Geni é uma revista virtual independente sobre gênero, sexualidade e temas afins. Ela é pensada e editada por um coletivo de jornalistas, acadêmicxs, pesquisadorxs, artistas e militantes. Geni nasce do compromisso com valores libertários e com a luta pela igualdade e pela diferença. ISSN 2358-2618

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Pesquisando a prostituição com as prostitutas

Se o feminismo procura reconstruir as histórias das mulheres na sociedade, a luta das prostitutas é também uma luta feminista. Por Letícia Cardoso Barreto

Publicado em 15/07/2015

 

Quando recebi o convite para escrever um texto sobre prostituição para a revista Geni, fiquei repleta de dúvidas. O que dizer, em poucas palavras, e que mostrasse um pouco da experiência que é fazer uma pesquisa sobre prostitutição? Como falar rapidamente sobre o assunto sem cair em clichês.

 

Após muito pensar, resolvi trazer este pedacinho da tese de doutorado que acabei de finalizar, “Somos sujeitas políticas de nossa própria história: prostituição e feminismos em Belo Horizonte” (2015), e que será defendida em agosto. Na tese, busquei analisar as relações entre prostituição e feminismos em Belo Horizonte, a partir de olhar sobre a emergência das prostitutas como sujeitas políticas e a produção do conhecimento sobre prostituição. Foi necessário mapear o contexto e atrizes que fazem parte deste processo de emergência, construindo sujeitas e subjetividades multifacetadas, e identificar deslocamentos e continuidades presentes nos discursos e conhecimentos. Foi construída uma narrativa histórica do processo de construção do movimento de prostitutas em Belo Horizonte e sua relação com o contexto nacional e internacional. Um dos principais resultados que levantei foi sobre a crescente  capacidade do movimento de prostitutas de pautar os debates relativos à prostituição e das prostitutas se colocarem progressivamente como sujeitas políticas de sua história. Além disso, ficou evidente a urgência da academia e das acadêmicas mudarem seus olhares sobre a prostituição e passarem a construir juntas um saber sobre ela, se tornando aliadas na luta, como mostro na reflexão que trago abaixo.

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Reencontros

Dia 2 de junho de 2015, aniversário de 40 anos da ocupação da igreja em Lyon, escolhido como um dos marcos fundantes da história de luta das putas. Eu estava abarrotada de trabalho para finalizar a tese, mas não podia perder aquele momento tão importante: precisava estar ao lado das prostitutas de Belo Horizonte para celebrar a data. Decido ir cedo, para acompanhar todas as atividades (ilustradas no panfleto abaixo), que incluíam shows, cadastro de prostitutas, dia de beleza, vacinação, algumas das quais realizadas por parcerias com outros grupos.

 

Em virtude da escrita da tese, havia optado por me distanciar um pouco das atividades na Aprosmig nos últimos meses, embora continuasse fazendo ações à distância, e seria uma boa oportunidade de reencontrar muitas das mulheres e de dar um retorno sobre como estava indo o trabalho. Separo dez exemplares da última remessa do meu livro “Prostituição, gênero e trabalho”, e também a versão mais recente da tese, para levar para elas, e saio cedo de casa, em direção à Guaicurus.

 

Chegando à região, sabia que o evento seria realizado no shopping popular Uai, mas decido antes passar na Associação, pois imaginei que as prostitutas e parceiras ainda estariam por lá, finalizando os preparativos. Logo na porta do estacionamento onde fica a Associação, encontro Zazá, conversando com duas mulheres e um homem, que parecia ser porteiro do hotel ao lado. Nos abraçamos, felizes com o reencontro, mas ela logo me diz que estou “sumida”, que elas precisam de mim, que não posso ficar tão distante. Peço desculpas, dizendo que a escrita já está quase acabando e que em breve as coisas voltarão ao normal. Ela me apresenta feliz para o homem “Essa é a Letícia Barreto, ela é escritora, escreveu um livro sobre nós!”

 

Vamos andando juntas para dentro da sala da Aprosmig, que está cheia de pessoas, dentre alunas do curso de psicologia da PUC, prostitutas e integrantes da Associação. Abraço Laura e Patrícia, que também logo reclamam do meu “sumiço”, e me apresentam para as alunas da psicologia “Essa é a Letícia, ela é escritora!” O clima é gostoso, de conversa, bate papo, todas ali sem se preocupar muito com o evento em curso, mas muito mais com aproveitar o momento.

 

Mostro a elas os livros que levei, dizendo que são os últimos e que podem fazer o que quiserem com eles, são presente. Retiro da mochila a versão da tese, conto a elas que está inacabada e que ainda tem muita coisa para mudar, mas que queria que vissem como está ficando, para poderem “dar palpites” e também entenderem o motivo de meu afastamento temporário. Laura logo pega a tese e começa a folhear: “olha só, meu nome está aqui! Que chique! A Laurinha está ficando famosa!”, e eu mostro a todas que a tese tem fotos delas. Começam a procurar por suas fotos e nomes. Patrícia e Zazá se incomodam de não terem achado fotos suas, e eu explico que ainda falta muita coisa na tese, e que queria, inclusive, confirmar os nomes que gostariam que aparecessem, e se era ou não para colocar imagens suas. Mostro para Zazá uma foto que pretendo colocar com ela e Patrícia, e me pede que a imprima para ela. Elas se animam, dizendo que querem nome completo e foto, e comentam felizes com as alunas o quanto são importantes, que vão ficar famosas.

 

Cada hora uma folheia a tese, procura pelas fotos e pelos nomes que aparecem e comenta tudo com as pessoas que estão na sala. Zazá diz a elas “É, gente, acho que tem muita coisa interessante aqui para a gente ler e aprender!”. Reclamam de não ter levado uma versão para cada uma “como que vai todo mundo ler? Da próxima vez traz várias!” “Ei, eu ainda não consegui olhar!” “Você vai conseguir ler tudo agora, é?”. O orgulho delas era evidente em cada olhar e cada comentário. Novas pessoas iam se aproximando e elas apresentavam a escritora da Associação e seu novo trabalho. Cidinha chega e se junta a nós na conversa e na procura por fotos e textos. Falam-me que querem ver suas imagens no livro e tiramos mais fotos para incluir.

 

O evento segue acontecendo ao longo do dia, nos diversos espaços; é um momento muito gostoso, de confraternização, descontração, reencontro. Ao falarem sobre mim, as prostitutas e as parceiras seguem me identificando com a escrita do livro, a escritora da Associação, a parceira de longa data. Prostitutas e outras pessoas se aproximam após ouvir meu nome e descrição anunciados no palco durante os agradecimentos “você que é a escritora? Quero que escreva a minha história!” “Você não vai acreditar na minha história, melhor do que a da Bruna Surfistinha, vai fazer sucesso!”

 

Reescrever nossa história

Ao sair da Associação, e voltar para casa, minha cabeça está cheia de ideias e reflexões. O texto “Falando em Línguas”, de Gloria Anzaldua, que sempre me afetou tanto, vem imediatamente à cabeça. Afinal, para que fazer uma tese? Reescrever as histórias mal contadas sobre mim, sobre você, registrar o que é apagado quando falamos, é sobre isso também a luta das prostitutas e, em parte, sua busca por estabelecer relações com acadêmicas e parceiras. E, em cada encontro e em cada escrita, vamos escrevendo e produzindo esta história e a história de cada uma de nós.


Se o feminismo procura reconstruir as histórias das mulheres e pensar outras formas de constituição destas sujeitas na sociedade, a luta das prostitutas é também uma luta feminista. As prostitutas possuem demandas claras, se organizaram em movimentos, se colocam em diferentes debates públicos, mas muitas de nós (feministas) seguimos cegas ao seu movimento e surdas às suas reivindicações. O movimento de prostitutas é um movimento feminista, que traz mulheres como protagonistas de suas histórias e que reivindicam que suas pautas não sejam vistas como menos importantes, ou que sejam protagonizadas por pessoas que não as tenham vivenciado. Os movimentos feministas foram marcados no Brasil por percepções de que eram secundários em relação à luta contra a ditadura ou questionamentos de que precisava se abrir para o reconhecimento das interseccionalidades. Hoje, são questionados pelo movimento de prostitutas, que demanda seu reconhecimento enquanto luta feminista legítima e que conclama para que suas protagonistas não sejam mais silenciadas ou vitimizadas, mas sujeitas de suas próprias histórias.

 

Letícia Cardoso Barreto é psicóloga, doutoranda em Ciências Humanas e pesquisa o tema da prostituição desde 2005.

Ilustração: Marcella Briotto

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