Geni é uma revista virtual independente sobre gênero, sexualidade e temas afins. Ela é pensada e editada por um coletivo de jornalistas, acadêmicxs, pesquisadorxs, artistas e militantes. Geni nasce do compromisso com valores libertários e com a luta pela igualdade e pela diferença. ISSN 2358-2618

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A sexualidade ideal

Ciladas da luta pelo casamento igualitário. Por Renan Honório Quinalha

 

Em maio de 2012 o Supremo Tribunal Federal julgou procedente a Ação por Descumprimento de Preceito Fundamental nº 132 (ADPF 132), que foi ajuizada pelo governador do estado do Rio de Janeiro com o objetivo de equiparar as uniões civis homoafetivas das heterossexuais, conferindo-lhes os mesmos deveres e direitos. Os fundamentos jurídicos dessa decisão foram, basicamente, os princípios da igualdade, da não discriminação, da liberdade, da dignidade da pessoa humana, da segurança jurídica e da razoabilidade ou da proporcionalidade.

 

Essa decisão foi bastante comemorada por diversos setores da sociedade, em especial o movimento LGBT, por ampliar garantias civis e familiares antes restritas aos casais heterossexuais. Era uma reivindicação bastante antiga desse movimento. No entanto, essa decisão também afirma uma série de valores morais e concepções políticas conservadoras.

 

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Nas sociedades ocidentais modernas, o sistema jurídico é fundamental para neutralizar as diferenças entre as pessoas. Ao enquadrar as relações sociais a partir da categoria de sujeito de direito, o poder jurídico reduz a complexidade dessas relações e promove, simultaneamente, tanto a imposição de identidades como a atribuição de certas garantias jurídicas. Além disso, ele hierarquiza os diferentes modos de vida, separando-os entre os lícitos e os não lícitos ou, para usar uma linguagem mais comum e menos técnica, entre os normais e os anormais.

 

Neste artigo, vou analisar o discurso dos juízes que votaram a favor da ADPF 132. Destacarei também como os principais argumentos judiciais utilizados veiculam determinadas compreensões normativas sobre a (homos)sexualidade.

 

O acasalamento e a Constituição

 

Logo de início, fica evidente que os ministros essencializam e até naturalizam a homossexualidade, ligando-a a certas dimensões biológicas do ser humano. Por exemplo, quando a consideram uma forma de “acasalamento”: “discriminação gera ódio. Ódio que se materializa em violência física, psicológica e moral contra os que preferem a homoafetividade como forma de contato corporal, ou mesmo acasalamento”. A naturalização da homossexualidade fica mais evidente na fala de Carlos Ayres Britto: “nesse movediço terreno da sexualidade humana é impossível negar que a presença da natureza se faz particularmente forte. Ostensiva”. (A íntegra de todos os discursos dos juízes pode ser consultada no site do STF.)

 

O vocabulário médico também aparece com bastante destaque. Os juízes compreendem o sexo como algo da natureza – o que, para eles, significa também uma perspectiva binária: “[O sexo] tem nítido significado de conformação anátomo-fisiológica descoincidente entre o homem e a mulher (…) , trata-se de um laborar normativo no sítio da mais elementar diferenciação entre as duas espécies do gênero humano: a masculina e a feminina. Dicotomia culturalmente mais elaborada que a do macho e da fêmea, embora ambas as modalidades digam respeito ao mesmo reino animal, por oposição aos reinos vegetal e mineral”.

Ou seja, o masculino e o feminino são considerados apenas sofisticações culturais da oposição animal entre machos e fêmeas. Importante destacar que essa classificação entre masculino e feminino tem por base apenas o órgão genital, considerado responsável pelas “funções de estimulação erótica, conjunção carnal e reprodução biológica”. Por isso, os juízes afirmam que há uma indissociabilidade entre “o aparelho genital da pessoa humana e essa pessoa mesma”.

 

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Para eles, “assim como não se pode separar as pessoas naturais do sistema de órgãos que lhes timbra a anatomia e funcionalidade sexuais, também não se pode excluir do direito à intimidade e à vida privada dos indivíduos a dimensão sexual do seu telúrico de existir”.

 

Todos esses argumentos remetem a um determinismo (naturalista) bastante marcante nas leituras do sexo. Isso fica evidente quando apontam que são três as possibilidades de uso do aparelho sexual humano: “a Constituição não dispõe, de modo expresso, acerca das três clássicas modalidades do concreto emprego do aparelho sexual humano. Não se refere explicitamente à subjetividade das pessoas para optar pelo não-uso puro e simples do seu aparelho genital (absenteísmo sexual ou voto de castidade), para usá-lo solitariamente (onanismo), ou, por fim, para utilizá-lo de modo emparceirado. Logo, a Constituição emprega o empírico desempenho de tais funções sexuais ao livre arbítrio de cada pessoa, pois o silêncio normativo, aqui, atua como absoluto respeito a algo que, nos animais em geral e nos seres humanos em particular, se define como instintivo ou da própria natureza das coisas”.

 

Direito: uma engenhosa técnica de controle social

 

A identidade de gênero e a orientação sexual são essencializadas com base na anatomia e na biologia. Por isso a afirmação de que “o sexo das pessoas é um todo pró-indiviso, por alcançar o ser e o respectivo aparelho genital. Sem a menor possibilidade de dissociação entre o órgão e a pessoa natural em que sediado” e “que termina sendo uma busca de si mesmo, na luminosa trilha do ‘Torna-te quem és’”. Ou seja, há um dado da natureza que precisa ser desbravado ou descoberto para que a identidade escondida – um segredo do ser humano – se revele.

 

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Além disso, o sexo aparece como um perigo a ser controlado, como uma tentação que deve ser evitada e contornada, por carregar algo de destrutivo. Esses discursos sustentam o sexo “como realidade também situada nos domínios do instinto e não raro com a prevalência dele, instinto, no ponto de partida das relações afetivas”. Para alívio dos ministros, existe o direito, que funciona como “técnica de controle social (a mais engenhosa de todas), [e que] busca submeter, nos limites da razoabilidade e da proporcionalidade, as relações deflagradas a partir dos sentimentos e dos próprios instintos humanos às normas que lhe servem de repertório e essência”.

 

É interessante e merece maior destaque, no entanto, a maneira como esses discursos tentam construir a figura jurídica de um relacionamento homossexual aceitável enquanto família. O Código Civil, em seu artigo 1.723, reconhece “como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura, estabelecida com o objetivo de constituição de família”.

 

A partir desse dispositivo, que cita expressamente “o homem e a mulher”, os juízes buscaram uma forma de abrir uma brecha para a aceitação de alguns tipos de relacionamentos. Com efeito, uma das tônicas da decisão do STF é estabelecer uma diferenciação dentro do universo das relações homossexuais. Segundo os juízes, não seriam todos os casais gays que teriam o direito ao reconhecimento de sua união perante o Estado. Mas apenas “desde que, tanto numa quanto noutra tipologia de união sexual, tome corpo uma convivência tão contínua quanto pública nitidamente direcionada para a formação de uma autônoma unidade doméstica (ou entidade familiar, se se prefere)”.

 

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Assim, os critérios fundamentais são “durabilidade, conhecimento do público (não-clandestinidade, portanto) e continuidade, além do propósito ou verdadeiro anseio de constituição de uma família”. Ou ainda “notas factuais de visibilidade, continuidade e durabilidade” e “existência de um projeto coletivo, permanente e duradouro de vida em comum e a identidade de uns perante os outros e cada um deles perante a sociedade”.

 

Hierarquia sexual

 

Mas o que os juízes entendem como “família”? Para eles, a família se caracteriza pelo “seu coloquial ou proverbial significado de núcleo doméstico, pouco importando se formal ou informalmente constituída, ou se integrada por casais heterossexuais ou por pessoas assumidamente homoafetivas”.

 

É interessante o valor que atribuem a essa figura jurídica da família enquanto forma de estabilização social: “a mais natural das coletividades humanas ou o apogeu da integração comunitária, a família teria mesmo que receber a mais dilatada conceituação jurídica e a mais extensa rede de proteção constitucional”.

 

A antropóloga estadunidense Gayle Rubin, no texto “Pensando o sexo: notas para uma teoria radical da política da sexualidade”, lembra que “o reino da sexualidade também tem sua própria política interna, suas desigualdades e modos de opressão”.

 

Para essa autora, a “sabedoria popular das sociedades ocidentais (…) considera o sexo eternamente imutável, associal e não histórico”. Essa compreensão é exatamente aquela que serve como fundamento das alegações dos juízes mencionadas acima.

 

Uma moralidade vitoriana, respaldada pelos aparatos médicos e jurídicos, parece ainda regular o campo da sexualidade, a despeito de ser objeto de lutas ferozes. Apesar e por causa dessas lutas, é que se constituiu uma verdadeira “pirâmide erótica”, que é montada a partir do fato de “que as sociedades ocidentais modernas avaliam os atos sexuais de acordo com um sistema hierárquico de valor sexual”.

 

Ainda segundo Rubin, todas essas hierarquias de valor sexual (religioso, psiquiátrico e popular), na verdade, servem para dividir as pessoas entre as que são sexualmente privilegiadas (cheias de virtudes) e as que compõem a ralé sexual (cheia de vício e infortúnio). Idealmente, o privilégio sexual pertence à sexualidade hétero, conjugal, monogâmica, reprodutiva e não comercial.

 

Não existe direito sem exclusão

 

Gayle Rubin ainda afirma que, “como resultado das lutas travadas na última década, alguns comportamentos sexuais que se encontravam fora do limite da respeitabilidade estão começando a se tornar mais aceitos”. E ela dá como exemplo justamente a homossexualidade monogâmica, que se enquadra perfeitamente no conceito de família utilizado pelo STF para reconhecer a união civil homoafetiva.

 

Esse reconhecimento admite algumas condutas e comportamentos, mas, por outro lado, condena outros. A consagração de direitos não se faz apesar da exclusão, mas justamente por causa da exclusão. Uma não existe sem a outra, e esse é o principal dilema tanto nas reflexões teóricas quanto nos projetos políticos do campo da sexualidade. Daí a afirmação de Rubin de que “a legislação referente a sexo é o mais implacável instrumento de estratificação social e de perseguição erótica”.

 

A grande questão por trás desse dilema é que o direito, ao traçar os limites entre o lícito e o ilícito, termina por consagrar um modo de vida e de expressão da sexualidade. E isso implica que se tire a legitimidade dos demais modos de vida e de erotismo. Falta uma “ética sexual pluralista” que abranja a variedade sexual, pois “uma das ideias mais arraigadas a respeito de sexo é que só existe uma forma de praticá-lo, e que todo mundo devia se guiar pelo padrão (…). A maioria das pessoas comete o erro de tomar suas preferências sexuais por um sistema universal que funciona, ou deveria funcionar, para todo mundo”.

 

Essa ideia de uma sexualidade ideal única é exatamente o que está por trás do entendimento do STF, como se nota nos argumentos que citei aqui. Esse é o principal aspecto da decisão que precisa ser problematizado.

 

Dessacralizar o casamento

 

A questão não é, portanto, a constituição ou não de famílias ou o reconhecimento jurídico delas. Como bem apontou o filósofo francês Didier Eribon, no livro Reflexões sobre a questão gay (editora Companhia de Freud, 2008), a renúncia forçada a um convívio familiar mais tradicional pode ser uma das causas do “porque é tão poderosa a vontade de certos gays (e lésbicas) de serem reconhecidos como casais ou famílias legítimas por seus próximos (e, principalmente, por suas próprias famílias), mas igualmente pela sociedade (e, logo, pelo direito). Assim, não se trata apenas de adotar ‘modelos’ heterossexuais, como às vezes se ouve dizer (‘macaquear os héteros’, dizem os gays que fazem questão de ficar fora de qualquer quadro institucional reconhecido), mas, de modo mais fundamental, de reencontrar uma ancoragem familiar perdida e talvez de restabelecer, por esse meio, laços com a família que foi deixada, ou até de se inserir novamente na vida ‘normal’ ao se reinscrever na sequência das gerações”.

 

Eribon ainda diz que se deveria evitar “opor os gays ligados a um modo de vida fora de todo reconhecimento institucional e até jurídico, e, para muitos deles, a uma sexualidade livre e aberta sobre a multiplicidade dos parceiros, àqueles que preferem viver em casal e aspirar a um registro pelo direito dessa união”. Não há uma oposição entre esses dois modos de vida; antes, eles estão interligados de modo bastante íntimo. A tal ponto, que se poderia dizer que a abertura da instituição matrimonial para os casais gays significaria, por si só, uma subversão estrutural dos modos de vida padrão heterossexuais. Em outras palavras, “é a dessacralização do casamento que torna possível a própria reivindicação de que se deva abri-lo aos casais do mesmo sexo”.

 

O desejo de constituição de famílias tem toda a sua razão e legitimidade, e a reivindicação republicana por igualdade de direitos deve ser apoiada – inclusive porque tem potencial de transformar as relações sexuais hegemônicas ou normalizadas. No entanto, é preciso certo discernimento para não operar com a lógica da hierarquização e da exclusão quando lutamos pelo reconhecimento de um novo direito, ou nos arriscamos a reafirmar um sistema sexual hierarquizado e excludente.

 

Renan Honório Quinalha é militante de direitos humanos e está organizando, com James Green, o livro Ditadura e homossexualidade: repressão, resistência e a busca da verdade, a ser lançado em São Paulo no dia 27 de novembro de 2014. Contato: renanhq@gmail.com.

 

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