Geni é uma revista virtual independente sobre gênero, sexualidade e temas afins. Ela é pensada e editada por um coletivo de jornalistas, acadêmicxs, pesquisadorxs, artistas e militantes. Geni nasce do compromisso com valores libertários e com a luta pela igualdade e pela diferença. ISSN 2358-2618

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ESCULACHO | Memórias da negrinha da casa das putas III

Memórias e recriações de uma infância na perifa leste de São Paulo. Por Alciana Paulino

 

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Puta ou sapatão

 

Nani disse um dia que preferia me ver puta a sapatão.
Enquanto não me decido, trabalho nas duas perspectivas.

 

O casamento

 

Minha mãe queria se casar. Queria dar dignidade a uma família – reza a lenda que se precisa de um pai, uma mãe e belos filhinhos. Besteira! Uma das coisas do pacote ela já tinha, eu.

Arrumou um moço bem intencionado, trabalhador e que aceitava o fardo a mais, eu de novo.

Ele pediu a mão dela para mim. Os papéis se inverteram nesse dia. Alguma coisa me dizia que não daria certo, respondi que sim. No fundo, sabia que deveria estar ali quando desse errado, tinha que cuidar dela, mas também respeitar o que queria. Então, coloquei uma condição: deveria fazer parte do casamento.

Na mesma igreja em que me batizaram, ela se casou de branco e com a primogênita como noivinha, aquela que tinha perdido a flor do sapato e achava que por isso tinha acabado com tudo.

Dessa união nasceram meus dois amores, Érika e Mariana. Por isso, apesar de tanta guerra e tanto arrancarrabo alguma coisa deu certo.

 

E se me apaixonasse por Renata

 

Na pré-escola tinha uma amiga chamada Renata. Adorava ela. Na mesma época me ocorreu: e se me apaixonasse por Renata?

 

Dia dos pais é para a minha avó

 

Todo maldito dia dos pais era um constrangimento. Na escola tinha que fazer aquele “presentinho” ou “lembrancinha”.

Já sabia como funcionava, eu fazia o que tinha que ser feito e depois a professora vinha ajudar a escrever o nome do papai. Na frente de todos tinha que dizer “eu não tenho pai”. A nada sábia da educadora procurava por outra referência masculina. “Mas você deve ter um tio, um avô ou um padrasto”.

– Eu quero fazer para a minha avó.

Com aquele rosto de pura dó cristã, ela dizia “tudo bem”.

O pior dia de todos foi quando a professora, para me consolar, apontou todos os alunos e alunas da sala que não tinham um pai presente. Elencou os motivos e no meu ouvido disse que, dentre todos aqueles, eu era a que saia melhor. “Nem parecia ser filha de um lar desestruturado”.

 

A Lua e o tal

 

Tinha mania de subir para a laje. Como não tinha o hábito de falar de mim para as pessoas, acabava por encontrar outrxs amigxs.

A Lua era uma delas. Minhas confidências, paixões e desilusões infantis era ela quem ouvia. E em uma bela noite testemunhou o meu primeiro encontro com o sexo.

Estava ali, contando para ela as minhas desventuras até que olhei para a casa ao lado onde um rapaz de uns vinte e poucos anos, lindo, estava nu e se masturbando. Já falei lindo?

Vi. Fiquei em choque, um misto de susto, medo, curiosidade, ansiedade etc.

Ele também me viu, sorriu e continuou a se masturbar olhando para mim.

Continuamos nessa hipnose até me dar um surto. Fugi. Escondi-me no quarto.

Já se passaram uns vinte e tantos anos desta noite, mas até hoje, quando escondida no meu quarto, lembro com carinho desse dia.

 

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Peitos grandes e firmes

 

None, minha tia, comprou uma vez um kit com cremes para manter firmes os seios. Eu devia ter uns 5 anos.

Todos os dias, depois do banho me melecava inteira naqueles cremes. Além de ansiar por tetas grandes e firmes, pensava no que me adiantariam tais peitos se o resto estivesse despencado.

Um dia ela descobriu. Surtou.

 

Amor carnal no maternal

 

Mentira. Eu já estava no Jardim II, uma mocinha. Achava que estava na hora de namorar. Essa foi a primeira paixão de que me lembro. Leonardinho era um menino lindo, moreno, cabelos escorridos castanho escuro, olhos da mesma cor. Fofas eram suas bochechas rosadas.

Perguntaram para ele se queria me namorar. Ele disse que sim. Ok.

A partir desse dia passei a lavar as mãos de forma diferente. Na escolinha havia uma regra, as meninas que apenas friccionavam as mãos eram solteiras. Aquelas que davam voltas e voltas entre as mãos eram as que namoravam.
Achava estranho, mesmo namorando ele não era dado aos abraços ou sair de mãos dadas.

Fui pras cabeças.

Na mesinha redonda sentávamos ele, dois coleguinhas e eu. Quando queríamos falar no privado deixávamos algo cair no chão e anunciava “o lápis caiu”. Então íamos para debaixo da mesa.

Naquele ninho de amor lasquei-lhe um beijo na boca. Daqueles molhados de televisão. Guloso.

O pequeno filho da puta começou a chorar aquele choro de alma, de grito. Eu só fiquei olhando. A professora veio
acudir. Ainda embaixo da mesa, ela perguntava o motivo do choro. Depois de um tempo ele disse, apontando para mim, “Ela me beijooouuuu… na boooocaaaaaaaaaaaa!!!!”.

Fiquei de castigo e levei bilhetinho para casa.

Rasguei.

 

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A casa das putas como igreja

 

Minha avó dizia que a nossa casa era como uma igreja, acho que xs vizinhxs discordavam.

 

 

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Ilustração: Gunther Ishiyama.

 

 

 

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