Geni é uma revista virtual independente sobre gênero, sexualidade e temas afins. Ela é pensada e editada por um coletivo de jornalistas, acadêmicxs, pesquisadorxs, artistas e militantes. Geni nasce do compromisso com valores libertários e com a luta pela igualdade e pela diferença. ISSN 2358-2618

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A precarização tem rosto de mulher

No mês em que o Congresso Nacional discute a ampliação da terceirização do trabalho, trocamos ideias com Diana Assunção, militante do coletivo Pão e Rosas. Por Lia Urbini

 

 

 

O trabalho feminino tem sido historicamente considerado trabalho barato. A constatação de Karl Marx é lembrada por Diana Assunção, autora do livro A precarização tem rosto de mulher (edições Iskra, 2013), que conta a história da luta das faxineiras terceirizadas da Universidade de São Paulo pelo cumprimento dos seus direitos trabalhistas. Diana é diretora do sindicato dos trabalhadores dessa universidade, historiadora e militante trotskista do coletivo Pão e Rosas.

 

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Conversamos com ela em junho deste ano, quando pensávamos em fazer uma matéria para a Geni sobre a inclusão de travestis e transexuais no mercado de trabalho. A matéria acabou caindo, mas da pesquisa saíram vários questionamentos, principalmente quanto à eficácia da inclusão num sistema que, como observa Diana, é “baseado na reprodução da desigualdade e na exploração”.

 

Este mês, o assunto voltou à tona por causa das discussões no Congresso Nacional sobre o Projeto de Lei nº 4.330/04, conhecido como PL da Terceirização (veja boxe). O coletivo Pão e Rosas vêm lutando contra ele, defendendo também que os terceirizados sejam efetivados sem necessidade de concurso público. Pela articulação entre gênero e mundo do trabalho, retomamos agora, com novo sentido, alguns trechos da nossa entrevista com Diana, que nos ajudam a entender as especificidades da luta pela igualdade dentro do sistema capitalista.

 

Trabalho precário

 

Diana não nega a necessidade da inserção de mulheres no mundo do trabalho. Segundo ela, essa é uma condição necessária da libertação das mulheres, pois leva à independência financeira e à participação na classe trabalhadora. Mas ela adverte: não podemos ter esperança de que isso, por si só, resolva todos os problemas.

 

“O trabalho feminino, como definia Karl Marx, desde sempre foi considerado como um cheap labor (trabalho barato), o que significa que, ao passo que a mulher entra na produção, é uma entrada que ocorre de forma precária. Por um lado, o capitalismo se utiliza dos grupos socialmente subordinados por gênero, etnia ou raça para rebaixar os salários do conjunto da classe operária, pois aumenta-se a demanda por emprego e consequentemente o chamado exército industrial de reserva, quer dizer, os desempregados. Por outro lado, a entrada na produção faz com que o capitalismo tenha que responder ao problema da reprodução: o que fazer com o serviço doméstico se as mulheres passam a trabalhar oito horas por dias (e às vezes mais) como seus maridos? A resposta foi muito simples. Que estas mulheres continuem fazendo os dois trabalhos: um remunerado, durante uma jornada definida, e outro diretamente gratuito, em sua casa. Essa é a dupla jornada de trabalho.”

 

Além da dupla jornada

 

“Dizemos que [o trabalho da dona de casa] é uma jornada de trabalho – como a que fazemos na fábrica, na empresa, na universidade – porque executamos serviços como limpeza, alimentação, lavagem de roupas, cuidados com as crianças, entre outros, que são essenciais para que tanto a mulher trabalhadora quanto seu marido e filhos trabalhadores possam continuar trabalhando no dia seguinte.”

 

Esse, segundo Diana, é um jeito que o sistema capitalista encontrou de inserir a mulher no mercado de trabalho, ao mesmo tempo em que garante a continuidade dos trabalhos domésticos, que aparecem como uma tarefa naturalmente feminina. Mas isso não tem a ver com as capacidades da mulher, e sim com os interesses dos proprietários dos meios de produção e seus representantes políticos. “Assim, o Estado se isenta de garantir creches, lavanderias e restaurantes comunitários sob controle dos trabalhadores e usuários como forma de estatização dos serviços domésticos, e, por outro lado, os patrões se isentam de pagar salários que permitam [às mulheres], na sociedade em que vivemos, pagar por esses serviços.”

 

“Então, não considero que a entrada no mercado de trabalho seja ‘mais um caminho para acentuar desigualdades’, mas vejo, como tudo no capitalismo, a contradição que isso carrega. Considero que a discussão a ser feita é o fato de existir uma percepção, que ainda pauta muito os movimentos feministas, de que as demandas fundamentais das mulheres seriam as reivindicações estritamente por igualdade de condições, o que é problemático quando não se liga ao questionamento do capitalismo como sistema baseado na reprodução da desigualdade e na exploração. Desconectando esta questão da necessidade de combater o capitalismo, os movimentos terminam não respondendo ao fato de que a inserção que as mulheres negras (provenientes da classe trabalhadora e que correspondem a uma ampla gama das mulheres) conquistam é em um trabalho extremamente precarizado, que ainda se soma à jornada de trabalho doméstico, como falei anteriormente. Trata-se de uma verdadeira escravidão assalariada, na qual estas trabalhadoras estão desprovidas de quaisquer direitos.”

 

Homofobia, racismo e desigualdade de salários

 

“As mulheres de todas as classes seguem tendo os salários qualitativamente mais baixos que os homens pelo mesmo trabalho realizado, porém, quanto mais precário o posto de trabalho, mais isso se faz sentir. Os preconceitos sociais estão a serviço disso. Então, se você for mulher, negra, pobre e homossexual, terá que se submeter a fazer os piores trabalhos. Esse é um pilar do capitalismo. Igualdade formal para a entrada no mercado de trabalho pode significar para as filhas da classe média alta e da burguesia mais independência (conquistando altos cargos), enquanto para as mulheres da classe trabalhadora esse passo vem acompanhado de precarização e superexploração. A questão é simples: as mulheres da burguesia e da classe média alta querem igualdades de direitos com os homens pra poder continuar explorando, como classe dominante. Essa igualdade de direitos é totalmente insuficiente para responder ao problema de milhões de mulheres no mundo inteiro, que compõem 70% da população pobre de todos os países.”

 

O feminismo burguês como utopia reacionária

 

“Há um enorme setor do feminismo governista que afirma ser uma conquista o fato de termos uma mulher na presidência. Porém, qual a política que ela executa? É uma política que realmente responde aos interesses das mulheres e das trabalhadoras? Dilma tem negado o direito ao aborto, para não enfrentar as bancadas religiosas, e aprofundou o modelo de país baseado no trabalho precário, que tanto nega direitos às mulheres. Ainda assim, há muitas feministas que consideram que a luta pela emancipação das mulheres é a luta por postos de poder no governo ou até mesmo em empresas capitalistas. Nosso movimento de mulheres vem sendo parte dos setores que não somente denunciam a política governista como rechaçam a ideia de que sejam estas mulheres no poder que irão responder aos problemas das mulheres pobres e trabalhadoras.”

 

Além de Dilma Rousseff, Diana lembra outras mulheres que encabeçam a política de seus países, como Cristina Kirchner e Hillary Clinton: “O que pode ser mais utópico do que a proposta de feministas que consideram que a libertação das mulheres virá da aliança entre essas governantes e as mulheres pobres? Como se daria uma aliança entre Hillary Clinton e as meninas bombardeadas por ela própria no Afeganistão ou no Iraque? É uma utopia reacionária”.

 

Feminismo e revolução

 

Diana ainda lembra uma frase de Leon Trótski, para quem “o capitalismo tira com uma mão o que dá com a outra”. “Por isso”, diz ela, “uma verdadeira luta por reformas só pode ser consequente se estiver entrelaçada com a luta revolucionária.”

 

“Não há sociedade capitalista sem opressão, pois não há fim da opressão numa sociedade baseada na desigualdade. A homofobia, o racismo e o machismo atuam como um veneno dentro da classe operária, enfraquecendo-a e afastando-a de seu objetivo revolucionário. Por isso também, as bandeiras dos setores oprimidos são fundamentais para que a classe operária compreenda que não pode libertar a si mesma oprimindo os outros. Não se pode, portanto, pensar na luta das mulheres fora de um questionamento da sociedade de classes em que vivemos. Como diria a militante estadunidense Louise Kneeland, quem é socialista e não é feminista carece de amplitude. Mas quem é feminista e não é socialista carece de estratégia. Por isso, continuaremos exigindo nosso direito ao pão, mas também às rosas!”

 

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Entenda a terceirização

 

No site do Ministério do Trabalho e Emprego há uma definição oficial do que seja a terceirização. Segundo a cartilha do Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese), publicada nesse site, “terceirização é o processo pelo qual uma empresa deixa de executar uma ou mais atividades realizadas por trabalhadores diretamente contratados e as transfere para outra empresa. Nesse processo, a empresa que terceiriza é chamada ‘empresa-mãe ou contratante’ e a empresa que executa a atividade terceirizada é chamada de ‘empresa terceira ou contratada’”.

 

Mas as definições oficiais nunca são suficientes. O funcionário público Zeca Baboin, que acabou de defender uma dissertação de mestrado sobre direito de greve, nos conta o que a terceirização significa para as trabalhadoras e os trabalhadores que a sofrem. “A terceirização representa um aprofundamento na transformação do trabalho humano em mercadoria. A empresa tomadora de serviços se desvincula de responsabilidades com o trabalhador e compra trabalho como se fosse matéria-prima. A terceirização nada mais é do que a mercantilização do trabalhador, que deixa de prestar serviços ao seu real empregador, que apenas se incumbe de negociar o valor de seu trabalho àquele que necessita. O trabalho terceirizado representa o aprofundamento da exploração, uma vez que o trabalhador passa por dois processos de apropriação de seu labor (o do empregador e do tomador), sem qualquer benefício adicional. Impossível verificar qualquer vantagem ao trabalhador.”

 

Entenda o PL 4.330

 

Apresentado pela primeira vez em 2004 pelo deputado Sandro Mabel (PMDB-GO), o PL da Terceirização promete “regulamentar os contratos de prestação de serviço a terceiros e as relações de trabalho dele decorrentes”, mas, na prática, sua aprovação significa a generalização das terceirizações. Por esse motivo, tem enfrentado muita resistência de movimentos sociais, organizações de trabalhadores e até da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho.

 

Há dois anos tramitando na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC), o PL foi discutido em uma espécie de audiência pública no último dia 18, como tentativa (fracassada) de encerrar o debate na esfera dos deputados e passar para o Senado. Até o fechamento desta edição, tinham sido agendadas mais cinco sessões da comissão, depois das quais o projeto deverá ser encaminhado para votação no Plenário.

 

Abaixo, comentamos alguns dos principais pontos de divergência do PL, retirados do próprio site da Câmara dos Deputados.

 

1. Abrangência da terceirização: a nova lei deve valer para todas as atividades da empresa ou só para as chamadas atividades-meio?

 

Hoje em dia, apenas as atividades-meio podem ser terceirizadas, ou seja, atividades que não se relacionam diretamente com as atividades centrais realizadas pela empresa (seja ela pública ou privada). No caso de uma universidade, por exemplo, seu fim último tem sido considerado a formação dos alunos. Nesse raciocínio, os professores realizam as atividades-fim, e os funcionários que mantém a estrutura física realizam as atividades-meio; como consequência, podem ser terceirizadas a alimentação, a segurança e a faxina, mas não os professores. O projeto de lei afirma ser possível terceirizar serviços de atividades inerentes, acessórias ou complementares à atividade econômica da empresa contratante, o que amplia o escopo de possibilidades atuais de terceirização.

 

Um ponto extremamente importante nesta discussão é a própria ideia de atividade-meio e atividade-fim. Zeca Baboin também problematiza essa categorização: “A atividade-meio, dizem, é o que não se relaciona com as atividades centrais realizadas pela empresa. Sob essa perspectiva, hoje são legalizados os serviços de segurança e de limpeza. Dizem, por exemplo, que a atividade de uma faxineira não se relaciona diretamente com a atividade de um grande escritório de arquitetura, uma vez que a função do escritório é desenhar prédios. A limpeza seria apenas uma questão lateral. Ora, e a limpeza de um restaurante, é atividade-meio? Alguém comeria lá se soubesse que o local não tem adequadas condições de higiene? A limpeza das instalações em fábricas de alimentos não está relacionada diretamente com a qualidade final dos produtos? Com relação aos vigilantes terceirizados, o paradoxo mais claro é o dos bancos. Qual é o serviço prestado pelos bancos aos consumidores ordinários se não a garantia de segurança do dinheiro (a ideia de que seu patrimônio está bem guardado e disponível a qualquer momento)? “Como defender que o trabalho de um vigilante de agência nada tem a ver com a atividade fim de um banco? Esse falso processo de negação da relevância central do trabalho humano tem que ser combatido, e não reafirmado.”.

 

2. A responsabilidade da empresa contratante em relação às obrigações trabalhistas deve ser solidária ou subsidiária?

 

Para Aline Sodré, que se formou em direito com uma monografia sobre as terceirizações, “a responsabilidade proposta pelo PL de Mabel é subsidiária, e isso dificulta o pagamento das verbas trabalhistas ao terceirizado, em comparação com a responsabilidade solidária. Na solidária, o trabalhador pode acionar indistintamente tanto o prestador quanto o tomador de serviços, que costuma ter mais recursos. Já na responsabilidade subsidiária, prestadora e tomadora são acionadas em conjunto, mas primeiro buscam-se os bens da empresa prestadora de serviços para somente depois executar a tomadora. Atualmente, é a Súmula 331 o principal dispositivo jurisprudencial usado para regular a terceirização, e ela prevê responsabilidade subsidiária.”. O PL em questão, portanto, seria uma consolidação legal dessa situação.

 

3. Trabalhadores terceirizados podem desfrutar dos mesmos direitos dos trabalhadores contratados diretamente pela empresa (incluindo a representação sindical)?

 

A ampliação das terceirizações acentua a divisão dos trabalhadores de acordo com distintas formas de contratos de trabalho. Atualmente, esse fenômeno já é vivenciado em muitos setores, e isso dá origem a uma disputa interna entre trabalhadores que realizam as mesmas atividades, mas que desfrutam de direitos diferentes, como pisos salariais distintos, carga horária de trabalho etc. Aline afirma que, no PL 4.330/04, “confere-se à empresa tomadora de serviços a faculdade de optar ou não pela concessão aos terceirizados dos mesmos benefícios oferecidos a seus empregados diretos, o que representaria a autorização de uma patente discriminação entre as duas categorias de empregados”. Essa situação se agrava a partir do momento em que os próprios sindicatos aceitam a situação como um fato incontestável e dividem seus lotes de representação entre as diferentes categorias de trabalhadores. Além disso, ainda é possível observar como prática recorrente em empresas terceirizadas as frequentes realocações e transferências dos trabalhadores de seus setores e postos de trabalho, o que também atrapalha consideravelmente as condições de organização e articulação dos trabalhadores.

O PL, portanto, também só retrocede em termos de direitos do trabalhador, em relação à CLT e às regulamentações do funcionalismo público – uma vez que, ao ampliar o espectro das empresas passíveis de terceirização, amplia o montante de trabalho terceirizado.

 

Para saber mais

“Especialistas avaliam consequências da aprovação do PL das Terceirizações”, publicado no Brasil de Fato.

Íntegra do PL 4.330.

 

*Também colaborou Eduardo Borges.

Leia outros textos de Lia Urbini.

Ilustração: Tiago Kaphan.

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