coluna
escola, família, Luiz Pimentel, No meio, número 0
NO MEIO | 01: Um começo
Coluna-ouvido. Esta coluna se dedica a escutar mais gente que vive no meio dos temas da Geni. Por Luiz Pimentel
Das minhas duas mãos fazer um punho e uma palma.
tento.
Acho que, um dia, quero as duas abertas, mais extensas e largas para acolher mais e só estar à disposição. não posso.
Sei que Geni é feita de combate, de vontade de gritar. Alguma bagunça, por favor! Mais barulho: se agitem, se espalhem, se entortem. Mais festa! Que desmorone tanta caretice e que renasça, dessa vez com menos nome, menos grife. (prece minha para nenhum, nenhum! deus)
Também sei que Geni vem me sendo abertura para o pasmo, para estudo, para mistura e para amar com mais graça. E (como terminou Caio F.) agradeço, agradeço, agradeço.
Se o que nos junta é a vontade de fazer girar todos os temas aqui abertos, tão do mundo quanto nossos, pois é desde dentro que a coisa pede, escrevo que é do entusiasmo desse começo que a gente está dando vazão pra se deixar viver com mais calores.
A corporeidade desse fogo é a beleza toda.
Um começo (pela mão que se estende ou permanece sem tensão). Coluna-ouvido.
Esta coluna se dedica a tentar escutar mais gente que vive em meio aos temas da Geni (gênero, sexualidade e coisas afins). Existe assim, como começa aqui, pela vontade de ouvir mais vozes que foram atravessadas por esses temas em algum momento. Temas que, acreditamos, cavam mais fundo do que uma mera reposição individual frente ao mundo. Desejo de investigar mudanças e perguntas aparecidas na vida do dia a dia, no comum, com pessoas que acabam estando no meio. Algumas delas, possivelmente, mesmo dentro dele, vão se autodeclarar fora.
Minha posição nessa escrita será a de estar no meio ou junto ou muito distante de quem estiver com as palavras. Pretendo, em todas as edições da coluna, me aproximar textualmente de alguém, por meio de uma proposição de escrita.
A partir dos temas da Geni, peço um texto para alguém lidando com uma forma previamente escolhida que possa servir para uma organização textual. Essa forma se pretende variável, às vezes carta, às vezes relato, às vezes ficção, às vezes a ser inventada.
A regra que guia minha proposição prévia para x outrx autorx da coluna é afetiva. Esse afeto é o corpo da coluna. Escutar e escrever a partir de um movimento afetivo, pois é assim que vejo os corpos dos meus parceiros da revista se moverem, pois é assim que vejo as pessoas ao meu redor lidarem, em seus minúsculos cotidianos, com o que esses temas evocam.
Esta coluna almeja o minúsculo.
Pedi a minha irmã que escrevesse uma carta pra mim, como início de conversa. Peço licença para entrar também.
Meu caro amigo, há tanto espero por notícias suas, saber um pouco mais de você, porém, hoje me desculpo e peço licença pra falar sobre mim. Aqui a vida tem se mostrado doce, divertida, mas não isenta de algum pesar. Foi bom estar um pouco longe de tudo o que já vivi ao me mudar para cá. São Paulo me remete a muitas lembranças, nem todas tão agradáveis, porém todas elas carregadas de intensidade. Engraçado como essa mudança de ares e os anos que envelheci numa nova realidade me fizeram enxergar com mais clareza minha própria imagem. Não sei o que foi mais determinante, sair do conforto e entrar em contato com o novo, estranho, ou apenas algum tempo a mais de experiência e reflexão para carregar nas costas. Só sei que foi bom sair da zona de conforto, se é que ela ainda existia.
e eu te digo, ermã (que é como eu te chamo em claro deboche aos cultos religiosos), que, pra mim, muito começou quando nossa família perdeu o dinheiro. a partir dessa falência financeira, comecei a ver mais. mirar, perceber, investigar. até o amor entrou com força nunca antes vista. dolorosa (e bem sabemos como) chance dada de escutar mais o que está à volta, entre nós.
Está certo que nunca fui uma pessoa muito comum. Comum eu digo no sentido de fazer parte, sabe? Quero dizer no sentido de estar com as pessoas no mesmo montinho. Não tem como dizer que eu não sofri. Sim, é claro. Sempre tem aquele momento em que a criança pensa que só queria ser igual, ser a primeira escolhida na educação física. Eu sempre fui da turminha dos estranhos. Eu era gordinha, não corria nada, sempre estava com o uniforme apertado ou tinha que comprar um do maior número. Seus uniformes, por exemplo, que deveriam passar para mim por herança, não serviam. Menina grande, com voz grossa, que não ligava para ir ao banheiro com um grupo de amigas, que não ficava comentando a respeito dos gatinhos da escola no recreio. Porém, mesmo no maior (e cruel) ambiente de estereótipos que é o escolar, acabei me juntando a pessoas tão estranhas quanto eu, e olha que nem de longe éramos os mais estranhos do local. Isso, de certa forma, me deixou passar imune, despercebida em meio aos “condenadores de diferenças”.
lembro, ermã, que eu dava aula para uma turma do terceiro colegial num dia atípico. estava expondo exaltado algum assunto sobre teatro e possibilidades políticas dele e percebi que todos os alunos cochichavam e riam de mim. parei o que dizia e perguntei a eles sobre o que falavam. uma aluna ergueu a mão e me perguntou se podia perguntar. eu pensei que ia perguntar se eu era gay e daí teria que parar a aula, responder e começar um debate inesperado sobre gênero, preconceito, escolhas, sexualidade… e eu não queria ter que desviar tanto assim. mas ela perguntou: –você é comunista? eu dei risada, surpreso e fiquei sem saber o que falar, nunca pensei nesses termos, não manjo quase nada sobre o comunismo, mas saiu “sou”. toda a turma começou a rir muito alto e me apontar. me bateu um cansaço de muitos séculos e séculos e séculos…
Beleza, até lá eu era um pouco diferente aqui, um tanto estranha ali, mas sempre confortável. Quando então, não mais que de repente, me dou conta de algo que já estava estampado desde o início. Meu irmão, o cara reservado, que não gostava de futebol, o qual eu achava estranho porque, apesar de bem bonito, não saía por aí contando em palitinhos o saldo de beijos da noite passada, contou à família do que seu ser se tratava. Não me contou (sim, fiquei triste), mas há tempos eu já sabia, só faltava mesmo alguém mostrar. Não sei você, mas ouvi muito a seu respeito. Coisas boas, outras ruins, como estamos acostumados a ouvir aí nas ruas. Principalmente das pessoas que vinham do velho vilarejo chamado escola, que, assim como eu, viviam naquela redoma desconhecendo o que havia a um quilômetro dali. Isso me incomodava. Não era a sexualidade de alguém que definia seu caráter. Pelo contrário, a pessoa que eu mais admirei a vida toda agora me mostrava mais uma novidade, um novo caminho, outra forma de encarar todo esse mundo que iria me surgir a partir dali.
Daí eu vim para cá. E todo aquele mundo do qual eu não fazia ideia começou a se evidenciar bem na minha cara. Gente boa, gente ruim, gente com a mesma cabeça dos velhos companheiros de Vila Formosa, gente completamente fora da casinha. O tempo passou e hoje te conto que eu finalmente saí do conforto. Me levantei, comecei a olhar ao redor e não somente aceitar, mas gostar muito das diferenças. Estar de certa forma mais sozinha, decidindo com o que lidar, o que enfrentar e fazendo minhas escolhas para o futuro me dá medo. Mas é claro. Porém, vale muito mais a pena. Me sinto livre, para escolher o que eu quiser, ser o que quiser. Só não mais livre porque acho que ainda falta muito para a sociedade se dar essa liberdade. Mas no que tange a mim, minha mente, liberdade é a palavra com a qual mais me identifico. E quanto a você? Adoraria saber que se sente livre também, ou que enxerga essa liberdade em nós.
(pausa) agradeço, agradeço, agradeço.