Geni é uma revista virtual independente sobre gênero, sexualidade e temas afins. Ela é pensada e editada por um coletivo de jornalistas, acadêmicxs, pesquisadorxs, artistas e militantes. Geni nasce do compromisso com valores libertários e com a luta pela igualdade e pela diferença. ISSN 2358-2618

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ESCULACHO | Tu tá escrevendo, neguinha!

Qual é a minha onda, meu caminho e minhas broncas? O desafio de ser mulher bissexual negra ambientalista corintiana e, ainda, se entender como escritora. Por Alciana Paulino

 

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Se você fosse uma militante bissexual negra mulher gorda ambientalista periférica libertária, sobre o que escreveria?

 

Tem tanta coisa no jornal, no blog, no site e na puta que pariu que fala tanto. Muita coisa de merda e outras tão interessantes. Qual a finalidade de ter uma coluna em uma revista foda se ao menos você não consegue fazer uma escolha, não consegue fazer um texto?

 

Escrever sendo negra e mulher é forte. Esse desafio pode paralisar.

 

No terceiro semestre da universidade, uma professora foi categórica em dizer: “Você é uma analfabeta funcional”. Bang! Me fodeu, a cretina! Além de não saber escrever, dizia ela que nem ler eu sabia. Fora Machado de Assis, até pouco, não conhecia outrxs escritorxs negrxs. Juntou a crítica da acadêmica com a insegurança sistêmica e acabei por desenvolver um bagulho bizarro, que alguns chamavam de dislexia e desortografia emocional.

 

Por algum motivo, acreditei que não tinha a capacidade de expressar minhas ideias, crenças através das palavras. Passei por muito até chegar aqui. Precisei do apoio dxs amigxs e da aposta cega de algumas pessoas.

 

Mas do que mais precisei, no fundo, foi da crença de que eu ocupo um lugar no mundo que admiro e quero que outrxs respeitem e, ao menos por segundos, desenvolvam sua alteridade.

 

Não quero me sentir refém de estatísticas. Sou mulher, negra e infinitas outras coisas, mas quero que olhem para a minha realidade com o mesmo cuidado com que quero olhar para x outrx.

 

Se não tive, a priori, outras referências, então que eu possa ser uma – e que possa buscar outras. Mesmo perdida sobre o que falar e como falar.

 

Os últimos números desta coluna receberam críticas entusiásticas. As “Memórias da Negrinha da Casa das Putas” foram recebidas por nossxs leitorxs de uma forma muito apaixonada. Algumas/alguns chamaram aquilo de LITERATURA. Minha resposta foi o choque.

 

Nunca me senti capaz de fazer arte. Achei que isso fosse reservado para uma classe ou para pessoas que nascessem com uma espécie de vocação/genialidade. Nunca para mim.

 

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Lembro sempre de uma conversa que tive com Charô (das Blogueiras negras) e Jéssica (do blog Gorda e sapatão), quando compartilhamos dessa certa insegurança de escrever.

 

As letras não foram feitas para nós? Não podemos fazer literatura? Sempre chamarão nossos textos de “literatura negra/feminista”? Qual o problema disso?

 

O foda é o seguinte: você, que se gaba de ser umx grande leitorx. Quantas escritoras leu? E, dessas, quantas eram negras?

 

Para você, que é negra: quando já imaginou narrar histórias específicas da sua realidade? Já imaginou a importância política disso?

 

Estou com um livro da Paulina Chizine embaixo do braço e procurando os da Miriam Alves para comprar.

 

Neguinhas do meu Brasil e do mundo inteiro, precisamos de coragem, ousadia e muita falta de vergonha na cara!

 

Se você curte caneta e papel ou digitar seus desabafos, joga para o mundo! Acredito que ele está sedento e precisando muito que você compre essa bronca! O começo nunca é tão fácil. Mas bora lá!

 

Escrever deve ser o ofício de quem já teve a alma e a carne vendida.

 

 

 Leia outros textos de Alciana Paulino e da coluna Esculacho.

 

Ilustração: Gunther Ishiyama.

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