Geni é uma revista virtual independente sobre gênero, sexualidade e temas afins. Ela é pensada e editada por um coletivo de jornalistas, acadêmicxs, pesquisadorxs, artistas e militantes. Geni nasce do compromisso com valores libertários e com a luta pela igualdade e pela diferença. ISSN 2358-2618

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Fui lá e bati na porta

Inês Castilho conquistou as Genis e conversou sobre imprensa, feminismos e militâncias. Por Alciana Paulino, Carolina Menegatti, Cecília Rosas, Marcos Visnadi e Pedro “Pepa” Silva.

 

Publicado em 17/09/2015.

 

Estávamos lá. Éramos várias pessoas representando os oito coletivos organizadores do (primeiro, queremos assim!) Encontro de Mídia Independente com Foco em Gênero e Sexualidade. Todxs centradxs, relatando suas experiências e desafios. Era a hora de ouvirmos, o microfone estava aberto. E veio ela, toda diva, nos lembrar que o que estamos fazendo, hoje, já há muito se fazia. De outras formas, noutro contexto. Mas se fazia.

 

Foi uma honra contar com sua presença no evento. Não sabemos se já corre à boca pequena, mas, no encontro que aconteceu no Centro Cultural São Paulo, teve mesmo um flerte. Inês Castilho abriu o jogo e a Geni, que é facinha, foi atrás dela pra continuar a paquera.

 

Atualmente integrando a equipe do Outras Palavras, Inês tem uma história importante na luta das mulheres no Brasil. Sua chegada ao feminismo não foi pela esquerda. A aquariana com ascendente em Aquário foi criando sua própria trajetória, lidando com o desafio de ser uma mulher libertária numa sociedade cindida por classes, autoritarismos e uma série de discursos e fazeres hegemônicos.

 

Da descoberta do feminismo à atuação no jornalismo, Inês passou por dois importantes jornais feministas brasileiros. Primeiro, esteve na equipe do Nós, Mulheres (1976-1978), um jornal que já nasceu declaradamente feminista e com uma base ativista composta por mães que reivindicavam creches para seus filhos. Depois, colaborou e editou por muito tempo o mais longevo jornal feminista do país: Mulherio, que circulou entre 1981 e 1988. Isso sem falar na sua contribuição ao cinema nacional, como diretora de curtas!

 

Num casarão da Bela Vista – espécie de QG que abriga diversos coletivos de jornalistas e pesquisadores –, tivemos a oportunidade de conhecer Inês. A voz calma não escondeu o vão entre a militância idealizada e a vida cotidiana: “A gente não é uma ilha, estamos imersos na cultura”.

 

 

Você participou de importantes periódicos feministas. Conta um pouco pra gente como chegou à atuação no jornalismo?

 

Eu não estudei jornalismo, fiz ciências sociais [na Universidade de São Paulo, ainda na rua Maria Antônia, no centro da cidade], mas só até o segundo ano. Entrei em 67, em 68 teve greve… bom, 68 vocês sabem o que foi. Em 69 retomou-se o curso, mas já na Cidade Universitária [campus da USP na zona oeste de São Paulo], e era uma desolação aquilo, absolutamente horrível. Então, a uma certa altura, abandonei [a faculdade] porque já comecei a fazer jornalismo na prática. Na época não precisava de diploma, e quando precisou a gente podia só confirmar um tempo de prática na profissão, que eu tinha, então tive registro de jornalista.

 

Comecei no jornalismo em 67, estava recém-casada. Me casei e entrei em depressão total. Claro que eu não sabia bem por que, mas enfim…  Quando consegui sair daquele sono que me dava, peguei um jornal que jogavam por debaixo da minha porta, e que eu jogava fora sem olhar, e falei: “Opa, esse jornal é bom”. Eu não sabia o que ia fazer da minha vida, porque a faculdade estava em greve, e pensei: “Acho que quero ser jornalista”. Fui lá e bati na porta — a mesma coisa que fiz aqui com o Outras Palavras.

 

Quem me recebeu foi uma pessoa que na época eu não sabia quem era, mas que se tornou um grande escritor, o Raduan Nassar. Aprendi jornalismo ali, chamava Jornal do Bairro e circulava em Pinheiros [bairro de São Paulo]. Lá trabalhou muita gente boa, tipo Maria Rita Kehl, José Miguel Wisnik… Então eu falei que queria ser jornalista e ele falou: “Sinto muito, mas nós só trabalhamos com jornalistas profissionais”. Mas quando eu ia indo embora ele resolveu me dar um teste e acabou me admitindo. Um dia eu e o Raduan fomos ver um filme americano, bem água com açúcar, mas já com umas ideias feministas, e escrevemos dois artigos, lado a lado. Ele achando ridículo, e eu achando o máximo [risos].

 

Me lembro de ter escrito [nesse jornal] alguma coisa sobre creches, que era uma reivindicação muito importante da época — a Amelinha Teles e a Rachel Moreno têm ligações com o movimentos por creches.

 

inês castilho por carolina menegatti

 

O que te aproximou das ideias feministas?

 

Olha, é muito difícil dizer isso. Eu tenho uma vida familiar bastante tumultuada, o que tem a ver com uma condição feminina reprimida, dividida entre as identidades da puta e da santa. Tudo isso eu vivi na família. Não sei se eu seria diferente se não fosse assim. Acho que tem uma sensibilidade, e você capta o mundo a partir daí. Me lembro da minha mãe falando, no fim dos anos 50, que as mulheres agora podiam ir de calça comprida trabalhar…

 

Quando eu fui pra Nova Iorque, por exemplo, fui em busca de experiências homossexuais. Eu falava: fiz tudo o que me mandaram. Casei, separei — porque era muito importante separar, na época —, e me sentia muito infeliz. Então fui viver o avesso, bem longe, e só hoje estou falando à vontade sobre isso.

 

Cumpri todo o script da época, e paguei preços altíssimos por isso.

 

 

Então, quando você voltou, veio com uma bagagem maior de feminismo…

 

É, eu vim querendo traduzir pro português o que tinha aprendido lá. A ONU instituiu em 1975 o Ano Internacional da Mulher, e isso foi o que “autorizou”, de certa forma, os grupos a se assumirem como feministas, a criação de um movimento de mulheres aqui no Brasil.

 

 

Autorizou em que sentido?

 

Diante da ditadura. É simbólico, não é exatamente uma autorização. Mas, depois que a ONU instituiu, deu pra fazer. Antes era mais perigoso.

 

Agora, o que você encontrava? Grupos de esquerda dizendo: “Vocês estão dividindo a luta, isso é coisa de burguesa”. Era um pouco a crítica do Brasil Mulher pra nós. O Mouzar Benedito, um velho jornalista, uma figura, que colaborou com o Brasil Mulher e depois com o Mulherio, falava que o pessoal do Brasil Mulher gozava a gente dizendo que nós éramos “nós, [as] mulheres”, no sentido de que a gente fosse burguesa. Talvez fosse mesmo de um estrato mais intelectual…

 

 

Antes de 1975, como circulavam as ideias do feminismo por aqui?

 

Foi tudo nesse bojo de 68. As ideias chegavam, não com essa rapidez de hoje, mas chegavam.

 

Eu me lembro que, em 68, quando a revolução estudantil chegou no Japão, eu falei: “Não é possível, deve ser alguma coisa astral, nos raios solares” [risos]. Foi a primeira revolução global que teve, foi impressionante.

 

E, em Nova Iorque, vi um movimento feminista que nascia do rescaldo de 68. Contracultura, “vamos viver juntos em comunidade” e tal. O que acontecia? As mulheres ficavam na cozinha e os homens ficavam na sala [das comunidades]. Ali as mulheres começam a se organizar no feminismo, porque percebem que não adianta ser tudo tão lindo se não tiver algo que leve em conta a questão de gênero.

 

 

E como surgiu o jornal Nós, Mulheres?

 

Eu era uma jovem relativamente despolitizada, e já uma ativista autônoma, ao contrário da maioria das pessoas [em publicações feministas da época]. Eu cheguei [dos Estados Unidos], soube da criação desse jornal e fui lá.

 

Dois grupos reivindicam até hoje a fundação do Nós, Mulheres: a Rachel Moreno e um grupo de exiladas meio capitaneado pela Maria Lygia Quartim de Moraes. Esse grupo de exiladas políticas que volta, composto também pela Lia Zatz, era ligado a alguma tendência política que até hoje não sei qual é… Talvez trotskista. Mas tem muita literatura falando disso, e sempre atribuindo a criação do jornal a esse grupo de exiladas. A Rachel Moreno se ressente bastante de não ter sido reconhecida. A uma certa altura ela foi meio que expulsa do Nós, Mulheres.

 

 

Existia uma articulação entre os jornais independentes daquela época?

 

Passava muito pelas relações pessoais. Os grupos eram pequenos, e São Paulo era uma outra cidade, todo mundo se conhecia. Mas não sei falar mais disso, foi coisa que durou pouco.

 

Eu não compreendia. O Nós, Mulheres começou no porão do Versus, que era outro jornal [editado por Marcus Faerman, entre 1975 e 1979], latino-americano, mais cultural, muito interessante. A uma certa altura, a gente se mudou pro mesmo prédio onde o Brasil Mulher estava! E eu, que não tinha nada a ver com aqueles partidos, pensava: “Mas como, por que a gente não vai conversar?!” [risos]. Amelinha, recentemente, disse que ela nem sabia que a gente estava lá. É muito o inconsciente falando e a gente não ouvindo.

 

Era muita coisa não falada. Mas, também, a ditadura ajudava nisso, tinha sempre um clima de desconfiança. Hoje, nesse sentido pelo menos, é mais fácil.

 

 

Como funcionava essa coisa operacional?

 

Era tudo mano a mano. Agora, o financiamento vinha de “estrelinhas”. Regina Duarte, por exemplo, financiou uma edição. Nós íamos atrás e pedíamos. Elis Regina também financiou, assim como a Ruth Escobar, que foi uma grande impulsionadora do movimento feminista. Ela promoveu alguns seminários no teatro, mas também deu um grande impulso à cenografia, à espetacularização das passeatas. Essa coisa de se vestir todo mundo de branco, trazer flores, usar matracas, isso tudo é fruto da visão teatral dela.

 

 

De certa forma, a classe artística trouxe gente para o feminismo, não é? Como grupos de classe média que se identificavam com as artistas nesses encontros?

 

Acredito que sim. Eu ajudei a organizar um encontro sobre prostituição com uma atriz, já não lembro o nome dela.

 

 

Mas que diferença havia entre o Brasil Mulher e o Nós, Mulheres?

 

Bom, a gente se definiu imediatamente como feminista, no primeiro editorial, enquanto que o Brasil Mulher veio da luta pela anistia e era muito mais um instrumento de luta dos partidos clandestinos que usaram esse subterfúgio. A própria Amelinha fala isso.

 

Ouvi recentemente a Amelinha falar, num seminário sobre feminismo que teve no Sesc, que no Brasil Mulher todas eram ligadas a partidos políticos. Já o Nós, Mulheres não, era uma mistura. Eu, por exemplo, caí de paraquedas de um autoexílio nos Estados Unidos, em Nova Iorque, onde eu fiquei de 1973 a 1975. Fui pra lá um pouco por causa do feminismo, mas também porque a ditadura Médici era intolerável, não dava pra ser jornalista aqui de jeito nenhum.

 

 

Todas tinham vindo da universidade?

 

Nem todas. Tinha gente como eu, que corria por fora. Tinha gente como a Marli Gonçalves, que é jornalista hoje e na época tinha uns 17 anos. Tinha um núcleo familiar bem forte, que era a Maria Lygia Quartim de Moraes, a Cida e a Bia Aidar (que eram primas dela), a Suzana Moraes, que era mulher do Juca Kfouri, também era aparentada…

 

Mas o jornal não durou tanto, foi de 1976 a 1978… Era uma época dos jornais alternativos, do Movimento, que era o principal, do Lampião, do movimento gay. Em 1978 começa também o Movimento Negro Unificado. Havia uma grande efervescência. Tudo que hoje se desdobra — gays, trans, lésbicas, bis, cis —, tudo nasceu ali. Inclusive a luta ambiental.

 

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Depois da sua temporada fora do país, você ficou com uma percepção diferente do machismo e da homofobia dentro dos movimentos de esquerda e do feminismo, na época?

 

Antes de falar disso, eu vou dizer que a gente era como agora — a gente não é uma ilha, estamos imersos na cultura. Então havia, por exemplo, uma expulsão dentro do Nós, Mulheres, o que é uma atitude típica do stalinismo. Isso aconteceu!

 

Nos movimentos de esquerda, o machismo grassava. Mas, ao mesmo tempo, havia um certo charme na gente. Nós éramos cortejadas pelos meninos, porque era charmoso ter mulheres que se dão bem com mulheres, em primeiro lugar — porque o jogo em geral é dividir as mulheres, ver a outra como concorrente. A postura de autonomia das mulheres também dava pra gente um certo charme. Ao mesmo tempo que se dizia que a gente dividia a esquerda.

 

 

Mas nos jornais feministas e femininos havia certa opressão em relação às lésbicas?

 

Não era uma coisa muito colocada. O homossexualismo era fundamentalmente masculino, na época. Não me lembro se tinha alguma mulher no Lampião, por exemplo. Era uma coisa muito nascente… Gente, era muito diferente!

 

Quando surgem as lésbicas, e elas são mais feministas que todas as feministas, elas assumem naturalmente a dianteira. Isso me parece óbvio, porque elas não têm amarras com o sistema, a família tradicional etc. Acho que no começo há alguma reticência, mas elas podem falar melhor disso.

 

 

Depois do Nós, Mulheres você se aventurou pelo cinema, não é?

 

Entre o Nós, Mulheres e o Mulherio, eu fiz alguns filmes feministas. Aí, entra em cena a Fundação Carlos Chagas, que cria uma bolsa de projetos sobre mulher. A Cida Aidar e eu decidimos propor um filme, em vez de um trabalho escrito. Daí saiu o Mulheres da Boca, que parte dessa ideia de uma identidade cindida entre a puta e a santa. Tanto que foi uma grande alegria pra mim quando eu vi a Marcha das Vadias, [os cartazes de] “nem puta nem santa”. O negativo desse filme está depositado na Cinemateca. Digitalizar custa muito dinheiro. Eu fiz isso no meu outro filme, o Histerias que é um filme mais autoral, do qual eu gosto bastante. O Jean-Claude Bernardet me ajudou [a digitalizar].

 

Mas o Mulheres da Boca é de 1979 e veio acompanhado de um trabalho com as prostitutas. Na época [1980], tinha um delegado aqui em São Paulo, o [José Wilson] Richetti, que adorava espancar travesti e prostituta. Então a gente fez um trabalho com o advogado Eduardo Muylaert, de dar assistência jurídica às prostitutas.

 

 

Você chegou a estar próxima dos movimentos de prostitutas que a Gabriela Leite representava?

 

A minha aproximação foi essa, de pesquisa e assistência jurídica, na época do filme. Depois, com a Gabriela, eu tive alguns encontros, fiz uma grande entrevista, lembro que participei de um programa na TV Bandeirantes, da Silvia Poppovic. Eu, o Erasmo Dias [secretário de Segurança Pública de São Paulo entre 1974 e 1977] e a Gabriela.

 

Diante da Gabriela, eu não tinha muito o que falar sobre a prostituição, e lembro que a Silvia insistia mais comigo do que com ela, o que causou um certo mal-estar. Mas, ao mesmo tempo, discutir com o Erasmo foi bom. [Ele] era um delegado infernal. O cara que invadiu a PUC em 77. Um cara da direita.

 

 

Foi mais ou menos como chamar o Bolsonaro pra um debate desses hoje.

 

É. Pra fazer polêmica. A Silvia estava do nosso lado, digamos assim. Ele estava lá pra apanhar [risos]. Mas eu não tinha muito o que dizer perto da Gabriela Leite. E ela tinha uma atitude “politicamente incorreta”, de dizer: “Eu sou prostituta porque eu gosto”. Não tinha o discurso “porque eu preciso”.

 

 

Já nesse começo dos anos 1980, surgia o Mulherio. O que você acha que o diferenciava do Nós, Mulheres?

 

Ah, tudo. Na época do Nós, Mulheres, a gente estava muito referida à periferia — porque, ainda que o jornal não fosse inteiramente ligado à esquerda, e portanto a questão de classe não fosse tão forte, ela estava absolutamente presente e era definidora da nossa posição. Classe, gênero… raça ou cor ainda não com tanta clareza, mas já estava colocado.

 

Na época, havia muitos movimentos de base na periferia de São Paulo, que de certa forma sustentavam a resistência à ditadura. Os clubes de mães, por exemplo. E ali a questão moral era muito forte, a Igreja barrava, havia muitas amarras. A liberdade era bastante estreita. E as mulheres da periferia eram tão mais apegadas à moral tradicional porque, com qualquer deslize, já eram tachadas como putas. A divisão da identidade feminina era muito mais radical.

 

Mas a luta delas era a nossa luta. A gente tentava trazer pro jornal a questão das empregadas domésticas, as lutas do bairro por asfalto, água, creche…

 

Primeiro que o O Mulherio nasce dentro de uma instituição, que é a Fundação Carlos Chagas, como um projeto de pesquisa. Tinha gente muito boa lá, por exemplo a Fúlvia Rosemberg e a Carmen Barroso. Elas criaram o Mulherio com a ideia de articular os grupos de estudo sobre a mulher que estavam aparecendo na academia. Década de 80 é quando isso começa a bombar, em cada fim de mundo começam a aparecer esses grupos.

 

Uma das coisas importantes do Mulherio é a voz que ele deu pras primeiras teóricas do feminismo negro: Lélia Gonzalez e Sueli Carneiro, que foram colaboradoras.

 

Eu fui convidada para dirigir o jornal quando ele nasceu, mas eu era bolsista da Fundação por causa dos filmes, não podia acumular as duas coisas. Quando terminei o Histerias, o jornal já estava fora da Fundação, saiu e virou uma ONG. Nunca ficou muito claro o porquê disso, mas a uma certa altura elas queriam que ele ficasse autônomo, embora continuassem acompanhando o trabalho. Toda reunião de pauta e de avaliação elas estavam lá.

 

 

Uma das coisas importantes do Mulherio é a voz que ele deu pras primeiras teóricas do feminismo negro: Lélia Gonzalez e Sueli Carneiro, que foram colaboradoras.

 

 

 

A partir de então, como o jornal se financiou?

 

Pela Fundação Ford, que já financiava através da Fundação Carlos Chagas. Ele se manteve até o fim com esse financiamento, com alguns outros inputs pra projetos específicos, eventualmente.

 

 

A saída da Fundação afetou a circulação ou algum outro aspecto do Mulherio?

 

Ele foi perdendo uma característica inicial, que era mais acadêmica.

 

 

O jornal circulava na periferia?

 

A gente levava. Mas a circulação era ridícula, acho que a tiragem máxima a que chegamos foi 10 mil exemplares.

 

 

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Nos anos 1980, a grande imprensa (a Folha de São Paulo, pra citar um caso) incorporou na pauta muitos assuntos que estiveram na base dos jornais alternativos e militantes. Isso afetou de alguma forma o Mulherio?

 

Uma das razões por que o jornal acabou foi esta: o assunto [feminismo] deixou de estar segregado numa certa imprensa para invadir a grande imprensa. Claro que, com isso, vem uma certa cooptação, um tratamento mais glamouroso. As melhores publicações se aproximam do tratamento dado pela imprensa feminista, mas nunca é a mesma coisa, porque não tem uma ligação do jornal com os movimentos.

 

O Mulherio mesmo foi perdendo esse papel, mas aí acho que é algo que teve a ver comigo, que me isolei. Sempre teve muitas disputas internas no feminismo, e isso é uma coisa que aprendi e que vale a pena falar: não basta ser mulher pra ser bacana, assim como não basta ser pobre, não basta ser gay… não é porque é oprimido que é legal. Na minha ingenuidade, eu achava, desde o Nós, Mulheres, que estávamos nos braços de mamãe, mas a mamãe também não é legal sempre [risos]. Eu sofri altos boicotes no Mulherio, o que foi me afastando [dos movimentos sociais]… Era quase um golpe que tentavam dar. E eram as mulheres do PT que tentavam dar um golpe pra pegar o jornal pra si.

 

 

O João Silvério Trevisan, na entrevista que deu pra Genifalou a mesma coisa do PT com relação ao Somos: que teve uma espécie de golpe interno pra cooptar o grupo pra servir de base pro partido. Era essa a operação no Mulherio também?

 

Não sei se elas queriam que servisse de base pro partido, ou se era por inveja, que é uma coisa que também rola muito. A gente não nomeia esse sentimento, mas ele está muito mais presente do que a gente imagina.

 

 

Mas o cenário também favorecia essas articulações partidárias, com a volta das eleições.

 

Havia uma pessoa que era ligada ao PT e que queria porque queria assumir a direção do jornal. Pra isso, ela fez o que achava que tinha que fazer, mentiu, caluniou, trazia gente do partido… Mas não conseguiu. Agora, não sei se era uma coisa de instrumentalizar o jornal, como uma plataforma direta do PT, ou se era só um grupo de mulheres articulado que queria ter um jornal feminista.

 

Mas aí eu fui me isolando, e o Mulherio perdeu o papel de ser um centro articulador dos movimentos, como ele era. E isso aconteceu junto com o feminismo ter deixado de ser um assunto exclusivo da imprensa feminista.

 

 

O Mulherio terminou bem na época da Constituinte. Vocês participaram desse processo de algum jeito?

 

Não. Estava bem nessa fase final, e aí é um mea culpa mesmo que eu faço. Depois eu tive alguma participação na Eco 92, mas já num veículo da grande imprensa. Mas, década de 90, vamos pular? [risos]. Foi horrível! Mas eu usei bem essa década, me dediquei ao santo-daime.

 

 

Você acha que nos anos 90 houve uma desarticulação dos movimentos?

 

Hoje eu entendo bem: os anos 90 foram horríveis porque foi o neoliberalismo tomando conta do mundo. Primeiro, teve aquela grande frustração da eleição de 89, que todo mundo se envolveu, batalhou, e ganhou o Collor. E eu me lembro que, nesse período Collor, eu estava andando na avenida Brasil e de repente só tinha carro importado na minha frente.  

 

O neoliberalismo chegou com tanta força no país que foi um período de muita depressão. A gente não sabia por que, exatamente. Quando você está muito dentro, você não percebe. Era como se você já tivesse conseguido todos os direitos. Essa liberação sexual superficial meio que teria dado conta de tudo. E o que a gente viveu em 68 era como se fosse uma loucura, um absurdo, não havia sequer espaço pra falar disso, tamanha a rigidez das ideias bem-comportadas que se estabeleceram.

 

 

A questão sexual virou uma coisa muito mercadológica…

 

Exatamente. Foi completamente cooptada, glamourizada. Vira uma identidade de consumo, o que ainda perdura. E, quando deixou de ter o inimigo externo [a ditadura], começaram as questões internas, ficou bem complicado.

 

Mas nos anos 90 crescem os centros acadêmicos de estudos de gênero. E acho que ficam movimentos feministas que prestam serviços em duas áreas: violência e saúde. Tem o Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, que existe até hoje, e, em violência teve o S.O.S. Mulher, da Jacira Melo, que hoje é do Instituto Patrícia Galvão. Eles tiveram um papel bastante concreto, de ajuda em áreas que as mulheres precisavam. Fora isso, caíram um pouco no vazio aquela busca por uma identidade nova, que não tinha a ver com o que a gente trazia na bagagem social, e a luta contra a ditadura.

 

 

[Nos anos 90, a questão sexual] foi completamente cooptada, glamourizada. Vira uma identidade de consumo, o que ainda perdura. E, quando deixou de ter o inimigo externo [a ditadura], começaram as questões internas, ficou bem complicado.

 

 

E a questão do aborto? Por que você acha que a discussão sobre legalização avançou pouco, digamos, desde essa época da imprensa alternativa?

 

Eu acho que o país regrediu, em termos de comportamento, de valores sociais. Está mais conservador. Aliás, acho que o mundo, não só o Brasil. Do que a gente viveu como promessa, nos anos 60 e 70, até o que a gente tem hoje, conseguimos muita coisa, mas tudo muito regulado, e algumas coisas nem pensar, tipo o aborto.

 

Tem a ver com a ligação do país com a Igreja. Antes, a Católica; agora, as evangélicas, que são piores, se isso for possível. A Católica tem uma atuação muito positiva em alguns campos, agora, no da moral e dos costumes, é catastrófica, sempre foi.

 

 

Que avaliação você faz do momento atual, em que, ao mesmo tempo, há um conservadorismo raivoso e explícito, conquistas institucionais (Lei Maria da Penha, casamento igualitário) e um reaparecimento de diversos tipos de grupos de luta política?

 

Há uma radicalização no mundo inteiro, uma disputa muito grande, que não sei se a gente vai conseguir… Eu sou muito otimista em geral, mas às vezes é difícil, viu.

 

Agora, eu acredito numa transição para o pós-capitalismo. Um conselho que eu daria pra todo mundo, a começar por mim, é: plante em todo lugar, porque vai faltar comida, e a gente depender do sistema é se ferrar. Procure viver à margem do sistema o quanto for possível. Tenha seu grupo de relacionamentos, de trocas. É uma forma de esvaziar, ir criando novas formações com relações mais igualitárias, mais sustentáveis.

 

Agora eu estou envolvida com a #partidA. Eu não sei se isso vai virar um partido, mas o simples fato de colocar em perspectiva a tomada do poder institucional é uma coisa muito transgressora e interessante, porque só correr por fora eu não sei se ajuda. É uma iniciativa bastante atraente, até pra criticar, porque nós nunca vamos chegar a ser um partido dentro desse sistema eleitoral. É uma denúncia ao sistema, também. E o que estamos percebendo é uma prontidão enorme de mulheres no Brasil inteiro, já existem núcleos em muitos estados.

 

E a outra coisa nova, eu acho, é o feminismo negro. Esse é uma coisa bonita! Eu fiquei muito feliz por exemplo com o Nós, Mulheres da Periferia [presente no Encontro de Mídias Independente com Foco em Gênero e Sexualidade].

 

 

Agora, eu acredito numa transição para o pós-capitalismo. Um conselho que eu daria pra todo mundo, a começar por mim, é: plante em todo lugar, […] procure viver à margem do sistema. É uma forma de esvaziar, ir criando novas formações com relações mais igualitárias, mais sustentáveis.

 

 

E como é a relação da família com seu passado de militância?

 

Até hoje isso repercute! Tem uns cutucões, umas cobranças… Porque a gente realmente deixou os filhos, colocou a família num plano bastante secundário em relação à militância. Tenho dois filhos homens bem machistas, infelizmente. Dois filhos e três netos homens!

 

Nessa história de rejeitar o papel feminino que a gente tinha, das mães, muitas vezes a gente jogou a criança junto com a água do banho, pra usar essa expressão. A gente radicalizou, meteu o pé na porta e foi. E eu, uma aquariana com ascendente em Aquário, fui que fui. Acreditava que era o fim da história. E eu venho pro feminismo da linhagem da contracultura, ao contrário da linhagem politizada de esquerda. Eu venho da contracultura, do “sexo, drogas e rock’n’roll”, e paguei meus preços por isso. Vocês hoje têm condições de buscar mais o caminho do meio, talvez.

 

[Silêncio da Geni.]

 

[Risos] Acho que não, pelo jeito.

 

Mas não foram só as feministas. Se você pega aquele filme do Eduardo Coutinho, Peões, o que me chama a atenção na fala daqueles homens e daquelas mulheres é como eles lamentavam ter deixado os filhos pela luta sindical. A vida impôs, a história impôs isso pra gente, por causa da ditadura. E realmente é uma coisa muito difícil, uma divisão muito grande. Acho que a gente deixou uma carência aí, nesse tempo dedicado à luta política. Mas agora tem os netinhos [risos]. É muito bom ter netinhos!

 

 

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Ilustração: Carolina Menegatti

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