Geni é uma revista virtual independente sobre gênero, sexualidade e temas afins. Ela é pensada e editada por um coletivo de jornalistas, acadêmicxs, pesquisadorxs, artistas e militantes. Geni nasce do compromisso com valores libertários e com a luta pela igualdade e pela diferença. ISSN 2358-2618

literatura

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Confissões de um poeta aos dez anos de idade

Poemas de Gustavo Vinagre

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III

sou tão feliz
da janela do nosso apartamento
posso ver o mar se entortar
o meu pescoço

sinto que posso enrolar todo o Rio de Janeiro em serpentina

 

VI

minha primeira gozada
primeira de todas

foi metendo no buraco de um rolo de papel higiênico
assistindo comédia-pastelão
à tarde, no SBT

 

VII

sirvo sua cerveja
com movimentos sincronizados
um sorriso milimetrado
porta-copos sobre a mesa de centro

para sermos felizes como a família da super vick.

sou a sua super vick.

acho chic,
a sua tulipa não poder nem suar.

 

X

mamãe é gentil
e quer a nossa opinião
sobre perdoar papai, ou não

ora mãe, sou uma criança correta
sem perdão
sou perfeito, faço a tarefa bunitinho
já vou à escola sozinho
quatro e meio quarteirão

nem sei o que ele fez
mas se tá errado
repete ele

 

XXI

Comprei um chiclete,
nele vinha uma tatuagem.
Passei água e esfreguei,
Segurei e esperei

Com a tattoo no meu peru
tirei pra fora, e mostrei

pra minha prima.

Era uma rosa, era pra ser romântico

 

XXVII

tenho medo de bate-bolas,
então sou um.

pra confundir,
suporto a máscara aerada,
o pequeno círculo de metal na boca,
o cheiro de plástico da bola,
o som seco que ela faz no chão.

coisa feia. pra espantar a coisa feia, sou feio também.

ainda bem que subo antes
do fim do carnaval
do carro bêbado atropelar uns meninos lá embaixo
contra a banca de jornal.

 

XXXII

Entro nu,
debaixo da cama e,
sem entender,
me esfrego ao chão de taco frio
de madeira
pensando no Rambo da TV
acariciando meus comandos em ação

entra uma farpa no meu pinto

 

XLV

O Raimundo é meu amigo do colégio
E hoje vem aqui em casa.

Sinto saudade dos seus óculos fundo de garrafa
Acho que ele me enxerga mais que todo mundo,
Com aquele olhão.

A gente brinca de dinossauro
Joga Sonic e Mario
Passa de nível e zera
Brinca de cabana no lençol
Conta história de terror por horas
Dá beijo na boca
E cada um segura o peru do outro.

… respira muito fundo, faz barulho
Mas ligamos a TV bem alto
Ninguém vai reparar
Que vontade de continuar assim
sempre

Mas mamãe chega, e nos descobre
E tira o lençol
E nos descobre

Raimundo sai correndo pra sala
Ela me diz coisas horríveis
Tô vermelho não sei por quê
Não tinha vergonha até uns instantinhos atrás

Nem consigo olhar na cara dela
Só olho pra TV, fingindo estar interessado
Em um documentário qualquer
Sobre escorpiões.

Depois desse dia, nunca mais lembrarei que Raimundo existe
Mas sei de cor que o escorpião se pica, acuado.
Hoje, vou bem em biologia.
Minha mãe nunca mais foi a mesma.

 

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XLVI

mãos trêmulas
olhos curiosos
um copo que se arrebata contra a parede

até hoje tenho medo da brincadeira do copo
foi dentro d’um que achei essa alma
que hoje habita

meu corpo

cacos caídos pelo chão

 

XLVII

Minha mãe trazia um banquete
de pedras de gelo trituradas a martelo
dentro de um pano de prato limpo.

passava a tarde vendo pica-pau
estilhaçando os pedacinhos contra a minha arcada

hoje, meus dentes estão pela metade
e dou isto como exemplo de minha educação deteriorada.

Maxilares exaustos de prazer.

 

Gustavo Vinagre é poeta e cineasta. Dirigiu Filme para poeta cego (2012), sobre o poeta Glauco Mattoso, o inédito La llamada, filmado em Cuba, e Amor e outras construções ou uma boca/ que abarcasse/ tanto cu (2013), que integra seu novo projeto, o curta-metragem Nova Dubai. Os poemas aqui publicados fazem parte do livro inédito Confissões de um poeta aos dez anos de idade.

Ilustrador convidado: Gunther Ishiyama.

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