literatura
Gunther Ishiyama, Gustavo Vinagre, laranja, literatura, número 3, poesia
Confissões de um poeta aos dez anos de idade
Poemas de Gustavo Vinagre
III
sou tão feliz
da janela do nosso apartamento
posso ver o mar se entortar
o meu pescoço
sinto que posso enrolar todo o Rio de Janeiro em serpentina
VI
minha primeira gozada
primeira de todas
foi metendo no buraco de um rolo de papel higiênico
assistindo comédia-pastelão
à tarde, no SBT
VII
sirvo sua cerveja
com movimentos sincronizados
um sorriso milimetrado
porta-copos sobre a mesa de centro
para sermos felizes como a família da super vick.
sou a sua super vick.
acho chic,
a sua tulipa não poder nem suar.
X
mamãe é gentil
e quer a nossa opinião
sobre perdoar papai, ou não
ora mãe, sou uma criança correta
sem perdão
sou perfeito, faço a tarefa bunitinho
já vou à escola sozinho
quatro e meio quarteirão
nem sei o que ele fez
mas se tá errado
repete ele
XXI
Comprei um chiclete,
nele vinha uma tatuagem.
Passei água e esfreguei,
Segurei e esperei
Com a tattoo no meu peru
tirei pra fora, e mostrei
pra minha prima.
Era uma rosa, era pra ser romântico
XXVII
tenho medo de bate-bolas,
então sou um.
pra confundir,
suporto a máscara aerada,
o pequeno círculo de metal na boca,
o cheiro de plástico da bola,
o som seco que ela faz no chão.
coisa feia. pra espantar a coisa feia, sou feio também.
ainda bem que subo antes
do fim do carnaval
do carro bêbado atropelar uns meninos lá embaixo
contra a banca de jornal.
XXXII
Entro nu,
debaixo da cama e,
sem entender,
me esfrego ao chão de taco frio
de madeira
pensando no Rambo da TV
acariciando meus comandos em ação
entra uma farpa no meu pinto
XLV
O Raimundo é meu amigo do colégio
E hoje vem aqui em casa.
Sinto saudade dos seus óculos fundo de garrafa
Acho que ele me enxerga mais que todo mundo,
Com aquele olhão.
A gente brinca de dinossauro
Joga Sonic e Mario
Passa de nível e zera
Brinca de cabana no lençol
Conta história de terror por horas
Dá beijo na boca
E cada um segura o peru do outro.
… respira muito fundo, faz barulho
Mas ligamos a TV bem alto
Ninguém vai reparar
Que vontade de continuar assim
sempre
Mas mamãe chega, e nos descobre
E tira o lençol
E nos descobre
Raimundo sai correndo pra sala
Ela me diz coisas horríveis
Tô vermelho não sei por quê
Não tinha vergonha até uns instantinhos atrás
Nem consigo olhar na cara dela
Só olho pra TV, fingindo estar interessado
Em um documentário qualquer
Sobre escorpiões.
Depois desse dia, nunca mais lembrarei que Raimundo existe
Mas sei de cor que o escorpião se pica, acuado.
Hoje, vou bem em biologia.
Minha mãe nunca mais foi a mesma.
XLVI
mãos trêmulas
olhos curiosos
um copo que se arrebata contra a parede
até hoje tenho medo da brincadeira do copo
foi dentro d’um que achei essa alma
que hoje habita
meu corpo
cacos caídos pelo chão
XLVII
Minha mãe trazia um banquete
de pedras de gelo trituradas a martelo
dentro de um pano de prato limpo.
passava a tarde vendo pica-pau
estilhaçando os pedacinhos contra a minha arcada
hoje, meus dentes estão pela metade
e dou isto como exemplo de minha educação deteriorada.
Maxilares exaustos de prazer.
Gustavo Vinagre é poeta e cineasta. Dirigiu Filme para poeta cego (2012), sobre o poeta Glauco Mattoso, o inédito La llamada, filmado em Cuba, e Amor e outras construções ou uma boca/ que abarcasse/ tanto cu (2013), que integra seu novo projeto, o curta-metragem Nova Dubai. Os poemas aqui publicados fazem parte do livro inédito Confissões de um poeta aos dez anos de idade.
Ilustrador convidado: Gunther Ishiyama.