Geni é uma revista virtual independente sobre gênero, sexualidade e temas afins. Ela é pensada e editada por um coletivo de jornalistas, acadêmicxs, pesquisadorxs, artistas e militantes. Geni nasce do compromisso com valores libertários e com a luta pela igualdade e pela diferença. ISSN 2358-2618

entrevista

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Ninguém vai me parar

A vida e as rimas de Luana Hansen na luta contra o machismo e a lesbofobia do rap nacional. Por Carolina Menegatti, Gui Mohallem, Ligia Xavier e Marcos Visnadi

 

 

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Uma pit bull imensa recebeu a gente logo na porta, tão simpática quanto as donas. Drika Ferreira e Luana Hansen moram juntas em Pirituba, bairro da zona oeste de São Paulo. “Aqui é a nossa quebrada”, diz Drika assim que nos vê. Além de esposa, ela é assessora, apoiadora e backing vocal de Luana, a camaleônica rapper nacional que há 14 anos acumula os mais diversos tipos de experiências musicais.

Em 2005, ganhou o Hutúz, importante prêmio do rap, com o grupo A-TAL. Depois disso, Luana Hansen foi parceira do Samba de Rainha e rodou o Brasil inteiro cantando com Rodriguinho, do grupo Os Travessos. Em 2012, assumiu o sobrenome de origem alemã, montou um estúdio em casa, gravou seu primeiro disco solo e virou presença certa em eventos feministas, marchas de protesto e ocupações como a Copa do Povo.

Luana tem só 34 anos, mas já viveu muitas vidas. Além de produtora musical, rapper, dj, já foi jogadora de futebol profissional, chegando a atuar fora do país. Trabalhou na padaria de um supermercado, no telemarketing, fundou ONG, foi traficante, usuária e, na época de seu vício em crack, chegou a morar nas ruas do centro de São Paulo. Fez nu artístico, participou do documentário 4 minas, de Elisa Gargiulo, do filme Antônia de Tata Amaral e, hoje, é também atriz no projeto Escola em Trânsito, do grupo de teatro XPTO. Ufa!

Sendo alguém tão interessante, também não passou desapercebida por figuras político-partidárias que buscam seu apoio para as próximas eleições, em outubro. E, em todas as fases e faces de sua vida, Luana sempre foi lésbica assumida e brigou contra pessoas e atitudes machistas e lesbofóbicas. Um exemplo é a música “Flor de mulher” escrita em resposta à malfadada “Trepadeira”, do Emicida.

No caminho para a casa dela, enumerando todas essas coisas, não sabíamos nem por onde começar a entrevista. Mas, assim que chegamos, nos sentimos à vontade pra falar de qualquer coisa. Além de toda essa biografia, Luana, assim como Drika, é muito gente boa. A pit bull (Mari) Juana deitou no meio da roda e ficou escutando a nossa conversa de barriga pra cima, a tarde toda.

 

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Você tem um estúdio, né?

Sim. Ele é totalmente feito do Ecoponto, que é um lugar da prefeitura, que tem aqui na quebrada, onde as pessoas dispensam tudo aquilo que é reciclável, entulho, madeira, essas coisas.

Eu montei o estúdio depois que fiz sonoplastia na SP Escola de Teatro – não terminei o curso, porque eu tinha que me manter, e não dava pra ficar 12 horas por dia estudando. Mas eu queria ser que nem os rappers americanos, que têm estúdios em casa. Lá [nos Estados Unidos] isso é comum. A tecnologia hoje permite você ter um estúdio em casa com poucas coisas: uma placa de áudio, um computador ligado, um microfone, e você já tem uma boa captação de áudio. Com um tecladinho, já faz inúmeras batidas. Depois que saí do curso, comecei a estudar sozinha, vendo tutorial no Youtube. Fui engatinhando.

E eu também já tinha cansado de ir em vários estúdios [e ser recusada] por não querer seguir o padrão das minas do rap, que é cantar refrão e musiquinha de amor. Isso pra mim não cola, não posso cantar que um cara é legal e eu vou sair com ele, porque eu gosto de mulher. Eu já fiz esse tipo de coisa, mas agora eu queria fazer um trabalho mais autêntico.

 

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Marginal imperatriz

 

Quando você começou o seu trabalho mais autêntico?

Em 2012. Resolvi pegar as músicas que mais gostava e gravar com o meu nome. Antigamente, as pessoas me conheciam como Luana A TAL, porque eu tinha um grupo chamado A -TAL – que era Tina, Angélica e Luana, tipo [o grupo estadunidense] TLC. Com esse grupo, a gente ganhou o [prêmio de hip-hop] Hutúz, a gente era conhecida no meio do rap. Mas era aquele padrão: três negras sempre bonitas, de cabelão, maquiadas, de vestidinho.

Aí comecei a namorar a Drika, e ela me perguntou: “Por que você não faz o seu CD? As pessoas vão ver que é um trabalho produzido por uma mulher”. Mas que nome eu ia usar? “Usa o seu.” O meu nome é Luana Michele Hansen de Barros. Escolhi o Hansen justo pra provocar, porque é um nome alemão, as pessoas esperam que uma loira vá cantar. Já vi pessoas ficarem putas por eu usar esse nome sendo negra, então quis usar pra agredir mesmo. E porque eu queria trabalhar o meu nome.

Assim que comecei a produzir, apareceu gente com propostas de música. A “Flor de mulher” nasceu porque um monte de gente veio me cobrar uma posição com relação à música “Trepadeira”, do Emicida. Eu acho que mais mulheres têm que tomar posição, não ter medo de perder espaço por deixar de ser simpáticas. Então dei minha cara pra bater.

 

 

A música do Emicida causou muito protesto.

Causou. E na época eu já tinha feito a “Ventre livre de fato” em parceria com a Elisa Gargiulo, que me filmou pro documentário 4 minas.

 

O seu trabalho solo começou depois do 4 minas?

É, antes eu estava na gaveta. O rap é muito machista, eu já tinha visto que, sendo sapatão, ia ter que comprar uma briga… Porque sempre fui assumida. Mesmo na época do [grupo] A-TAL, eu tinha fama de metida, por não chegar nos caras que nem as outras minas: “Ai, fulano, lindo! Posso tirar foto com você?!”. Eu não fazia esse papel, ia lá e falava: “E aí, firmeza?”. Aí me achavam de nariz empinado, o que não é verdade. Só acho que não preciso lamber ninguém. Se o cara é um bom MC, ok, eu também sou, não preciso estender tapete. Prefiro estender tapete pra mulheres, porque sei como é difícil ser MC mulher numa massa tão machista.

E a Elisa ficava falando: “O seu trabalho é muito bom, você precisa fazer ele. As meninas do rap não têm essa postura”.

 

Mas, mesmo nessa época de gaveta, você compunha?

Eu sempre compus, nunca parei. E sempre gravei com todo mundo – com o Sombra, do SNJ, com o Cia, o Sandrão… Mas eu sempre quis rimar, não aceitava fazer refrão. E queria fazer coisas temáticas, sobre mulheres. Aí eu até gravava com outras pessoas, mas nunca tinha feito o meu CD. Até fazer o Marginal imperatriz, que fiz inteiro aqui em casa.

Só que antes eu fiz o “Ventre livre de fato”, que compus com a Elisa, pras Católicas pelo Direito de Decidir . E esse é um clipe com 15 mil acessos na internet [na verdade, já eram mais de 19 mil até o fechamento desta edição]. Aí eu resolvi fazer o estúdio, não para ganhar dinheiro, mas pra gravar o meu CD [Marginal imperatriz]. Porque cansei de ir em estúdios onde os caras me falavam: “Olha, cê rima pra caralho, mas os caras não querem ver uma mina rimando, eles querem ver a mina sensualizando. Eles vão pagar pra ver uma mina rimar mais que eles?”.

 

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Os caras te cortavam.

Falavam que eu tinha que cortar palavras, ser menos agressiva! Me falavam: “Você está brigando com as pessoas, não adianta. Isso era antigamente. Ninguém vai comprar CD de uma mina gângster”. Eu falava: “Mas a Lil’ Kim, a Missy Elliott, a Queen Latifah fazem sucesso lá fora e elas não são pop!”. “Ah, mas é lá fora, aqui ninguém quer ver! Você não viu a Negra Li?”. E os caras me colocavam coisas que realmente estavam acontecendo, mas eu pensava: não é possível que ninguém vá ouvir uma mina cantando a favor do aborto! Ninguém nunca vai me dar atenção se eu falar que não quero ser encoxada no trem?

 

 

Ontem mesmo teve uma mesa no Centro Cultural da Juventude [em São Paulo] com pessoas que representavam o Hip-Hop Mulher, mas, mesmo tendo esses lugares, a mulher ainda não tem um espaço digno no rap. Quando tem evento grande, uma Virada Cultural, você vê 60 caras rimando e seis minas! O meu intuito agora é criar a primeira família no rap só de mulher: grafiteira, produtora, fotógrafa, um lugar onde as mulheres produzam. Porque não adianta ser só eu, preciso de mais gente. Esse projeto vai se chamar Las Maestrinas, e vai gravar minas que ninguém nunca viu, mas que são que nem eu, estão aí faz tempo. Eu já estou faz 14 anos na rua!

 

 

“O meu intuito agora é criar a primeira família no rap só de mulher: grafiteira, produtora, fotógrafa, um lugar onde as mulheres produzam.”

 

 

Ser lésbica é uma tensão entre as mulheres do rap?

Sim, é diferente ser mulher no rap e ser lésbica no rap. Já conheci várias meninas lésbicas e meninos gays que nunca vão em show porque são hostilizados. Existem homofobia e lesbofobia escrachadas no rap. Não vou falar que não existem parceiros, mas são muito poucos. O rap ainda está no poder masculino, dos manos. Eu não vejo um evento de grande porte em que tenha uma mulher apresentando, em que os manos cantem depois das minas. A gente fica com as migalhas.

Mas, mesmo no movimento de mulheres, as lésbicas não são representadas. É sempre a mesma panela, as pessoas te veem diferente. Principalmente eu, por ser lésbica, negra, morar na periferia, pagar aluguel, pisar no barro todo dia. É mais difícil. Já falaram de mim: “Ela briga com todo mundo porque ela é lésbica”.

Se você for procurar meu nome num evento de rap, vai dormir, porque não vai me achar lá [risos]. Você vai me achar em evento feminista, em protesto, em evento anti-Copa… Em evento de rap, eu vejo a cara das pessoas quando eu canto: “Sim, eu sou mulher, estou pronta pra lutar”. É muito louco: os manos ficam em choque, o público delira, e as mulheres, sejam militantes ou não, de todas as idades, vêm todas falar com a gente: “Nossa, que demais, existe!”.

 

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Tem mulher trans que rima também?

Tem sim, conheci agora a MC Xuxu. Ela tem funk, mas também faz rap. Agora, você imagina um evento em que tenha ela e Racionais MCs no mesmo palco?! Eu não imagino. O rap tem muito que evoluir. Eu só entrei no rap porque acreditei que era uma causa social. Se o rap não milita por causas sociais, então porque ele tá aí? O rap nasceu pra protestar.

 

Mesmo os caras que fazem rap de protesto, como os Racionais, têm músicas machistas. Então falta diálogo não só com os produtores, mas também com os artistas?

É muito difícil dialogar, não tem respeito. Quando você consegue acessar os caras, é uma briga de ego. É muito preconceituoso, então eu vim pra incomodar, pra ser a pedra no sapato. Mas tem que ter paciência, e a gente tem que bater nesta tecla: o rap é machista! Porque eu quero fazer um evento em que as minas possam ir de boa. Já recebi cartas de meninas que foram agredidas porque foram com a namorada em eventos. E os caras do lado delas: “Cala a boca, não fala nada! Você já tá a mais aqui no meio da gente”. A violência não é só no palco, é fora dele também.

 

Você sempre teve esse tipo de consciência ou foi uma coisa conquistada aos poucos?

Eu sempre fui assumida, mas antes eu mantinha uma postura porque eu tinha duas meninas hétero do meu lado [na época da A-TAL] que me diziam pra ir com calma. Só que eu levei muita porrada, de perder lugar em que eu cantava por ser lésbica, de ir em estúdio de gente que eu admirava pra caralho e o cara apontar o dedo e dizer “não é legal você falar isso”. Como assim?!

Eu vivi vendo o Sabotage brigar com um monte de gente pra fazer cinema, na época em que todo mundo era contra aparecer na mídia, por causa dos Racionais. O Sabotage era muito visionário. Se ele estivesse vivo hoje, não existia Racionais, MV Bill, Marcelo D2. O Sabotage estaria no lugar deles. Também andei em tudo quanto é lugar com a Dina Di, vi as pessoas maltratarem ela porque ela era afoita, se impunha como mulher, diziam que ela era muito bocuda. Ela morreu, e ninguém fala dela hoje. Teve a Nega Gizza, que cantou “sou puta, sim”, e as pessoas escondem ela hoje. As mulheres no rap sempre foram militantes – Rúbia RPW, Amanda Negra Sim, Preta Rara, todas elas tiveram que lutar pra ser vistas. A primeira MC mulher, a MC Regina, levou um soco quando subiu no palco pela primeira vez, porque os caras não queriam que ela rimasse.

Não tinha como eu não lutar. O meu grupo [A-TAL] foi tratado bem porque a gente era três negras no estilo Beyoncé. Mas eu vi a reação quando quis fazer meu trabalho solo, como lésbica. Eu fui lapidada na porrada, por isso eu brigo. Tudo o que conquistei foi na briga, e vejo que a luta não para.

 

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“Eu vi a reação quando quis fazer meu trabalho solo, como lésbica. Eu fui lapidada na porrada, por isso eu brigo. Tudo o que conquistei foi na briga, e vejo que a luta não para.”

 

 

Como é a sua relação aqui com a comunidade?

Eu sempre tive muito carinho pelas pessoas aqui, e elas por mim. Minha mãe era tia da escola, todas as crianças conhecem ela. Ela era merendeira, fazia os pedidos de comida [para o governo] e sempre pedia a mais, pra sobrar e poder distribuir pras crianças que precisavam levar pra casa.

Sou sócia fundadora de uma ONG que a gente criou aqui, chamada A Cúpula, que todo ano fazia a festa Criança da Esperança, com um palco imenso onde já cantou o Sabotage, a Negra Li, um monte de gente. A gente faz festas aqui, grafita. Agora eu quero fazer aqui o lançamento do meu novo clipe, “Samba Brasil”, que foi gravado aqui, e quero que ele seja lançado primeiro na quebrada, pra dar a oportunidade, pelo menos uma vez, de a quebrada ser primeira em alguma coisa.

E aqui eu sou muito respeitada. Já aconteceu de nós duas [ela e a Drika] estarmos andando de mãos dadas, um cara vir mexer com a gente, e o pessoal querer bater nele. Agora, eu quero ver como vai ser o lançamento do clipe aqui, porque eu sei quem é o meu público: são as feministas, as lésbicas. Um monte de meninas já falou que quer vir pra cá no dia, e quero ver se a quebrada vai respeitar elas do mesmo jeito que me respeita. A gente vai ficar todo mundo junto, e eu quero mostrar pra quebrada que a gente pode fazer eventos bons. Por isso quero fazer um sarau na quadra, mostrar outro horizonte pra quebrada. Assim como trazer as pessoas de fora que sempre dizem que querem se aproximar da quebrada. Agora é a hora.

 

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Você morou na rua um tempo, né?

Quando comecei a usar crack, fiquei uma semana dormindo na praça da República, no centro. Eu acordava todo dia com a Polícia Militar. Lembro que um dia acordei com um policial me chutando e, quando me viu, ele se assustou, porque eu estava de roupa social. Eu ia pra lá depois de sair do trabalho.

As pessoas de rua são muito solidárias. Quando eu cheguei lá, os caras viram que eu não era moradora de rua, que era usuária de drogas e não queria voltar pra casa. Me deram cobertor, me ensinaram coisas. Aí eu dormia lá, depois roubava o pessoal no centro e vendia [as coisas roubadas] lá na rua Helvétia [que faz parte da área conhecida como Cracolândia, em São Paulo]. Ou ia até Osasco e comprava pedra, que era R$ 5, e voltava pro centro, cortava a pedra, vendia. Eu era muito trambiqueira, fazia dinheiro até onde não queria, pra poder usar droga. Bom, pra fumar 40 pedras por dia, eu tinha que ter dinheiro.

 

Nessa época você já fazia rap?

Fazia. Mas já tinha acabado A-TAL, eu não imaginava viver de música. Nessa época eu trabalhava na padaria de uma rede grande de supermercado, era destaque da loja e tudo. Estava sempre na Pride, uma baladinha GLS que tinha lá no centro, e conheci umas meninas que vendiam droga, a gente era o bonde das sapatões [risos]. Era eu e mais três meninas. A gente vendia, tirava o lucro e ainda sobrava mais da metade das pedras, aí a gente começou a consumir. Foi quando eu comecei a alucinar e fui viver na rua.

Aí eu me afastei das meninas, comecei a vender sozinha. E antes a gente vendia pras garotas de programa, lá na [boate] Love Story. Lógico, toda sapatão um dia namora uma prostituta, isso é fato [risos]. Eu fui até Bauru viver com uma garota de programa, trabalhei numa boate lá, mas não como garota de programa. E lá a polícia invadiu a minha casa pela primeira vez. Apanhei muito, voltei fugida pra São Paulo.

 

Quanto tempo durou essa época?

Quase um ano. Até que encontraram droga dentro do meu armário no supermercado, quase 30 pedras e meio quilo de maconha, que eu vendia dentro do shopping onde ficava o mercado. O pessoal começou a desconfiar, né, porque todo dia chegava alguém na loja perguntando: “Cadê a Luana?”. Ninguém queria saber onde era a padaria, perguntavam de mim. E a padaria ficava lotada! [Risos]

Mano, foi um inferno, chamaram a polícia. A diretora da loja perguntou: “Luana, você usa drogas ou vende drogas?”. “Eu uso.” E o policial: “Mas essa quantidade é muito grande pra quem usa!”. “Mas eu uso, senhor.” Aí ele falou: “Você tem uma escolha. A empresa dá tratamento. Ou você vai daqui direto pra uma clínica ou a gente te leva pra delegacia e te apreende”. Eu não tinha escolha, né, não ia ser presa.

Fui pra clínica muito sem vontade. Em casa, pegando as minhas coisas, eu joguei um monte de maconha dentro do violão, pensando: “Vou ficar um mês sem trabalhar, na clínica, fumando, tô chique!” [risos]. E quando eu cheguei na clínica, o primeiro lugar que a mulher viu foi o violão, lógico. “Ah, que lindo, você toca!” Balançou o violão e fez aquele barulhão lá dentro. Aí ela pegou toda aquela maconha, pôs na minha mão, me fez jogar tudo na descarga e falou: “Agora você vai ser uma pessoa limpa!”. Nesse momento eu entrei em desespero. Tive depressão, quebrei a clínica inteira…

E lá eu aprendi uma coisa muito triste, que é: as clínicas não aceitam, geralmente, as mulheres. Porque dizem que a gente desestrutura psicologicamente os homens, desequilibra eles.

 

O mesmo argumento usado pra essas leis de vagão exclusivo para mulheres!

É o mesmo raciocínio. Era muito foda ser mulher lá dentro, eu batia de frente com os caras direto. E todas as outras mulheres que chegavam lá eram elitizadas e a maioria tinha problemas com álcool. Eu era a única que usava crack, que tinha contato com a rua. As outras pessoas que tinham relação com o crack, naquela clínica, eram homens.

Mas a internação foi uma coisa muito boa, eu saí de lá decidida a não usar mais química nenhuma. Vi histórias muito tristes lá dentro. E aprendi que a recaída é sempre pior, você dobra o uso daquilo que usava. Se eu cheguei a 40 pedras por dia, eu não ia conseguir fumar 80 pedras por dia, ia morrer.

 

Você voltou para o mesmo supermercado depois?

Não consegui. Por mais que falem que o ambiente é o mesmo, que as pessoas são normais com você, todo mundo te olha como drogada. Quando você volta pro seu ambiente, é muito estranho. Eu não consegui nem morar com a minha mãe depois. Minha mãe achava que, tudo o que ela me dava, eu vendia. Demorou pra adquirir a confiança de novo.

 

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E como você foi parar no Samba de Rainha?

Eu conheci as meninas na praça Benedito Calixto. Eu me apresentava numa casa lá, de sexta-feira, e de sábado, quando a praça vira um lugar gay. Ficava ali, todo mundo me conhecia. Um dia a Nubia Maciel me viu andando de lá pra cá, chegou em mim e falou: “Você sabe quem sou eu?”. Eu falei: “Não”. “Eu sou a Nubia, do Samba de Rainha.” “Ah, tá. Eu sou a Luana Hansen, que faz rap aqui na casa.” E virei a cara pra ela [risos]. Eu nunca tinha ouvido falar do Samba de Rainha!

Ela falou que tinha um grupo de samba que tocava no Café Vermont do Itaim. “Você rima mesmo?”. Eu falei: “Ah, tá me tirando!? Claro que eu rimo”. Ela me deu um convite e disse: “Então vai lá cantar com a gente”. Como eu adorava ter uma oportunidade pra aparecer, fui. Lembro que, quando cheguei lá, fiquei com uma vergonha! Porque eu estava acostumada com o Vermont do centro, a pobre, estava com uma roupa muito simples. Quando a Nubia me viu, do palco, ela disse: “Ah, agora tem uma amiga aqui, a gente vai fazer uma brincadeira”. E eu achava que ia ser duas minas com pandeiro, não sabia que as minas eram famosas, tinham CD, toda aquela estrutura [risos]. Fiquei toda humilde.

Subi no palco e ela começou a cantar. Na hora que eu rimei, a casa veio abaixo! Querendo ou não, eu fui a primeira mina a cantar rap no mundo gay, e foi com as meninas do Samba de Rainha. Aí, quando eu desci do palco, um monte de gente veio falar comigo, inclusive a Beth, dona da casa. Ela disse: “A partir de hoje, se você quiser, todo domingo pode vir cantar”. O meu nome começou a aparecer no flyer como MC Luana A TAL – por isso que muita gente não me relaciona hoje ao Samba de Rainha. Mas era eu!

Só parei de fazer rap lá porque fiz um tour com o Rodriguinho, dos Travessos, em 2010.

 

Isso foi depois da clínica?

É. Eu saí do supermercado e comecei a trabalhar com telemarketing, fazendo show só de fim de semana, no Vermont e na Benedito. Até que o Rodriguinho me achou.

 

Hoje você vive de música?

Hoje eu sou só louca [risos]. É uma loucura isso de trabalhar só com música. Tem dias que eu penso em parar e arranjar outro trabalho, porque você vai ficando mais velha, e a gente não tem um carro, por exemplo, pra levar os equipamentos, ir pros shows… Mas hoje não dá mais. Mesmo se eu quisesse parar de cantar rap e arranjar um trabalho [assalariado], as pessoas não iam deixar. E eu não ia ser feliz, porque é isso que eu gosto de fazer.

 

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Vendo fotos de diversas fases da sua carreira, a gente vê que você é um camaleão. Na época da A-TAL, do Samba de Rainha, você fazia um estilo de mulher deslumbrante para os padrões dominantes. O que você pensa da questão da objetificação da mulher, de conseguir espaço através da beleza?

Eu sei que pra mim foi mais fácil na época da A-TAL. Não vou ser hipócrita de dizer que não sei do meu potencial como mulher, toda mulher sabe. E na época da A-TAL isso era muito explorado, a gente estava em todas as revistas de rap, ganhou o Hutúz, apareceu no filme Antônia [de 2006, dirigido por Tata Amaral], estava em todos os lugares. Mas eu via como as pessoas tratavam a gente: como um pedaço de carne, como as gostosas do rap. Pra ganhar espaço, a gente tinha que estar emperiquitada. Pra ganhar o Hutúz, eu tive que ficar três horas num salão de cabeleireiro, colocar unha postiça… Eu seguia o padrão, e me mostravam que só assim eu ia conseguir alguma coisa.

Hoje eu posso me produzir daquele jeito, mas não me preocupo mais com isso. Hoje acho que a luta é outra, a minha rima vem antes da minha estética. Quero cantar pra todas as mulheres, por isso não uso mais esse padrão, pra que as pessoas não achem que elas têm que ser desse jeito pra chegar em algum lugar. Nesse meu primeiro CD, por exemplo, a capa é só o logo, não tem foto. E fiz meu logo com dread pra mudar o padrão do [cabelo] black power. Eu uso três cabelos num só: raspado, franja e dread.

 

É uma escolha política, então?

É. Tem dia que a Drika olha pra mim e fala: “Você vai fazer show assim?!” [risos]. “Ah, Drika, eu vou cantar, o que vale é o que tô falando.”

 

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Contato para show e demais rolês: producao.luanahansen@gmail.com

 

 

 

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Fotos: Gui Mohallem

Ilustração: Nara Isoda

 

 

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