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PEGA NO MEU POWER | Taca pedra nessa bi

Nós bissexuais existimos. Por Sueli Feliziani

Publicado em 17/05/2016

 

Tamo cansada de saber que a gente vive num mundinho maniqueísta onde tudo se resume a dualismo complementar. Preto e branco. Macho e fêmea. Homem mulher.

O mundão heteronormativo é monossexual. E é onde convivemos com a família tradicional brasileira e movimentos de direitos humanos monossexuais de discurso violento contra a diversidade dentro da diversidade, o ódio a sexualidades não binomiais é gritante.

Essa visão dualista e exclusionária da sexualidade a gente costuma chamar de monossexismo.

 

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Cresci conhecendo pouquíssimas pessoas abertamente LGBTS. Hoje localizo minha primeira paixão homossexual aos 9 anos de idade, mas reconheço que me era impossível pensar em emancipação sexual até muito depois dos vinte anos. De onde eu venho, não é possível a você transitar no espectro de uma sexualidade não definida dentro da binaridade monossexista.

E eu achava bem estranho. O monossexismo heterossexual, ainda que homofóbico, só entende o monossexismo. Não é incomum ouvir pessoas heterossexuais dizerem que homens bissexuais são gays, e que mulheres bissexuais estão indecisas porque não acharam o homem certo, ou querem chamar a atenção de homens. Você pode ser gay. Você pode estar experimentando. Mas você não pode ter uma sexualidade que varie de objeto.

A não monossexualidade é algo tão incompreensível para o universo monossexista que ela povoa o imaginário destas pessoas com grandes expectativas e medos irracionais frutos da hiperssexualização e da mitologização do que não se consegue compreender. A mulher bissexual é vista como aquela que tem o desejo irrefreável. Que gosta de tudo, com todos. A que nunca diz não. E que está sempre de olho na próxima transa. Na próxima vítima. Inconfiável. Incorrigível. Indecisa. Inconsequente.

Estuprada pra se decidir. Casada na adolescência para aprender a gostar de homem. A que se precisa domar. A que não pode dizer sim. E que não tem direito ao não.

 

Diversidade pra quem?

 

A sociedade heteronormativa é monossexista por compreender o relacionamento homem e mulher como único possível, mas não é a única forma de monossexismo possível. Há monossexismo até no meio LGBT.

Bissexualidade no meio LGBT é muitas vezes descrita como fragmento lesbianidade, como a identidade recortada do outro, e esse apagamento é o retrato pintado da sexualidade não mono na sociedade monossexista. O contrato feito entre a heteronorma e a homonorma de que bissexuais não existem.

Se você não cabe no espectro binarismo excludente sexual você é um pedaço que não cabe no quebra cabeça das relações. Você não cabe no binário homem-ou-mulher. Você é a aberração dentro da aberração. A mancha na política de respeitabilidade da sigla da minoria. O desvio que dá bad name ao amor diverso. “Lutamos tanto para sermos respeitados, e agora vem vocês com putaria.

Agora eu pergunto: diversidade tem limite?

 

Você pode até romper com estereótipos. Ser pós-moderna. Romper com a heterossexualidade compulsória tão alardeada. Pode até pertencer ao movimento LGBTQI… desde que você não seja bi.

Aliás, segundo algumas vertentes por aí, você pode até ser bi, desde que você seja lesbocentrada, ou seja…. lésbica…

Aliás, o B da sigla poderia ser de beterraba que ninguém ligaria menos.

Pode até ser boy e gostar de boy.

Pode até ser girl e gostar de girls.

Agora vai você ser mulher, e gostar de Boys and Girls.  De Boys, girls e outres. Tá fodida, meu amor.

 

“São vetores de doenças”

“São promíscuos e nada fiéis. Traem seus parceiros com frequência, e é por causa deles que várias doenças atingem pessoas ‘normais’”.

“Eles fazem de tudo na cama, são pessoas que não têm limites no sexo”

 

Poderiam ser falas de conservadores dos anos 50 sobre homossexuais before Stonewall, né? Pois não são. São comentários em uma comunidade mista LGBT da qual eu participei por um tempo.

Violento, né? Triste.

Então, em grupos exclusivos de mulheres não muda muito:

 

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O discurso inclui nos chamar de depósito de esperma, vetores de doenças, nos culpar a cada vez que uma moça tem algum problema ginecológico comum como cândida, ou a planificação do comportamento bissexual como falocêntrico, mesmo sabendo que muitas bissexuais não podem muitas vezes assumir seus relacionamentos, como toda mulher que se relaciona com mulheres, e que nós vivemos num mundo que mata mulheres que se relacionam com mulheres.

E apesar da lenda urbana de que toda mulher bissexual tem vários privilégios, elas vão sofrer as consequências sociais dessa leituras em todos os ambientes.

Algumas são expulsas de casa e perdem apoio da família, até em caso de doenças mentais graves: presenciei isso nas três clínicas onde eu estive internada. A falta de suporte familiar e de residência fixa reflete na estabilidade econômica e social dessa mulher. Algumas não podem se relacionar abertamente com mulheres sob risco de perder a guarda dos filhos, pais ameaçam as ex-companheiras até de morte em caso de relações com outras mulheres ou em caso de uma não decisão consciente de se “curar desse comportamento promíscuo e imoral” [quote do ilustre ex-marido de uma amiga], principalmente em periferias e zonas de baixo idh. Algumas sofrem violência verbal e física nas quebradas onde moram. Algumas apanham de companheiros, de ambos os gêneros, por ciúme de pessoas de ambos os gêneros. Algumas são violentadas pelos companheiros. Outras são coagidas a práticas sexuais como threesomes e a relações com mais de 2 pessoas por companheiros e companheiras que confundem uma orientação não monossexual com uma obrigatoriedade de práticas sexuais coletivas, mesmo sem a vontade expressa dessa mulher.

Apesar do mito de que em relacionamentos com homens somos privilegiadas socialmente as mulheres bis estão duas vezes mais propensas a serem violentadas por um parceiro do que uma mulher hétero. Somos o topo das estatísticas de estupros, abusos diversos, violência física e perseguição.*

 

A saúde mental de mulheres bi é pior em relação à depressão e as taxas de suicídio são alarmantes.

 

E a razão disso é bem simples: machismo, misoginia, hipersexualização, desumanização, e discurso de ódio.

Estou querendo dizer com isso que a culpa é do movimento LGBT? Não.

Estou dizendo que o monossexismo atinge a sociedade como um todo. Que os discursos estereotipados abrangem toda a população que compreende a orientação sexual apenas como monossexual. Que isso cria padrões de aceitabilidade e respeitabilidade para relacionamentos. E que isso, somados a machismo, misoginia social, e discurso de ódio tornam naturais os comportamentos violentos para com uma parcela já vulnerável da população feminina.

Estou fazendo um apelo. Uma chamada à consciência. Não propague discurso de ódio às mulheres bissexuais. Reconheça o ódio naquilo que você diz sem pensar.

E pare de dizer.

Pare de naturalizar comportamentos de ódio contra mulheres já marginalizadas.

Nós bissexuais existimos. Vamos continuar existindo.

E a violência contra nós, sendo naturalizada sem sequer ser discutida, continuará fazendo vítimas.

 

*O estudo é gringo, porque no Brasil a bissexualidade NÃO EXISTE enquanto discussão do movimento organizado pró direitos das minorias. A orientação não monossexual é invisibilizada ao ponto de não existirem políticas públicas, discussão social ou sequer o reconhecimento de que há uma opressão específica sobre as mulheres bissexuais.

 

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Ilustração: Aline Sodré

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