Geni é uma revista virtual independente sobre gênero, sexualidade e temas afins. Ela é pensada e editada por um coletivo de jornalistas, acadêmicxs, pesquisadorxs, artistas e militantes. Geni nasce do compromisso com valores libertários e com a luta pela igualdade e pela diferença. ISSN 2358-2618

masculinidades

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Hétero sensível

Acho que resume bem. Por Anônimo

 

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Gosto de menina, sempre gostei. E tenho dificuldade de ser igual aos homens-normais.

 

Não era meu problema. Meu problema era não ter amigos. Desde criança.

 

É um perfil, eu acho. Grandes amigas, poucos amigos, muitas namoradas bravas, meio masculinas.

 

Sentir raiva, a cabeça ferver, vontade de socar alguma coisa. Chorar, se emocionar. Não tinha essas coisas. As coisas dentro de mim que tinham que vibrar pra criar isso, eu não tinha; ou as tinha quebradas, subnutridas ou inexistentes.

 

Foi pra me proteger da minha mãe. Que é quebrada e brava. Se eu pequeno não sinto, eu sobrevivo.

 

Uma boa alma me encontrou. Uma terapeuta. Foi aquecendo com calma meu peito, inflando vida, soltando as vísceras, o sangue pulsando mais, tomando o corpo. Foi me nomeando as coisas que eu ia sentindo. Explicando como funcionava.

 

Tinha me escondido na cabeça, agora ia descendo.

 

**

 

Na cabeça. Muita concentração. Cada pequeno movimento dos outros. Uma respiração. Tudo podia significar alguma coisa. Pra me relacionar, puxava os assuntos das pessoas. Ao dentista, perguntava os detalhes das técnicas. As pessoas começavam a falar de si.

 

Pras meninas, que sempre sentiam tanto. Eu era ouvido.

 

Quando minha terapeuta me puxou pro corpo, uma vez ela me jogou pros homens. Começou a me explicar assertividade. Ao invés de me dobrar e escorregar e envolver – ficar parado, encher, olhar o olho. Desafiar. Estar presente.

 

Comecei a ter direito a sentir junto com os outros. Meu corpo podia me proteger. Agora que era mais duro. Mais cheio.

 

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Depois de muito tempo de terapeuta, fui parar num escritório só com homens. Um lutava jiu-jítsu, o outro preparava carro pra racha. Aprendi a fazer bullying. E o primeiro bullying de todos é — VIADINHO! CHUPA-ROLA! QUEIMA-ROSCA!

 

Eu era destemido. Não tinha frescura. Andava com passo firme na rua, maxilar cheio.

 

E nesse momento qualquer coisa muito sensível me dava coceira por dentro. Não queria.

 

Falar que nem homem. Bater forte no ombro.

 

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Quando eu era menor tinha essa ideia de uma sociedade ideal. Era um lugar onde as pessoas eram doces. Dava, por exemplo, para trocar de família várias vezes e experimentar muitos afetos diferentes. Os contatos com as pessoas não eram sufocantes e cheios de bullying, eram criativos em muitas maneiras. Sempre achei pobres as possibilidades de contato que existem. Podiam ser tão mais.

 

Tinha, no entanto, essa pulga: a sociedade da gente é mesmo chata ou sou eu que não sei ser feliz nessa sociedade? Minha terapeuta me fez experimentar (ao longo de muitos anos) jeitos de me relacionar, jeitos muito básicos, que quase todo mundo tem e que eu não tinha.

 

Quando eu estive entre os homens do escritório, vivi uma coisa que sabia que existia em teoria, mas que nunca tinha experimentado: irmandade de homens. Foi muito bom. Finalmente ter um pouco de cumplicidade com essas masculinidades. Eu desconfiava com muita intensidade que existia uma coisa gostosa de viver nesse jeito de viver deles; existia mesmo.

 

Combinava uma boa dose de agressividade com amor.

 

Logo depois disso, saí desse emprego e comecei a conviver bastante com os moços e moças da Geni. Foi bom me reencontrar. Estar entre homens doces e ser doce (como sempre fui).

 

Me olhando, meu homem, minha sexualidade e meus desejos. Uma coisa que ficou objetiva lendo Geni é o tamanho da violência a que ficam expostos os que tem sexualidade e gênero não convencionais. Muita violência física, apedrejamento, espancamento, morte. E muita violência simbólica (que machuca tanto).

 

Percebo o quanto tenho medo e sofreria se fosse homossexual. Viver as rejeições estúpidas que o preconceito proporciona me machucaria muito.

 

Meu desejo sempre foi pras mulheres. Mas me pergunto se, em uma sociedade que visse com bons olhos ser homossexual (bi, trans etc.), meu desejo poderia se moldar de um jeito diferente.

 

Ainda tenho essa opção. Estou, por outros motivos, um pouco estacionado, parado no ar. Um pouco distante dos meus desejos. E, quando mergulhar de novo num fluxo mais intenso, sei que esses ingredientes todos vão estar presentes: o moço doce, mil jeitos de me relacionar que aprendi na terapia e na vida, a experiência muito marcante de ser um homem entre homens-normais e meus desejos fortes de viver além dessas bordas que essa sociedade dá.

 

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Ilustração: Bruno O.

 

 

 

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