Geni é uma revista virtual independente sobre gênero, sexualidade e temas afins. Ela é pensada e editada por um coletivo de jornalistas, acadêmicxs, pesquisadorxs, artistas e militantes. Geni nasce do compromisso com valores libertários e com a luta pela igualdade e pela diferença. ISSN 2358-2618

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Laroyê Pombagira

Aí vem mulher! Apresentando a Pombagira. Por Alciana Paulino

Personagem das mais importantes da devoção brasileira, eis a Pombagira, a grandiosa dama da noite, rainha das ruas, dos cemitérios e das encruzilhadas. Para algumas pessoas é o aspecto feminino do orixá Exu; para outrxs, uma entidade que viveu na terra e hoje retorna para ensinar, aprender e gozar de alguns prazeres. Mete medo em muita gente e tem sido alvo nos ataques às religiões afro-brasileiras. Vamos passear neste mistério e conhecer um pouco dessa polêmica figura feminina.

 

pomba

Laroyê 

Eu caminhava pela alta madrugada
Sob clarão da lua,
Quando ouvi uma gargalhada
Linda morena formosa
Me diga quem você é
Tu é a dona da rosa?
És Pombagira de fé?

Pode abrir qualquer gira
Pode chegar quem quiser:
És Pombagira de umbanda!
Só não conhece quem não quer!

Linda moça, me diga o seu nome!
Por favor, me diga quem você é!
Você é uma rosa encantada?
Só não conhece quem não quer!

(Ponto de Pombagira – autorx não encontradx)

 

Pombagira/Pombogira/Pomba gira/Pomba-gira

 

Têm presença garantida nas casas de umbanda, algumas de candomblé, e em outras religiões afro-brasileiras. Despudoradas, ousadas e sedutoras. São conselheiras valorosas e chamam a atenção por sua exuberância e seu deboche. Você pode encontrar diferentes grafias para a palavra, diferentes também são os discursos sobre elas. O que não muda é que a Pombagira representa a sexualidade em seu aspecto feminino, em complemento a Exu – que representa o masculino.

 

No tempo em que ela tinha dinheiro
Os homens queriam lhe amar,
Mas hoje o dinheiro acabou, a velhice chegou e ela se põe a chorar (…)*

 

As Pombagiras são entidades que já viveram na terra e que voltam para fazer contato para ensinar, aprender, dançar, beber e fumar (ai, que delícia!). São muito procuradas para resolução de conflitos amorosos, para a manutenção de relacionamentos afetivos e de questões relacionadas ao dinheiro e ao poder aquisitivo. Sua gargalhada é feroz e bota medo em qualquer marmanjo!

 

(…) Ela é Pombagira, a Rainha da Encruzilhada,
Que enfrenta seus inimigos
Com uma forte gargalhada (…)*

 

Sua força é grandiosa. A ela, pede-se proteção, tanto para vencer as demandas quanto para proteger as casas e os terreiros. Seu culto, junto com o de Exu, criou uma ramificação da umbanda, a quimbanda, que trabalha quase exclusivamente a esquerda.

 

Mas que esquerda é essa?

 

Há a divisão em dois polos opostos e complementares. Na direita, encontra-se a luz; na esquerda, o escuro. A direita é o polo positivo; a esquerda, o negativo. Mas não vamos simplificar essa relação, acreditando que a esquerda é o mau absoluto. Lembro a explicação de uma mãe de santo sobre a esquerda: ela retoma os diferentes caminhos para o aprendizado. Uma Pombagira pode ser muito boa, mas pode também ser muito má. Quanto a questões morais, ela lava as mãos: a responsabilidade é de quem faz o pedido, ou seja, x consulente. Mas ela sempre pede algo em troca. Vive no universo onde tudo tem seu preço, e beijo!

 

Arreda homem que aí vem mulher!

Arreda homem que aí vem mulher!
Arreda homem que aí vem mulher!
Ela é a Pombagira, a rainha do cabaré (…)*

 

O que mais me encanta nas Pombagiras é a ideia de feminino que carregam. Em vida terrena, sofreram as agruras de ser mulher em uma sociedade patriarcal, machista, sexista, misógina e conservadora.

 

Existem diversas Pombagiras: Maria Padilha, Maria Mulambo, Maria Quitéria, Cigana, das Almas, Sete Saias, Sete Maridos, Rainha, Rosa dos Ventos, Calunga, Das Águas, Dama da Noite, Mocinha, Do Cruzeiro etc. E todas elas têm uma história de vida em que esbarram com o amor e com alguma opressão – em geral, de um homem específico, quando não de um mundo dominado por eles.

 

São mulheres que foram traídas, violentadas, oprimidas pela família, perderam filhxs, maridos e, por isso, renegadas e impelidas às ruas. Como possibilidade de sobrevivência ou de libertação, uma opção se abre: a prostituição. A maior parte das Pombagiras prostituiu-se durante a vida – algumas no baixo meretrício, outras como luxuosas cortesãs. Mas a todas foi necessário aprender a usar poderosas armas: a sedução, o sexo e o desejo.

 

O sexo, nesse contexto, seria a sobrevivência. Não apenas material, mas também na busca de prazer e liberdade.

 

Já conseguimos destacar (ou destacaram) as Pombagiras de toda a sociedade. Agora, imagine na época de seus tataravós, uma mulher que bebia, fumava, falava palavrão e que encontrava na rua o seu lugar e, na noite, seu tempo.

 

Seu lugar não é o lar, o espaço privado. As Pombagiras estão, assim como muitas pessoas que se prostituem, na rua, o lugar do risco, das manifestações populares. Elas são as mulheres que estão no espaço público por excelência, lugar em geral concedido aos homens, onde eles reinam (hahahahahahahahahaha!).

 

Distinguem-se do papel social imposto às mulheres: o de boa mãe, boa esposa e boa filha. Suas roupas pretas e vermelhas não são recatadas; elas adoram acessórios e perfumes extravagantes. E o mais exuberante: lutam pelo poder e não temem afrontas.

 

Arreda homem, que aí vem mulher!

 

Esse seu potencial subversivo tem custado caro. Muitas vezes, elas são vistas como demônixs, graças a uma moral judaico-cristã que rege nossa sociedade.

 

Diaba!

 

Graças ao sincretismo religioso, as entidades da esquerda (Pombagira e Exu) muitas vezes são relacionadas aos demônios do universo católico. Se a referência for o kardecismo, são associadas aos espíritos de baixo padrão vibratório, isto é, dentro de uma lógica evolucionista, são espíritos pouco ou não evoluídos.

 

Ao olhar de muitas religiões evangélicas, são vistas como a própria existência do mal; para muitas das igrejas neopentecostais, são a expressão do tinhoso na vida das pessoas, podendo influenciar alguém a cometer atos perversos.

 

Na cruzada contra as religiões afro-brasileiras, os principais alvos são as Pombagiras e os Exus. Não é incomum assistirmos na televisão a pastores fazendo uma espécie de exorcismo, ou a uma “ex-mãe de santo” explicando como algumas oferendas às entidades de esquerda são invocações ao demônio para necessariamente prejudicar alguém.

 

Há muito preconceito contra as entidades da esquerda. Mas existem também diversas religiões nas quais elas são acolhidas, cultuadas e admiradas. Arrasou!

 

Genizando

 

Tem uma coisa que eu não disse até agora. Como essa entidade consegue se comunicar conosco? Essa é fácil! Ela incorpora em umx médium. Algumas pessoas têm o poder de vê-las e de se comunicar diretamente com elas.

 

Existe uma discussão muito interessante sobre homens cisgênero que têm uma Pombagira forte. Há um senso comum (para não dizer clichê) de que esses homens são homossexuais. Quem sou eu para dizer que sim ou que não? O que digo é que alguns homens médiuns que incorporam a Pombagira já são tidos como gays. Esse é um debate caloroso. Vai ficar para a próxima!

 

Algumas travestis se identificam com as Pombagiras. Por que será? Fica a pergunta seguinte: existe uma Pombagira que tenha sido travesti durante a vida? Alguém conhece uma história assim? Se conhecer, conte pra gente! Se essa pergunta for um possível absurdo, nos diga o porquê.

 

Bote a rosa na janela

Se quiser lhe conhecer
Bote a rosa na janela
Ela é Rosa dos Ventos
Morena cor de canela*

 

Quem já se dispôs a conversar com uma Pombagira sabe que, o que vem, vem na lata! Não há mi-mi-mi. Elas são conselheiras valorosas e ajudam muitas mulheres a buscarem sua liberdade e, principalmente, sua autoconfiança. Veem na vaidade uma forma importante de se chegar à autoestima.

 

Algo muito interessante aconteceu quando me dispus a escrever este texto. Não sou uma especialista em religião e não professo nenhuma fé. Tenho muito respeito e carinho pelas religiões afro-brasileiras e, quando soube que um número da Geni teria algumas discussões sobre religião, achei que, por postura política, tínhamos que ter um texto que tratasse deste universo. Logo pensei: POMBAGIRA! Sexualidade, gênero e religião. Nó melhor não há. Vamos apresentá-la!

 

Ao procurar os pontos (músicas rituais para invocação e despedida das entidades e orixás), encontrei esse que falava da rosa na janela. E, desde que vim morar nesta casa, ganhei uma rosa vermelha de seda que fica em minha janela, linda. É o mais feminino que existe no ambiente. E, desde que essa rosa está ali, tenho tido um sonho. Agora, olhe a surpresa: fuçando na internet, achei a narração da história de uma Pombagira que, por coincidência (?), era a mesma do meu sonho!

 

Se você é umx especialista, deve ter sentido falta de uma série de informações, principalmente as que tratam de Exu. Pra você, eu digo: foi de propósito, agora falaremos só da mulher! Se você não é umx especialista e ficou com vontade de saber mais e mais, ao fim seguem algumas indicações de textos. Mas, se quiser conhecer de verdade, vá a um terreiro, a uma gira de Pombagira. Fale com ela. Melhor apresentação não há.

 

Galo cantou é hora, é hora
E a Pomba Gira se despede e vai embora (…)*

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Textos sucesso:

Belíssima tese de Mariana Leal de Barros: Labareda, teu nome é mulher: análise etnopsicológica do feminino à luz de pombagiras.

Artigo muito interessante de Nilza Barros: “Pombagira: a outridade da mulher”.

Livro do incrível professor Vagner Gonçalves da Silva “Candomblé e Umbanda: caminhos da devoção Brasileira” publicado pelo Selo Negro

 

Um abraço especial a cada uma destas três pessoas.

Leia outros textos de Alciana Paulino e da seção Perfil.

Ilustração: Bruno O.

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