Geni é uma revista virtual independente sobre gênero, sexualidade e temas afins. Ela é pensada e editada por um coletivo de jornalistas, acadêmicxs, pesquisadorxs, artistas e militantes. Geni nasce do compromisso com valores libertários e com a luta pela igualdade e pela diferença. ISSN 2358-2618

geni no mundo

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As barricadas, as praças e as noites

Geni entrevistou o Sosyalist Feminist Kolektif, da Turquia, para saber mais sobre a revolta turca

TURQUIA (3)

A demolição de um importante parque no centro de Istambul, na Turquia, foi o estopim da série de rebeliões populares que vimos no mês de junho e que chegaram ao Brasil não apenas como notícia, mas também como referência para os protestos que tomaram conta do nosso país.

Para entender melhor a amplitude da revolta turca, Geni entrevistou o Sosyalist Feminist Kolektif, grupo feminista que tem participado ativamente das manifestações. Também traduzimos e publicamos um comunicado do SFK à imprensa, em que o coletivo faz um resumo de sua participação nos protestos e reitera seu compromisso com a libertação de mulheres e de LGBTs. Nesse comunicado, elas afirmam: “a paz não é possível sem as mulheres”. Nós, da Geni, fazemos coro: a luta também não.

TURQUIA (1)

É verdade que os protestos começaram com um grupo que incluía feministas e pessoas do movimento LGBT? Qual foi o seu papel no início das manifestações? Qual o papel de vocês agora?

Antes do grande movimento de resistência que começou por causa do Parque Gezi, a iniciativa civil fundada para proteger o parque incluía feministas, LGBTs, arquitetxs e urbanistas. O parque não estava na agenda política da maioria das pessoas ou outros grupos. No entanto, quando a iniciativa civil iniciou a resistência contra a pilhagem do parque em 27 de maio, dia após dia foi ganhando adeptxs nas multidões e grupos que protestavam contra outras questões: os ataques violentos do Partido da Justiça e Desenvolvimento (PJD) em 1º de maio e em outras manifestações; suas políticas de guerra; os ataques ao sistema de educação e a violência contra xs estudantes; os projetos de construção e transformação urbana que estão sendo realizados em todo o país, que deslocam e desalojam muitas pessoas, além de destruir espaços públicos e da natureza; as usinas e barragens sendo construídas, privando as pessoas de sua subsistência e destruindo a ecologia; os esforços para controlar o corpo das mulheres, proibindo o aborto e impondo que toda mulher tenha três filhos; as condições precárias de trabalho que estão em vigor e, por fim, os ataques a diferentes estilos de vida, tais como as novas proibições sobre o álcool. Hoje, o antigo grupo que se organizou e trabalhou desde o princípio sob o nome Solidariedade com Taksim ainda tem influência, mas agora o movimento é de massa – começou com uma demanda para proteger as árvores e levou à demanda de que Tayyip Erdoğan [primeiro-ministro turco] renuncie.

Embora uma multiplicidade de reivindicações esteja sendo expressa ao mesmo tempo, o Solidariedade com Taksim tem cinco demandas concretas para o governo:

– Que o Parque Taksim Gezi não seja reformado sob o nome de Quartel de Artilharia ou qualquer outro projeto; que uma declaração oficial sobre o cancelamento do projeto atual seja feita; que as tentativas de demolir o Centro Cultural Ataturk cessem.

– Que sejam demitidos de seus cargos: os agentes responsáveis pelos milhares de pessoas feridas e pelas três mortes, aqueles que impediram o exercício dos direitos democráticos mais básicos das pessoas, que deram ordens para repressão violenta ou que executaram essas ordens, começando pelos governadores e os chefes de polícia de Istambul, Ankara, Adana e Hatay; que o uso de bombas de gás lacrimogêneo e outros materiais similares seja proibido.

– Que xs cidadãs/ãos detidxs por participarem da resistência em todo o país sejam imediatamente liberadxs e que se faça uma declaração oficial afirmando que elxs não serão investigados.

– Começando pelas praças Taksim e Kizilay, que a proibição de encontros e manifestações em todas as nossas praças e áreas públicas seja abolida; que todos os bloqueios ilegais cessem; que os obstáculos à liberdade de expressão sejam removidos.

Vocês veem alguma semelhança entre os protestos no parque Gezi e os da Primavera Árabe? O que a mídia turca e os movimentos sociais estão dizendo sobre isso?

A semelhança é que, como as resistências na Primavera Árabe, Gezi é uma resistência em massa, na qual todos os movimentos sociais se uniram contra o PJD. Também neste caso, a mídia social tem desempenhado um papel importante, e muitas pessoas que não pertencem a nenhuma organização se uniram ao movimento.

No entanto, uma diferença é que não somos contra um ditador, mas contra as políticas neoliberais. Com as suas políticas no Oriente Médio, os ataques contra a Síria, melhores relações com Israel e o processo de paz com o movimento curdo, o PJD ganhou poder na região.

Nós também acreditamos que há outras diferenças, como a maior participação das mulheres, menor influência do islamismo político e a diversidade de demandas na resistência Gezi. Na Turquia, não há uma forte oposição organizada. Solidariedade com Taksim tem uma composição muito complexa, e nos organizarmos em torno de um programa comum não é possível no momento, mas pode ocorrer no futuro. No entanto, Tayyip Erdoğan perdeu força neste processo e o governo não será capaz de fazer leis ou agir como quiser.

Existem manifestantes contra a demolição do Parque Gezi que são contra os direitos de mulheres e LGBTs? Ou vocês acham que todxs têm uma agenda comum para os Direitos Humanos?

A agenda comum dxs socialistas, ecologistas e das mulheres são os direitos humanos. As pessoas que estão resistindo aos ataques ao espaço público e a seu direito de viver livremente se uniram em princípios comuns fundamentais. Elxs também têm diferentes demandas e objetivos, mas não violam os direitos LGBT e das mulheres. Acreditamos que há algumas pessoas, provocadorxs, que são contra os direitos das mulheres e de LGBTs.

Na opinião de vocês, qual é a maior ameaça para os direitos LGBT e das mulheres nos dias de hoje na Turquia? Como vocês planejam lutar contra essas ameaças?

O aumento do número de assassinatos de mulheres, os esforços para proibir o aborto e evitar o controle da natalidade e a condenação das mulheres ao trabalho precário são as principais ameaças contra as quais temos organizado campanhas recentemente. E indivíduos LGBT estão se organizando para alcançar a igualdade de direitos e combater a violência dirigida contra eles. Segue anexo o nosso recente comunicado à imprensa.

Comunicado à Imprensa

Os protestos que começaram contra a pilhagem do Parque Gezi, em Istambul, continuaram devido à revolta da população contra o governo do PJD e de seu primeiro-ministro, Tayyip Erdoğan, transformando-se em uma resistência ativa em 76 cidades. Essa grande resistência vem ecoando a rebelião das mulheres desde o princípio.

Nós tomamos as ruas contra o sistema patriarcal que limita as mulheres às famílias e às casas e deixa o espaço público aos homens. Lutamos para estar presentes de forma livre e igualitária nos centros das cidades, avenidas, ruas e parques. Lutamos contra os tanques de controle de multidões e o gás lacrimogêneo da polícia, lutamos nas barricadas, organizamos a resistência em bairros e praças da cidade, estamos nas ruas. Agora, declaramos que não vamos deixar esses espaços que ganhamos com a resistência.

Quando soubemos que o nosso direito ao aborto iria nos ser tirado, nós, milhares de mulheres, estávamos juntas. Rebelamo-nos quando o PJD interveio na forma como vivemos, em quantos filhos temos e no que vestimos. Contra as imposições sobre os nossos corpos e identidades, nós gritamos juntas: “É a nossa vida, a nossa decisão”.

Ocupamos as ruas contra o sistema patriarcal e o conservadorismo reforçado pelo governo do misógino Tayyip Erdoğan, contra o assassinato de mulheres e contra o aumento da violência contra as mulheres durante o reinado do PJD.

Descortinamos políticas heterossexistas do PJD, aprisionando mulheres dentro das casas, impondo-lhes o ônus de cuidar da criança e de todos os outros trabalhos domésticos, equacionando mulher e família e controlando os corpos e a sexualidade das mulheres.

Revelamos como o governo, ao gabar-se do aumento do emprego feminino, explora as trabalhadoras, condenando-as ao trabalho precário. Em resistências e greves, nós lutamos por nossos direitos trabalhistas e por segurança.

Dissemos, repetidas vezes, que as guerras atingem as mulheres duplamente. Nós – turcas, curdas, circassianas e mulheres Laz – acreditamos na solidariedade das pessoas, na paz contra a guerra. Enfatizamos que a socialização da paz exige a participação feminina e afirmamos que a paz não é possível sem as mulheres.

Estudantes secundaristas e universitárias que lutam na frente desta grande resistência transformaram a rebelião em esperança. Como mulheres, afirmamos que nossa natureza, água, córregos e bairros construirão, juntos, uma cidade onde possamos viver de forma igual e livre.

Hoje vamos continuar a nos rebelar na rua. Somos mais poderosas agora porque milhares de mulheres marcham para que, futuramente, possam andar sem medo nas mesmas ruas que antes as deixavam intranquilas. Contra o desejo de nos aprisionar em nossas casas, panelas e frigideiras são agora ferramentas para protestos que irritam nossos inimigos.

Nos protestos que começaram pelo Parque Gezi, posicionamo-nos contra insultos misóginos, sexistas ou homofóbicos. Nas barricadas, resistimos, juntas, com indivíduos LGBT e mulheres profissionais do sexo.

É óbvio que o governo misógino do PJD está assustado. As mulheres não deixarão as ruas e praças de Istambul, Ankara, Eskişehir, Izmir, Hatay, Dersim e Antalya, e não voltarão para suas casas. A resistência continuará até ganharmos todos os nossos direitos e todas as ruas serem nossas.

Preocupamo-nos com o futuro de todas enquanto essa mentalidade que instiga a hostilidade contra as mulheres prevalecer e Tayyip Erdoğan continuar a governar. Como bradamos várias vezes em nossos protestos, continuaremos a resistir pelo direito de viver e pela nossa liberdade.

Continuaremos a nossa luta e permaneceremos nas ruas até conseguirmos uma “vida sem Tayyip e uma vida sem violência”. Não deixaremos as barricadas, os parques, as praças ou as noites.

Sosyalist Feminist Kolektif

TURQUIA (2)

Tradução: Clara Lobo

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