Geni é uma revista virtual independente sobre gênero, sexualidade e temas afins. Ela é pensada e editada por um coletivo de jornalistas, acadêmicxs, pesquisadorxs, artistas e militantes. Geni nasce do compromisso com valores libertários e com a luta pela igualdade e pela diferença. ISSN 2358-2618

religião

, , , , , ,

Abraçar o mistério

Um vídeo de Chico Xavier e uma compreensão religiosa da homossexualidade. Por Tiago Kaphan

 

ceu_3_flatten

 

Ressalva diz que os trechos que reproduzo aqui são de memória, foi o que ficou deles em mim.

 

Tem uma parte estranha nas religiões. São os dogmas, as regras de conduta, as regras dos rituais. Muitas dessas coisas são incompreensíveis, no sentido de que não é possível entender completamente por que tal coisa se dá de determinada forma (e não de outra).

 

Ouço uma coisa dessas e aceito; penso “as coisas são como são”; de um jeito um pouco resignado; sabendo que no fundo essas coisas nunca vão fazer sentido pra minha (faculdade da) razão.

 

E está certo! Essas condutas, rituais e dogmas não foram feitos para conversar com a razão (nesse sentindo mais lógico). Não estão abertos nessa direção. Para chegar em algum deles é preciso um pulo do gato!

 

O mistério me abraçou

 

Uma das figuras religiosas que eu gosto é o Carlos Castañeda, um antropólogo americano que virou aprendiz de brujo no México. Em um de seus livros, seu mestre, dom Juan, explica a constituição do ser (humano, talvez). Desenha na areia um diagrama com alguns pontos, um octógono talvez. Diz que a parte do todo, da realidade, do tudo que existe, que podemos alcançar com o intelecto, é muito menor do que costumamos pensar. Temos muitas outras ferramentas para conhecer – ferramentas que a cultura ocidental desconhece. O intelecto só alcança três desses oito pontos.

 

Existem algumas religiões de que gosto mais. Porque são antigas e trazem consigo grandes quantidades de conhecimento muito lapidado. Hinduísmo, taoismo, budismo. Meu pulo do gato aconteceu com o hinduísmo, lendo um livro (Autobiografia de um iogue). O livro traz passagens que beiram (beiram, não, mergulham com o corpo todo) o mágico, o fantástico. E isso tudo em uma narrativa de alguém que conserva um senso tão pé no chão de ver a vida – tão “ocidental”.

 

Meu pulo do gato foi assim: olhei pro mágico, pro fantástico, olhei pra figura do autor do livro. Não conseguia acreditar que alguém tão sensato estivesse mentindo. Mergulhei. E assim o mistério me abraçou. Assim, um bom tanto de explicações, de conhecimentos começaram a ser acessíveis.

 

Em um debate esquentado entre o Guru de meu Guru e um estudioso hindu de religiões, o Guru de meu Guru diz com ironia: “Então surpreendentemente o senhor foi incapaz de isolar Deus em um tubo de ensaio! E conclui por isso que Ele não existe”. Ou seja, se Ele existe da forma que nos contam, comprovar Sua existência é mais difícil do que alinhar um complexo pensamento lógico.

 

***

 

Isso dito, gostaria de mostrar este vídeo muito bonito, trecho do programa de variedades Pinga-fogo, da década de 1970. O entrevistado, Chico Xavier, discorre, do ponto de vista espírita, sobre a homossexualidade.

 

 

(O primeiro vídeo é o que quero mostrar. O segundo é de onde foi recortado o primeiro.)

 

 

Meu hinduísmo e o pouco que conheço do espiritismo conversam com facilidade.

 

E quando vi o vídeo senti um alívio. É como se alguém me dissesse, de um lugar garantido: ser homossexual não é doença, não é condição enferma. Não tem nada de errado. É mais uma das coisas da vida.

 

O etéreo, o astral e o terreno

 

Juntando tudo:

 

Um mistério (daqueles que falei acima), por exemplo: o mundo, o universo, a parte mais real dele é ele não manifestado. A criação, a existência, o que podemos pegar, sentir, tocar; o que entendemos por nós mesmo é o não manifestado se manifestando. É, num termo hindu, Lila, brincadeira, jogo de Deus. Nessa manifestação criam-se tempo e espaço (que não existem na realidade). Criam-se, grosso modo, três mundos: o etéreo (mais sutil dos três), o astral e o terreno (menos sutil dos três, mais matérico). O etéreo compreende o astral, que compreende o terreno. Tudo o que conhecemos (galáxias, planetas, Terra etc.) está no terreno. A ciência ainda não consegue acessar o astral, muito menos o etéreo. E muito, muito menos o imanifestado.

 

Quando se morre, por exemplo, vai-se daqui para o mundo astral. Passa-se um período de aproximadamente 500 anos lá e volta-se para cá, para encarnar mais uma vez. O hinduísmo diz isso, o espiritismo (até onde sei; porque conheço pouco) também diz.

 

*

 

Acreditar num mistério como esse (inclusive na reencarnação) faz com que eu saiba que muitos dos conhecimentos (científicos, por exemplo) aceitos em nossa sociedade estão errados. Um outro exemplo: posso dizer que o mundo é essencialmente bom! O que, bem sei, me criaria problemas com umas tantas correntes filosóficas (no mínimo!).

 

*

 

E é assim que funciona esse conhecimento interno das religiões (os dogmas, as regras de conduta etc.). É possível explicar cada um deles. Mas é explicação que leva em seu seio um sujeito contente que abraçou um bom balde de mistérios.

 

Todos esses conhecimentos estão certos? Não! Existe muita gente falando besteira? Sim!

 

Imagine que o caminho de cada ser por aqui é, de modo geral, de evolução. Ao longo das muitas vidas aprendendo e aprendendo. O nirvana é o lugar do ser que chega à perfeição. Em quantas coisas absurdas eu já devo ter acreditado ao longo desse caminho.

 

Quase concluindo: gosto muito, então, de uma fala do antropólogo Joseph Campbell, a que assisti no DVD O poder do mito. Ele conta que o caminho de cada um é, apesar de todas as companhias, só. E que ao longo desse caminho encontramos vestígios, marcas deixadas por quem passou por ali. Nenhuma delas é completamente verdadeira; cada uma carrega um tanto de verdade. E elas nos ajudam ao longo de nosso caminho. São coisas que carregamos conosco, por pouco ou por muito tempo. Que provavelmente, em algum momento, já não nos servirão.

 

ceu_1_flatten

 

***

 

É desse jeito que confio em quase tudo que leio do meu Guru. Com os anos, essas leituras foram matéria-prima para construir um arcabouço de compreensão do mundo. Uma estrutura inteira que se apoia, em grande parte, no que veio dele. Aprendi também (me frustrando bastante) que não são 100% verdades. São as tais marcas de que falou o Campbell, e que me ajudam na minha aventura/jornada pessoal. Gosto da maioria das coisas que conheci do espiritismo porque se relacionam com facilidade com meu arcabouço (1).

 

E foi assim que descobri que a homossexualidade não é doença. Compreendi que faz parte da natureza profunda do ser mergulhar em aspectos ora femininos, ora masculinos. Ao longo de muitas vidas. Nascendo (ao longo delas) como homem, mulher; como homem mais feminino, como homem mais masculino etc.

 

(1) Meu pequeno contato com o espiritismo é feito de duas ou três idas a um centro espírita, da leitura de dois livros do André Luiz (entre eles, Nosso Lar) e desse vídeo querido do Chico Xavier.

Veja outros textos e ilustrações de Tiago Kaphan.

, , , , , ,