Geni é uma revista virtual independente sobre gênero, sexualidade e temas afins. Ela é pensada e editada por um coletivo de jornalistas, acadêmicxs, pesquisadorxs, artistas e militantes. Geni nasce do compromisso com valores libertários e com a luta pela igualdade e pela diferença. ISSN 2358-2618

primeira pessoa

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Na cadeira com satã

Puf. Por Thiago Nagafuchi

Publicado em 15/07/2015

 

Elas estão comigo já faz certo tempo, tanto tempo que não lembro bem quando olhei no espelho e vi a pele deformada e esquisita que atravessava o meu reflexo e era, por meio de processos fisiológicos complicadíssimos, sempre interpretadas por filtros socioculturais tão complexos quanto. Diante de mim e em mim estava o meu corpo; sua pelagem curta, a cintura fina demais (na época), as pernas que se dobravam para trás como que ao contrário, a completa ausência de músculos visíveis, rosto fino e cabeça ovalada e grande demais, dentes amarelados que se projetavam para frente (e aquele dente quebrado que durou tanto tempo), a escoliose, as orelhas de abano, o cabelo ‘ruim’ (crespo, mas desde cedo foi chamado de ruim), o olho marrom escuro e míope (dois deles), as explosões acneicas e a pele oleosa que fritaria um ovo ali mesmo, na cara. E elas ali, na ausência de cintura, na ausência de coxas, na ausência de bíceps e tríceps. Acho que elas sempre estiveram ali. Aqui, aliás, comigo.

A primeira crítica foi meu pai quem fez, geralmente é a mais cruel, durante um exame clínico, daqueles que a gente faz para saber se um (possível) tumor é do bem ou do mal; nem era tumor. Era sebo mesmo, resultante de um corpo que produz queratina demais. Essa crítica, essa que era a primeira, veio acompanhada de um “Como pode? Tão magro!” porque parecia quebrar uma lógica bastante inescapável de que esse corpo, um corpo que pesava muito menos que o peso da normalidade do corpo, e que a gravidade houvesse de confirmar o que sobretudo a sociedade médica estipulava, mas fincada com raiz e tudo em todas as demais sociedades, (esse corpo) não devia carrega-las assim, em tamanha quantidade, dando contornos dérmicos e dramáticos naquela incorpulescência já tão esquisita e mal formada, já tão necessariamente ausente de tecido adiposo e que justo na confusão ilógica do meu pai conseguiu também quebrar a minha lógica ali mesmo, diante do médico.

Estou nu diante do espelho: hoje eu já tenho muito mais barriga, colesterol alto (meu sangue A negativo carrega mais moléculas de gordura do que a sociedade médica acha razoável (porque, provavelmente, essas moléculas vão se prender na parede das minhas artérias e vão se acumular até fecharem por completo a passagem de sangue e, ao que parece, isso vai me matar; veja bem, para um cadáver tanto faz tanto fez ter gordura demais no sangue). Miopia mais acentuada (talvez por um misterioso problema na retina). Barba rala e confusa, cabelos curtos (bem curtos, gosto de sentir o vento passando pelo cocuruto enquanto estou no ônibus, desde que sentado numa janela). Nariz e todo aparato nasal que gosta de rinites e sinusites, mais pelos na perna, mais pelos no peito, pelos que vão do umbigo até o sexo, e que dali continuam. Lembro da ululante curiosidade pré adolescente que me fez pegar um espelho e analisar toda aquela parte do corpo que eu jamais poderia ver a olho nu (até então, na minha cabeça, embora sempre tenha sido dito que sou um homem, só eu mesmo provaria o contrário caso naquela região pudesse existir uma vagina e que desse encontro resolvesse dúvidas diversas sobre muitos aspectos da vida; mas o não encontro, naquele momento, só me trouxe ainda mais dúvidas). Pelos no nariz que de vez em quando saltam para fora, muitos pelos na sobrancelha, pelos claros e bastante finos no lóbulo das duas orelhas (se eu chegar na velhice eles estarão mais vívidos e fatalmente cinza). Dedos que sempre soltam pequenos pedaços de pele na região da unha e isso gera dor, pés muito idênticos ao do meu pai (largos na região dos dedos) e com esporão do lado esquerdo, pele menos oleosa (mas a acne ainda teima na região do queixo), enfim. E lá estão elas ainda mais numerosas e aparecidas, vão dos pés à cabeça em porções significativas. Basta apertar a pele.

 

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Quando eu me sento eu posso vê-las bem claramente.

Puf.

Aparece Satã. Devia ter uns três ou quatro anos, ainda por formar meu entendimento de mundo, buscando referências entre uma mamadeira e outra (usei mamadeira até os nove), e de presente ele me dá um corpo; sobretudo o meu corpo. Estou sentado no limite da cadeira, com as pernas balançando pendularmente e sem ritmo, com as duas mãos apoiando no estofado da cadeira. Ao lado de cada uma das pernas, respectivamente direita e esquerda, sandálias e meia, bermuda curta e camiseta suja de tanto brincar. Recebe esse corpo. Ave verum corpus.

Puf.

Rejeito esse corpo desde sempre. Na adolescência era pior porque a rejeição virava ódio e o ódio se transformava em carne, minha carne, que na adolescência eu espancava com socos e objetos, eu espancava e gritava essa voz que se formava na garganta. E era resultado da vibração das cordas vocais desse mesmo corpo. Nos piores dias eu não deixava esse corpo sair de casa porque as pessoas não mereciam vê-lo. O meu sonho era escondê-lo dentro de mim, mas ele já estava do lado de fora. O meu sonho era dormir e acordar em outro. Quando eu acordava em mim mesmo eu chorava e não deixava esse corpo sair por aí; e mais que sair por aí, eu não deixava esse corpo sair de mim, muito menos para o corpo de outro. E aí estava o meu inferno. Dentro de mim, eu negava o que por fora era inegável. E que no final das contas transfigurou o corpo que eu não tinha naquilo que foi, inegavelmente, tudo o que eu sempre tive: eu deixei meu corpo destruir a minha adolescência.

Puf.

Satã ri porque ele deve ser muito engraçado. Quando ele sub-repticiamente cessa o riso para me dizer quem eu sou, eu abro meus olhos míopes e vejo no reflexo meu corpo transfigurado no diabo; as duas pernas balançam como pêndulos sem ritmo, a mão sobre o estofado, a roupa suja e tudo o mais ali diante de mim e o diabo sorri no reflexo e ri dentro de mim. Estou sentado à direita de Satã e presto atenção, de forma benevolente, entre uma mamadeira e outra no corpo diabólico ali refletido.

Puf.

Quando eu me sento eu posso vê-las claramente. Basta apertar um bocado de pele e lá estão elas todas. Eu pesquiso no Google e ele me diz que elas não costumam aparecer nos corpos masculinos, mas que diabo! Pesquiso novamente e lá estão elas, lipodistrofia ginoide; gordura, água e toxinas nas células; cheias e endurecidas; desníveis, ondulações, retrações e nódulos e o diabo a quatro. Causa desconforto nas mulheres. Nova busca. Homens. Alteração na produção de hormônio, dieta rica em gorduras e pouca atividade física. Causa desconforto nos homens. Pratique musculação, coma mais saudavelmente, (reticências), não vá à praia de sunga, não dobre a perna, não fique com postura ruim, não fique parado, não coma, não beba, não exista.

Não é possível, esse corpo, esse mesmo corpo que tem insônia durante a noite e hipersônia durante o dia, que permanece em pé à base de psicotrópicos, que é corcunda quando senta e quando fica em pé, que dói quando está gripado, que tem um sistema digestivo sensível, que tem alergia à poeira (ácaros), que fica cansado depois de um dia de trabalho, que anda, que come, que deita, que um dia vai virar pó, esse mesmo corpo, não é possível que seja esse mesmo corpo que pode tremer de prazer. Não é possível que meus ossos sejam a grade da minha prisão e do meu inferno pessoais. Não pode ser.

Puf. Satã fica.

Eu, nu, rio. Apareço diante do espelho e rio disso tudo. Não há nada melhor a fazer diante do meu corpo nu, então eu rio. Sorrio e transfiguro em mim mesmo, in monte Oliveti, à visão de mim mesmo. Eu e minhas celulites; elas ficam.

Estou nu diante do espelho: hoje eu dou conta de que estou bem, estou escrevendo um texto em que me desnudo completamente e aperto um pedaço de pele diante dos meus espectadores, olhem aqui, elas são numerosas, estão em toda parte e fazem com que eu pareça uma laranja desnutrida; tem gente que vai querer arrancá-las de mim com cortes, com exercícios milagrosos, com dieta pobre em gorduras e tem gente que vai querer me tolher desse mundo a todo custo porque eu carrego o que há de pior: cada celulite, cada acne, cada buraco sujo, cada excremento grotesco que sai de mim é o que eu sou e, cada vez que eu aperto um pedaço de pele e exponho para quem quiser ver do que sou feito, de fato, cada vez que meu ato recebe uma resposta negativa, eu percebo que meu ato é também um pouco político. Tivesse o corpo que fosse, ele seria perfeito. No fundo todo corpo vivo é.

Puf.

 

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Ilustração: Caio Vítor

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