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A obscena senhora B.

Desejo e pornografia na obra de Louise Bourgeois. Por Ruy Luduvice

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Nascida em 1911, em Paris, e falecida em 2010, em Nova York, Louise Bourgeois alcançou máximo prestígio como artista plástica no começo dos anos 80, quando ganhou retrospectiva no MoMA (o Museu de Arte Moderna de Nova York). Tornou-se mesmo celebridade no inflacionado e espetacularizado mundo das artes. No Brasil, a artista chegou em 1996, durante a Bienal de São Paulo. Na ocasião, uma de suas gigantescas Aranhas foi arrematada pelo banco Itaú, e jaz enjaulada em seu aquário, na marquise do Parque do Ibirapuera, cercada por um discreto, porém eficiente canteiro de pedrinhas. Atualmente, integra o acervo do Museu de Arte Moderna de São Paulo.

 

Durante algum tempo, era possível entrar na sala dedicada exclusivamente à obra. Não lembro se era necessário o acompanhamento de umx funcionárix do museu, ou se essas visitas eram feitas apenas com grupos escolares. De toda forma, lá está. Ao seu lado, há (ou havia) um texto da curadoria. Ele explica como a escultura se relaciona com os inúmeros traumas de infância da artista e sua relação conturbada com o pai e a mãe.

 

Casos de família

 

Ao que consta, o pai manteve, por algum tempo, um caso com a tutora inglesa de Louise. E isso tudo nas fuças da mãe, que, embora fosse uma senhora enérgica, mostrava-se passiva diante da flagrante cafajestagem do marido. A menina, que tudo percebia, mantinha-se calada, incapaz de reagir contra o pai, inconformada diante da conivência da mãe. Essa história, Bourgeois tornou pública, com todas as letras, em 1982, quando publicou uma fotomontagem intitulada Abuso infantil. Nela, Louise justapõe fotos de suas obras e fotos pessoais, de sua infância.

 

Estaria tudo explicado: nutrindo-se de sua vida privada, a artista representaria seus dramas pessoais; tornando-os públicos, convertendo-os em obras de arte, aliviaria o sofrimento de seus conflitos psíquicos. Uma versão mais pretensamente psicanalítica dessa interpretação foi defendida em 2011, na retrospectiva Louise Bourgeois: O retorno do desejo reprimido, que passou por várias cidades ao redor do mundo, incluindo Rio de Janeiro e São Paulo. Essa exibição procurava estabelecer um paralelo entre o tratamento psicanalítico – ao qual a artista se submeteu ao longo de boa parte de sua vida – e sua produção artística.

 

Formas, temas, assuntos, escolha de materiais, tudo estaria relacionado com o processo terapêutico. Seguindo por essa trilha, Bourgeois seria sem dúvida uma artista pornográfica, se pornográfico for o ato de, digamos, “mostrar tudo”. É claro que essa é uma definição bastante pobre e filisteia de pornografia, assim como é bastante filisteia a ideia edificante dx artista como a pobre alma sensível que se supera através de sua própria obra (ou, diriam os mais cínicos, consegue seu lugar ao sol através de seus trabalhos, convertendo sua dor em oportunidade de boa colocação social).

 

Ocorre que, em diversas declarações e textos publicados em vida, Louise ataca frontalmente a psicanálise, chegando mesmo, numa entrevista, a negar já ter passado por um divã. É claro que a leitura de seus diários – em parte publicados com o catálogo dessa exposição – atesta que, de fato, ela esteve em consultórios de psicanálise, sobretudo por conta de severos períodos de depressão (talvez os mais improdutivos dos seus 60 anos de atividade).

 

Destruição e reconstrução

 

Talvez a pornografia de Bourgeois seja de outra ordem. Mesmo porque – como notou a psicanalista Tania Rivera a respeito de O retorno do desejo reprimido – a possibilidade de converter conflitos psíquicos em obras da civilização (pinturas, esculturas, poemas, prédios, cidades, romances), chamada por Freud de sublimação, se daria muito mais no verniz universal que o artista dá aos sofrimentos de sua alma do que – como faria Louise – na ênfase dada pela escultora à particularidade de suas vicissitudes.

 

O tom geral de seus escritos é sempre aquele de alguém incapaz de fugir à própria história. Em alguns momentos, ela chega a se comparar a Sísifo, a criatura da mitologia grega condenada a fazer rolar uma pedra montanha acima por toda a eternidade. Dito isso, é preciso levar em conta que sua obra não se restringe ao trabalho plástico. Textos críticos, depoimentos, cartas, poemas, fábulas, notas de diário e tudo mais o que constitui um livro como Destruição do pai, reconstrução do pai (editora Cosac Naify, 2000) também são obra.

 

Organizada pela crítica de arte Marie Laure Bernardac e pelo curador pop star Hans Ulrich Obrist, essa compilação de escritos da artista se constitui como verdadeira teia, trama em que o sentido se move ininterruptamente de um fragmento ao outro, do campo dos textos ao das obras visuais, e vice-versa, tudo sob a pena de uma autora tornada uma espécie de fantasma. Louise Bourgeois parece mostrar-se explicitamente, para, logo em seguida, evadir-se. Assim, esses textos não se relacionam com os trabalhos plásticos de fora para dentro, como se fossem uma explicação feita posteriormente sobre as razões e os resultados do processo da artista.

 

Por outro lado, tomando sua produção visual a partir do final dos anos 70, vemos que Louise passou a incorporar em seu trabalho elementos como cantos, quinas, frestas, espelhos, tecidos e grades. Penso aqui na série Cells, iniciada nos anos 80 e continuada pelo resto de sua carreira. Algumas obras podem apenas ser espiadas, ou pode-se ter só uma visão parcial delas. Há portas entreabertas, que sugerem a possibilidade, na realidade inexistente, de entrada dx observadorx. O resultado disso é que x espectadorx/leitorx de Louise Bourgeois pode passar bastante tempo entretidx nos percursos entre obras visuais, poesias, notas de diário.

 

Fantasia e interação

 

É preciso, ainda, incorporar à obra de Louise Bourgeois os inúmeros retratos para os quais se ofereceu como modelo, quase sempre acompanhada de uma de suas obras. O mais famoso deles foi tirado por Robert Mapplethorpe. Nele, Bourgeois segura uma de suas esculturas, Fillette. Ao sorrir segurando o pênis em látex, vestida em casaco felpudo, ela converte sua imagem numa espécie de película fina, quase sem profundidade. Segundo dizem alguns teóricos, o fotógrafo, afinal, fotografa o que não está mais lá, tenta tornar presente um instante fugidio (como são todos os instantes). E, ao mostrar-se, Louise desaparece, se torna imagem indissociável de sua obra.

 

Impossível extrair a artista – franco-estadunidense, esposa, mãe de três filhos, ex-aluna de Fernand Léger etc. – de seu trabalho plástico, ou mesmo das narrações autobiográficas. Os elementos de sua obra que descreveriam a realidade (ainda que seja a realidade de sua mente) dão lugar ao trabalho da imaginação dx observadorx. Há algo como uma interação que precisa ser fantasiada pelo público para que os sentidos de seus trabalhos sejam possíveis. Não é à toa, portanto, que a sexualidade tem presença forte e duradoura na produção de Bourgeois.

 

A escultura Fillette (ou, em português, “Garotinha”) faz parte de uma série de obras do final dos anos 60, em que figuras licenciosas têm lugar evidente. Todas essas obras são expostas suspensas por um fio, que as faz pender do teto. Esse procedimento já leva em conta o posicionamento do público frente a elas, não para tornar essa relação pacífica e transparente, mas para evidenciar o caráter parcial da visão e, por conseguinte, a ambivalência dos sentidos possíveis.

 

Janus Fleuri, dessa mesma série, é provavelmente a obra mais radical nesse aspecto, embora lhe falte um pouco da graciosidade de Fillette. Divindade latina das passagens e dos começos, Janus aparece na obra do poeta Ovídio, entre outros autores romanos. Nas esculturas da Antiguidade, é representado sempre com dois rostos, um olhando para frente e outro, para trás. Em Bourgeois não encontramos rostos nas duas extremidades, mas formas ovoides de superfícies lisas. Suspensa, só a vemos de baixo. Essa posição faz com que o público seja testemunha de inúmeras metamorfoses: pênis, vagina, rostos e ventre são apenas alguns dos possíveis sentidos dessas formas. E a licenciosidade dependerá, por certo, do gosto do freguês. Essa não é uma limitação da obra da artista, mas, ao contrário, o que conferiu longevidade à obra de Bourgeois, ao permitir ser agenciada por públicos distintos.

 

Uma artista pornográfica

 

Aliás, é notável como muitas vezes a obra de Louise Bourgeois acabou sendo posta de lado por conta de sua incursão no campo da sexualidade. Em 1996, os importantes críticos de arte Yve Alain Bois e Rosalind Krauss organizaram uma exposição no Centro Georges Pompidou, em Paris, chamada L’Informe: Mode d’Emploi (em português, “O informe: modo de usar”). Embora Krauss já tivesse se valido da noção de informe para falar da obra de Louise, acabou por excluí-la da mostra, afirmando que a artista seria a matriarca de um tipo de arte que possuía “fixação não apenas nos órgãos sexuais, mas em todos os orifícios corporais e suas secreções”.

 

Afora não ser nada evidente que isso seja em si mesmo um problema, notamos que persiste essa insistência no uso das categorias de erotismo, por um lado, e pornografia, por outro, na atribuição de valor estético ao trabalho de artistas, muito além do que seria esperado em épocas de maior liberdade sexual. Ao fim e ao cabo, após todo um malabarismo conceitual, muitos críticos e teóricos acabam por cair no moralismo disfarçado, bastante simplório, do “ser sexy sem ser vulgar”, como formulou, certa vez, um amigo artista envolvido com a questão. Há ainda uma dificuldade em lidar com obras que possuem como motor central, ou formal, a pornografia ou o erotismo. É também curioso que se insista em discutir a arte erótica em termos apenas de conteúdo, quando muitas vezes ela parece surgir da dissolução do binômio forma/conteúdo, sendo mesmo uma certa maneira de estruturação do trabalho artístico.

 

O que importa, voltando ao nosso caso, é que a erótica de Bourgeois é uma estratégia para burlar paradigmas. A figuração não é oferecida pronta à/ao observadorx, mas se constitui no encontro com a obra. E o domínio do desejo talvez seja dos mais adequados para tanto, pois a fantasia dx espectadorx pode mover-se indefinidamente a partir de quase nenhum significado (ou de muitos, tanto faz).

 

X observadorx é convidadx a encenar o que seria a fantasia de Bourgeois, ou a fantasia que a própria artista, imaginada pelx observadorx, encena. Movimento em espiral, figuração em abismo. Seria a obra de Bourgeois uma pornografia que vela? Uma conclusão possível diante dos trabalhos da artista é que talvez seja impossível mostrar tudo, por mais que queiramos. Pois só temos acesso ao nosso querer na medida em que ele se cruza com nosso desejo. E a pornografia ou o erotismo talvez sejam testemunhas desse aspecto da experiência humana, do ponto cego existente no cruzamento entre imaginação e desejo.

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Ruy Luduvice acaba de concluir a dissertação de mestrado Espelhos e abismos: Autoria, erotismo e primitivismo em Louise Bourgeois, no departamento de filosofia da Universidade de São Paulo. A defesa será em outubro. Desejem sorte a ele.

Ilustrador convidado: Gunther Ishiyama.

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