Geni é uma revista virtual independente sobre gênero, sexualidade e temas afins. Ela é pensada e editada por um coletivo de jornalistas, acadêmicxs, pesquisadorxs, artistas e militantes. Geni nasce do compromisso com valores libertários e com a luta pela igualdade e pela diferença. ISSN 2358-2618

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No meio do caminho tinha um fiu-fiu

Mulheres da Geni decidiram entrar no debate gerado pela campanha Chega de Fiu-fiu, do site ThinkOlga. Por Aline Gatto Boueri, Carolina Menegatti e Clara Lobo

Toda mulher já passou pela experiência de ser abordada na rua por um homem estranho. Desde um simpático “bom dia” até um desrespeitoso “me chupa”, é comum termos de lidar com essa “visibilidade” apenas por sermos mulheres. Um amigo uma vez disse: “Um homem, na rua, pode ser invisível. Uma mulher, nunca”. Segundo ele, isso se daria por uma função inata do cérebro masculino de identificar e catalogar mulheres enquanto caminha por locais públicos. “Noto todas as mulheres que passam ao meu lado”, ele falou, “e, se alguma for atraente, aciona um alarme.” Pois bem. Alarme acionado, o homem pode optar por agir ou não. E, se agir, estará optando por uma interação que não será necessariamente bem-vinda, ainda que, sob seu ponto de vista, pareça educada.

 

Não existe uma fórmula para a cantada. Nem todos os casos são iguais, e pode ser que em algum a liberação da tensão sexual naquele breve momento de encontro seja divertida. Mas a regra geral da abordagem de rua é que ela é impessoal. Será possível admirar uma mulher e ao mesmo tempo ignorar seu direito de caminhar pela cidade sem ser interpelada pelo desejo alheio? Pode uma aproximação impessoal gerar algum tipo de estímulo ou uma interação sexual consentida?

 

Às vezes, sim. Mês passado, uma de nós estava parada do lado de fora de uma lanchonete e ouviu um “você é linda” de um desconhecido que, em poucas horas, transformou-se numa conversa sobre ter perdido os pais, sobre gênero, sobre relações familiares, amorosas e de amizade. Elogiar também é explicitar o que te atrai na pessoa, e, antes que vocês se conheçam, a atração estará necessariamente ligada à aparência. O importante é que a intenção não seja apenas um “estou dando a minha digníssima opinião sobre a sua aparência”, como se a mulher precisasse da opinião de um estranho para validar a sua própria.

 

É só um fiu-fiu inocente?

 

Um homem diz que percebe todas as mulheres ao seu redor e, para aquela que lhe parece mais atraente, soa um alarme. Ora, contamos uma novidade pra ele: mulheres também percebem as pessoas que passam pelo seu caminho, e também destinam uma atenção maior a quem lhes interessa. E se ainda acrescentarmos que, em alguns momentos (se não em muitos), ligamos diretamente esse interesse a uma bela putaria?

 

Sim, acontece. Mulheres pensam “esse eu comia”. E, se você descobriu isso só agora, deve estar se perguntando: se há desejo de ambas as partes, por que existe uma campanha apenas de mulheres que se incomodam com “cantadas”?

 

chega fiu fiu cecila silveira revista geni2

 

Respondemos: porque a cantada é um privilégio masculino. Poucas mulheres se sentem à vontade para elogiar um homem em um espaço público. E, em hipótese alguma, uma mulher irá elogiar um homem numa rua vazia à noite. É tão óbvio que não precisamos explicar o porquê.

 

Quando um homem faz um elogio a uma mulher em um contexto em que uma mulher nunca faria o mesmo, ele SABE que a está intimidando. E, se faz um elogio quando a mulher está obviamente ocupada ou apressada, ele sabe que a está perturbando. Ele está colocando a sua opinião sobre a mulher à frente das necessidades, da vontade e do bem-estar dela.

 

Chegamos, então, a uma diferenciação importante: se um homem nos faz um elogio como modo de aproximação, como assunto para iniciar uma conversa, dentro de um contexto em que estejamos confortáveis, ele estará buscando uma interação legítima, que pode ser retribuída ou não (e se não for, paciência! Nenhuma mulher é obrigada a querer te conhecer). Mas um fiu-fiu nunca será um modo de aproximação, não é mesmo? Nem um “Oi, gata” quando estivermos andando na rua, ocupadas com as nossas vidas.

 

Portanto, perguntamos: pode haver inocência na intimidação e no constrangimento? Pode haver empatia quando a aproximação se dá a partir de um privilégio? É possível separar uma “cantada educada” de uma grosseria, quando ambas nascem da mesma violência patriarcal que nos diz que não devemos usar saias curtas, blusas decotadas ou andar nas ruas à noite sob o risco de darmos motivos para que nos violentem?

 

“Ô, lá em casa”, “gatinha linda” e “chupa meu pau” não são exatamente a mesma coisa, mas nascem da mesma ideia patriarcal de que existe um direito do homem sobre o corpo da mulher, que permite que ele diga para ela o que bem entender, no momento que achar mais conveniente e, se ele assim desejar, em público.

 

Esse direito autoconcedido, defendido como se não fosse o que realmente é – ou seja, um privilégio –, está no centro de todas as violências contra a mulher por motivo de gênero. Argumenta-se que a intimidade sem convite é algo “natural” em nossa cultura e que só deve ser coibida quando ultrapassar os limites. Mas quem estabelece esses limites? Dificilmente é uma mulher que se sente incomodada. Mais provavelmente, eles são estipulados por nossas próprias instituições patriarcais e, novamente, pelo desejo dos homens.

 

O grande problema da cantada não é ela ser um elogio ou uma ofensa, ser bem ou mal-intencionada. O problema é que, numa sociedade estruturada pelo privilégio dos homens sobre as mulheres, a cantada é muito facilmente feita (e recebida) como intimidação.

 

Se isso fez o seu alarme soar, conta pra gente. E, para conhecer a campanha Chega de Fiu-fiu, do ThinkOlga, clique aqui.

 

 

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Ilustração: Cecilia Silveira.

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