, sobretudo, em nossa segunda montagem teatral Sangoma – Saúde às mulheres negras (2013), que dialoga muito mais com as experiências de silenciamento e invisibilidade, articulamos elementos de uma estética negra, como musicalidade, religiosidade, corporalidade e ancestralidades africanas e dessa maneira fazemos parte da tradição afro brasileira do saber e fazer teatral urbano constituído no século XX.

 

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Pensando dessa forma, ao enfocar a produção de Capulanas Cia de Arte Negra, estamos diante da utilização desses elementos simbólicos que criam novos significados de pertencimento e são realocados para uma linguagem específica dramatúrgica e cênica, concebidos como discursos estéticos identitários e diaspóricos.

 

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Numa perspectiva de teatro identitário concebido como forma de engajamento cultural, social e político, nós vislumbramos o surgimento de uma nova consciência do feminino, que seja capaz de reverter esse quadro de silenciamento, dor, abandono e opressão social. Visamos à ação política de enfrentamento do racismo antinegro, por entendermos que o direito a saúde passa por esferas individuais e coletivas. Observamos os processos de silenciamento das mulheres negras na sociedade brasileira e estamos rompendo com diferentes formas de submissão, enfatizando as lutas pela cura, pela autoestima e pela beleza. Essa luta cujos registros são poucos e normalmente considerados ilegítimos ou desprezíveis aos olhos da sociedade.

 

Capulanas se escrevem em uma perspectiva histórica ligada a essas tantas mulheres negras que romperam com o silenciamento e denunciaram a dissimulação de toda a historiografia brasileira, nos conectando, por exemplo, a Beatriz Nascimento, mulher negra intelectual e ativista na década de 1970, que defendia a transmigração às questões da mulher negra, sua representação social, imagem e fortalecimento da auto-estima. Beatriz foi silenciada e brutalmente assassinada como tantas outras das quais temos que cavar até localizarmos as “memórias subterrâneas” – parte integrante da nossa cultura – e deixarmos os referenciais da memória nacional, que uniformiza e evidencia o que é de interesse de quem produz a memória oficial.

 

Quando o grupo Capulanas pensa em sua produção artística, considera mulheres negras tais como Beatriz Nascimento, Lélia Gonzalez, Jurema Werneck, bell hooks, Audre Lorde, Alice Walker, Sueli Carneiro, Luiza Bairros, Cidinha da Silva, entre outras; mas considera também as mulheres anônimas como as que falam nos ônibus, nas filas de atendimento hospitalar, nos corredores das universidades, nas festas populares, nos bares, embaixo dos viadutos, mulheres que não detêm toda a compreensão das categorias de dominação de gênero, etnia e classe às quais são submetidas, mas que atuam em consonância com seu tempo e condições.

 

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Entendo que nossa atuação assume o legado de luta dessas mulheres negras e projeta o fazer teatral na sua mais pura finalidade, “a liberdade para criar”, e se o teatro é livre, somos livres para falar das mulheres negras de forma poética, dramática, épica, seja como for e com todas as simbologias herdadas por nós ancestralmente. Encontramos nossas matrizes diaspóricas no sustentáculo da oralidade, musicalidade, territorialidade e corporalidade, dando suporte à base sólida da dupla identidade negra e feminina, que estruturam uma concepção artística inovadora ligada às práticas da negritude brasileira. Fazemos arte, produzimos conhecimento corporal e teórico.

 

Capulanas Cia. de Arte Negra, em termos gerais, traz em seu repertório a representação de mulheres negras cotidianas e complexas, expõe suas subjetividades e sua alteridade para compor a teatralidade.

 

Ilustração: Linoca

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