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Lutas pelo aborto no Uruguai

Desafios no exercício do direito ao aborto após a legalização. Por Leila Giovana Izidoro

Publicado em 15/07/2015

 

Era uma sexta-feira chuvosa e fria em Montevidéu quando a Geni encontrou Maru Casanova na sede da Mujer y Salud en Uruguay (MYSU), ONG feminista que desde 1996 promove a defesa dos direitos sexuais e reprodutivos e que, nos últimos anos, vem acompanhando a implementação de políticas públicas por meio do Observatório Nacional de Gênero e Saúde Sexual e Reprodutiva. A organização tem tido um importante papel no monitoramento da prestação dos serviços de aborto legal no país após a aprovação da Lei de Interrupção Voluntária da Gravidez, em 2012.

 

 

A inserção do aborto na agenda política nacional

 

Maru, uma das ativistas mais jovens da equipe de pesquisa da MYSU, conta que desde finais dos anos 1980, com a redemocratização do Uruguai, a pauta da legalização do aborto vem ganhando voz, sobretudo pela dupla militância das mulheres em organizações feministas e dentro dos partidos políticos. “O movimento feminista uruguaio vem tratando o tema do aborto como uma questão de direitos sexuais e reprodutivos das mulheres e de justiça social, tendo em vista que as mulheres mais pobres não tinham acesso ao aborto seguro e as burguesas conseguiam fazê-lo em uma clínica privada, com todas as condições mínimas de higiene.”

A partir dos anos 2000, o movimento feminista começou a entender a luta pela legalização do aborto também como uma pauta por democracia e pluralidade, ou seja, passou-se a entender o dever do Estado de garantir que as distintas correntes de pensamentos fossem asseguradas e respeitadas. “Há um trabalho de diversas organizações e coordenadorias. A MYSU, por exemplo, começa como uma coordenadoria para trabalhar diversos temas da saúde e sexualidade das mulheres e depois se transforma em uma ONG, em 2004. Há também organizações como as Católicas por el Derecho a Decidir e o Cotidiano Mujer, que começaram nos anos 1980, além de algumas propostas legislativas de deputados e deputadas favoráveis a legalização do aborto por diversas razões.

No entanto, a maior oportunidade de avanço para a legalização do aborto se deu quando o Frente Amplio, coalizão de esquerda fundada nos anos 1970, passou finalmente a ser maioria no Parlamento. “Até 2005, a maioria parlamentar era dos setores de direita dos partidos tradicionais [Partido Nacional e Partido Colorado]. Sempre havia desculpas para não colocar esse tema em pauta, era um tema de negação durante os tempos eleitorais. No entanto, o nível de aprovação para despenalizar o aborto nos anos 2000 já chegava a 63% da população uruguaia. O que faltava era força política para colocar o tema em debate e aprová-lo”.

A força política veio com a aprovação da Lei de Defesa do Direito à Saúde Sexual e Reprodutiva pelo Parlamento no ano de 2008. “Era uma lei completa, que abarcava temas como anticoncepção, atenção na gravidez e parto, aborto e violência de gênero. Aí começou toda a discussão, já sabendo que o presidente Tabaré Vásquez vetaria a parte do aborto. E para derrubar o veto presidencial precisaríamos de muito mais votos [dois terços], necessitávamos do voto dos partidos tradicionais e eles não estavam a favor.”

Depois dessa derrota, somente no segundo governo do Frente Amplio, durante a presidência de José Mujica, é que a legalização do aborto se tornou uma realidade, por meio da aprovação da Lei de Interrupção Voluntária da Gravidez, em 2012. No entanto, o texto legal tratava do tema a partir de uma perspectiva de reconhecimento do valor social da maternidade, enquanto a Lei de Defesa do Direito à Saúde Sexual e Reprodutiva, de 2008, versava sobre o exercício pleno dos direitos sexuais e reprodutivos de toda a população, denotando-se concepções totalmente diferentes entre a lei aprovada e a vetada, no que se refere ao aborto.

 

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A quatro passos do aborto legal

 

A Lei de Interrupção Voluntária da Gravidez prevê a despenalização do aborto nos casos em que a mulher que deseja abortar cumpra todos os requisitos nela estabelecidos, isto é, que passe por um processo composto por quatro etapas. A primeira é o contato inicial que a mulher terá com o serviço, a fim de fazer exames e verificar se a situação da gravidez está dentro do prazo legal para abortar – doze semanas, quando se trata de opção voluntária da mulher, ou quatorze semanas em casos de violação, quando não é preciso passar por todas essas etapas.

A segunda etapa consiste na consulta com uma equipe interdisciplinar, integrada por umx ginecologista, umx psicólogx e umx assistente social, que assessoram a mulher dando informações suficientes para que ela possa tomar uma decisão consciente. A partir daí, a mulher tem cinco dias de reflexão mínima para decidir se deseja seguir a interrupção da gravidez ou não. A terceira etapa inicia-se com a ratificação do desejo de continuar com o processo, e x ginecologista receita o medicamento, geralmente uma combinação de Misoprostol e Mefiprestona, em caso de não ser necessária uma intervenção cirúrgica. O medicamento é comprado pela mulher e ela toma em sua casa. Por fim, há um quarto passo que é o acompanhamento depois do aborto, que algumas equipes médicas não realizam porque a maioria das mulheres não volta para completá-lo.

 

 

Quando o Ministério de Saúde Pública não cumpre seu papel

 

Segundo pesquisa realizada pelo Ministério de Saúde Pública,, no primeiro ano de vigência da lei, em 2013, 6% das mulheres continuaram sua gravidez após passarem pelo serviço e em 2014, esse índice aumentou para 9%, havendo um aumento de 30% no número de mulheres que decidiram seguir a gravidez entre esses anos. “O Ministério de Saúde Pública considera que quanto mais aumenta essa porcentagem, maior êxito está tendo a política pública. Há uma supervalorização da maternidade, somada à ideia de que o aborto é uma prática não desejável, e, por isso, se a mulher decide continuar com a gravidez é um bom sinal.”

Além disso, há mulheres que relatam maus tratos no atendimento e a existência de equipes médicas que as colocam frente a um verdadeiro Tribunal da Inquisição. “Há equipes interdisciplinares tentando convencer as mulheres para que não abortem, quando a equipe deveria ser neutra, assessorá-la e deixar que a mulher decida seguir ou não o processo. Os cinco dias de reflexão, fruto de negociação parlamentar, continuam existindo a partir de uma visão de tutela da mulher com respeito à sua autonomia e soberania sobre o seu corpo.”

Maru conta que outro tema complicado tem sido a relação entre MYSU e o Ministério de Saúde Pública. “Temos dificuldade de acesso aos dados sobre aborto no país. Os dados que podemos ter são as estatísticas que o Ministério de Saúde Pública já processa e interpreta. Há pouco tempo fizemos um pedido de acesso aos dados do Ministério baseado na Lei de Acesso à Informação Pública, que garante esse direito à qualquer cidadão, e a resposta do Ministério foi que eles estão em processo de implantação de um sistema e que, por enquanto, não contavam com as informações que pedimos. Então ainda nos falta dados para poder avaliar as políticas, há uma certa desconfiança por parte do Ministério.”

Ela também relata que no primeiro ano de implementação da lei, o Ministério lançou uma nota dizendo que em todo o país havia apenas 30% de médicos objetores de consciência, quando a MYSU encontrou 87% em Paysandú e 100% em Salto. “O Ministério não está cumprindo seu trabalho de controlador dos serviços prestados. Se não fôssemos nós monitorando isso, para o Ministério tudo estaria sendo um sucesso. Aí está a importância do monitoramento cidadão, da pressão da sociedade civil denunciando que há vários problemas na implementação da lei e que várias coisas precisam ser mudadas.”

 

 

Problemas na efetivação do aborto legal no Uruguai

 

A partir de estudos realizados por meio do Observatório, a MYSU passou a identificar vários problemas na efetivação do aborto legal no país. A primeira barreira ao acesso é a objeção de consciência, alegada por médicxs que, por questões religiosas ou filosóficas, se recusam a realizar abortos. “Em Paysandú apenas dois ginecologistas em todo o departamento praticam aborto. Em Salto, 100% dos ginecologistas eram objetores de consciência. Se não tem quem preste o serviço no território, se para ter acesso ao aborto a mulher tem que se se deslocar até Montevidéu, temos uma barreira e aí se abrem brechas para a realização de aborto ilegal ou para a continuidade de uma gravidez indesejada.”

Sendo o Uruguai um Estado laico, é incrível pensar que existam tantos médicos objetores de consciência. Na realidade, o que ocorre é devido a uma questão econômica, pois não se recebe por ato médico na realização desses abortos. “Existem médicos que estão implementando políticas públicas e outros que não estão, com a justificativa da objeção de consciência. Para resolvermos esse problema poderíamos ir pelo caminho dos atos médicos ou do mérito profissional, para impulsionar os ginecologistas a deixarem de ser objetores de consciência, mas aí perderíamos a perspectiva de que é uma obrigação dos médicos prestar esses serviços.”

A segunda barreira é o estigma que ainda há sobre a prática do aborto e o tema da confidencialidade. “No ano passado fizemos um estudo, entrevistando mulheres, e destacamos como são construídos os estigmas sobre a prática do aborto. Encontramos três dimensões. A primeira era o ‘não matarás’, ou seja, a mulher que aborta estaria matando e essa é uma conduta condenável. A segunda era o ‘ser mãe’ como mandato social, e, ao abortar, a mulher estaria negando a maternidade. A terceira dimensão era a crença de que a mulher numa situação de gravidez indesejada era uma irresponsável, porque hoje em dia há o acesso universal aos métodos contraceptivos e a serviços de saúde e sexualidade reprodutiva. Essa é uma nova forma de culpabilização da mulher que não leva em consideração a existência de outras barreiras de acesso.” Além disso, muitas vezes as mulheres conhecem os seus direitos sexuais e reprodutivos, sabem onde buscar métodos anticoncepcionais, mas na prática não podem negociar o uso com seus companheiros. “Fizemos uma enquete e 43% das mulheres tinham dificuldade para negociar o uso de métodos contraceptivos com seus companheiros. O sistema patriarcal também se instala na vida privada dos casais.”

 

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Dessa forma, no interior do país, onde as cidades são pequenas e todos se conhecem, a prática do aborto continua sendo estigmatizante e são poucas as equipes médicas que realizam o serviço. Há falta de confidencialidade, porque se uma mulher busca o apoio dessa equipe, todos saberão que ela está indo abortar. O estigma, portanto, também recai sobre a equipe, além da sobrecarga de trabalho. “Muitas mulheres dizem que não se consultariam no sistema de saúde público para praticar um aborto porque todos saberiam. Então se elas podem pagar, vão a um particular fora do Sistema Integrado de Saúde, ou seja, a uma clínica clandestina.” No Uruguai, há um Sistema Integrado de Saúde, e a interrupção da gravidez deve ser prestada tanto nos estabelecimentos públicos, quanto nos particulares. “Se alguma instituição de saúde privada, alguma mutualista, por valores filosóficos ou religiosos não realiza o aborto, ela tem a obrigação de dar informações e encaminhar a mulher que requer o serviço, passando a outra mutualista ou ao serviço público.”

 

Caminhos em busca de uma total despenalização do aborto

 

Maru relata que ainda há desconhecimento sobre a lei e algumas mulheres chegam ao serviço depois de já se medicarem por conta própria, quando essa não é a rota legal. Por essa razão, a MYSU também vem criando mecanismos de difusão do conhecimento sobre a nova lei e sobre saúde sexual e reprodutiva, por meio de folhetos e de um aplicativo chamado Sexualidapp. “A finalidade é, se for um problema que requer uma atenção de saúde, levar aos serviços e dar informações sobre os passos do aborto legal que as pessoas não saibam numa situação prática. O aplicativo nada mais é que uma forma de difusão de educação sexual em todo o país. Também temos ido às escolas secundárias, fazemos uma apresentação formal do aplicativo, para que os jovens baixem e a utilizem”.

No entanto, o aborto continua penalizado e há um mercado clandestino sustentado pelo desconhecimento da lei, pelo fato de algumas mulheres não quererem que sua intimidade seja violada ou por não terem acesso de alguma forma à rota legal. Em janeiro de 2015, levaram à prisão uma mulher, trabalhadora sexual, junto com sua vizinha, porque haviam realizado um aborto ilegal, após as doze semanas de gravidez. Elas foram recebidas com hostilidade dentro da cadeia, além dos maus tratos que receberam das outras presas por conta dos estigmas em torno do aborto. A denúncia veio de dentro do próprio bairro, uma área bastante carente em Maldonado. “Estamos falando de um caso de vulnerabilidade extrema e o Estado, o que faz, é levá-la presa. E por quê essas mulheres não tiveram acesso ao serviço legal, já que ele existe, isso ninguém pergunta.”

Casos como este demonstram a necessidade de se fazer certas modificações na lei atual, como por exemplo, no caso da objeção de consciência dxs ginecologistas, que é uma das grandes barreiras para o acesso ao aborto legal. A lei é bastante regulamentarista ao determinar que x médicx a fazer o processo de aborto deve ser um ginecologista, mas nos casos em que se precisa apenas de receita médica, isso poderia ser realizado por qualquer profissional da saúde, como médicx de família ou uma parteira. “No entanto, hoje em dia não estamos em um contexto político favorável, inclusive no Parlamento, para fazer modificações na lei. Agora está em discussão a reforma do Código Penal, e também queremos despenalizar o aborto, além de outros temas que precisam ser modificados no Código”.

Antes da experiência de 2012, o Uruguai já havia passado por um curto período em sua história em que o aborto não era penalizado, no entanto em um momento bastante diferente. No governo ditatorial de Gabriel Terra, foi criado o Código Penal de 1934, que descriminalizava o aborto e a eutanásia dentro de uma perspectiva conservadora e demográfica. Não era penalizado, mas o Estado também não era responsável por assegurar o aborto como uma política pública.” Depois foi aprovada em 1938 uma lei que voltava a penalizar o aborto, que se incorporou ao Código Penal de 1934, com inspirações fascistas e que vigora até hoje.

Em dezembro de 2014, foi discutido e apresentado um novo projeto de Código Penal, que, no entanto, representou um retrocesso na agenda de direitos do país, sobretudo em relação aos delitos sexuais. “Queriam colocar uma parte sobre a proteção e defesa da vida pré natal na parte de aborto, tratar a violência doméstica como aquela que ocorre só se o casal morar junto, exploração sexual só se houvesse dinheiro e não outro tipo de mercadoria, além de, na questão dos crimes de Estado, não englobar a tortura. Quando MYSU e outras organizações se dão conta do que queriam fazer, justamente em um período que as pessoas estão despreocupadas, de férias, fizemos um comunicado1 para frear esses retrocessos conservadores.”

O projeto foi trancado e a discussão de reforma do Código Penal segue ao longo de 2015, mas nada está assegurado. “Podemos ter leis, mas se as mulheres não têm acesso ao serviço, se mulheres e homens não conhecem seus direitos, se os pró vidas continuam operando e inclusive com contatos dentro do Parlamento, se não se tem uma cidadania ativa e organizada, no dia de amanhã não sabemos o que pode acontecer. Minha avaliação geral sobre o aborto é que pelo menos temos uma lei e há um serviço para a mulher que deseja abortar, mas falta um caminho ainda. Foi um avanço, mas temos que continuar avançando. E também nos assegurar para não perder aquilo que já conquistamos, todo o movimento feminista que vem nesses últimos 25 anos lutando pela despenalização do aborto no futuro não estará mais. Ou seja, as jovens feministas de hoje temos que ficar atentas a isso.”

 

Referências

Maru Casanova

Mujer y Salud en Uruguay (MYSU)

Lei de Defesa do Direito à Saúde Sexual e Reprodutiva

Lei de Interrupção Voluntária da Gravidez

 

 

[1] http://www.cotidianomujer.org.uy/sitio/85-proyectos/derechos-humanos/1132-reforma-del-codigo-penal-declaracion-de-las-organizaciones-de-la-sociedad-civil

 

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Ilustração: Aline Sodré

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