Geni é uma revista virtual independente sobre gênero, sexualidade e temas afins. Ela é pensada e editada por um coletivo de jornalistas, acadêmicxs, pesquisadorxs, artistas e militantes. Geni nasce do compromisso com valores libertários e com a luta pela igualdade e pela diferença. ISSN 2358-2618

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Um lugar desaparecido

Chiquichiqui. Por Andrea Villalobos e Samantha Rodríguez, da Colômbia

 

Publicado em 28/10/2015



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Chiquichiqui: conhecimento de nosso entorno e herança da nossa tradição, recuperando a memória de um lugar desaparecido

 

Para as comunidades étnicas que habitaram o sul de La Guajira desde tempos ancestrais, inclusive a comunidade de Tabaco, o território é de grande importância porque é nele onde se geram as conexões e interações entre homem, natureza e recursos. É justamente nele que são compartilhadas e divididas as diversas linguagens advindas da experiência, da cosmologia, do natural, do espiritual e do humano – parte fundamental de sua consolidação como comunidade étnica. Dessa forma, sem o território “não haveria cultura, diferença, nem vida” (Oslender, 2011). Perder o território significa, então, perder a autonomia, perder a relação ancestral entre “o mundo dos vivos e o mundo dos espíritos”, que é justamente onde a vida recupera o sentido, e as relações natureza-humano-espíritos têm lugar.

 

Durante os últimos 20 anos, o território guajiro sofreu transformações drásticas a partir da chegada da megamineração que produziu, de maneira gradual e ascendente, grandes processos de desterritorialização e desaparecimento das características socioculturais e ambientais da região, assim como a extinção do livre acesso aos alimentos ancestrais e característicos da região.

 

Com a chegada da mineração de carvão, as comunidades perderam seus territórios com o uso de despejos forçados, ameaças e mentiras. O território onde ancestralmente desenvolviam sua cultura foi perdido. Agora, onde estava seu povo há apenas uma gruta profunda e escura. As comunidades que ainda mantêm alguma terra tentam recuperá-la e revivê-la, já que está maltratada, seca e infértil.

 

Essa realidade vivida hoje pelas comunidades do sul de La Guajira as impossibilitou de desenvolver livremente seu direito à soberania alimentar, um direito que já não exercem há muito tempo. O milho e o feijão, que eram o alimento base de sua gastronomia ancestral foram desaparecendo, o povo então foi perdendo os usos e costumes que giravam em torno dessas sementes. Os importantes processos de troca que aconteciam entre famílias e comunidades vizinhas da zona agora já não são tão comuns, evidentemente por causa dos despejos forçados e pelo fato de muitos já não contarem com a semente nem com a terra para semear.

 

Sabemos que o alimento não é exterior à sociedade e muito menos à cultura; sabemos também que é uma manifestação cultural viva que tradicionalmente vai sendo transmitida de geração em geração. O lugar onde se cozinha, os usos, os costumes, os utensílios, os artefatos e o cotidiano de sua tarefa em comunidade são elementos que refletem e transmitem a história viva de um povo, assim como os alimentos agrícolas são expressões da cultura popular, respondendo às diferentes tradições produtivas próprias da idiossincrasia de uma região, ficando assim em posição de igualdade e respeito a outras manifestações culturais. Um patrimônio cultural carregado de construção sociocultural, valor coletivo, identidade e memória.

 

Como muitas das comunidades da Colômbia, as/os camponeses afrodescendentes de La Guajira têm uma memória coletiva em torno da importância da semente de milho e hoje tentam resistir para mantê-la presente em sua cultura. Isso se evidencia no processo detalhado e artesanal que a comunidade imprime nela, desde sua conservação, semeadura e colheita até o momento de receber a semente na mesa, depois de uma mágica preparação por amorosas mãos matriarcais. Um processo que tenta se manter vivo na tradição do povo guajiro.

 

 

O milho roxo ou cariaco, “uma espécie ameaçada”

 

Esse tipo de milho é uma semente ancestral da costa do Caribe que encontra nesse território um clima amável para sua semeadura; além disso, ela deve amadurecer antes do inverno e, por isso, precisa receber bastante calor. O que leva à dedução de que é uma semente de países quentes, com temperatura relativamente elevada durante toda sua germinação, e a região de La Guajira é um lugar que conta com as condições corretas para que essa semente ancestral possa ser cultivada.

 

Hoje, essa semente enfrenta uma grande ameaça, não só pelo desarraigamento enfrentado pelas comunidades por conta da mineração, como aconteceu com a comunidade de Tabaco, como também pela introdução massiva de sementes e alimentos transgênicos na cultura camponesa; em especial na região do Caribe, que é uma das regiões de maior biodiversidade de sementes nativas de milho do mundo, e onde, além disso, a semente tem um significado cultural importante.

 

Esta situação está gerando impactos nocivos ao ambiente, à biodiversidade, à saúde humana, à soberania alimentar e produz impactos socioeconômicos, especialmente na economia camponesa. Como manifesta a Campaña Semillas de Identidad**: “A liberação de sementes transgênicas é muito lesiva para um país mega-diverso como a Colômbia: centro de origem e de diversidade de variedades essenciais para manter a agricultura e a alimentação do mundo.” A situação chegou a tal ponto que punições de cadeia são aplicadas e multa pelo uso não autorizado de sementes registradas ou patenteadas a comunidades indígenas, negras e camponesas, as quais são as conhecedoras ancestrais e tradicionais do manejo e da conservação da diversidade biológica e cultural. Essas imposições lhes deixam, como única opção legal, o uso de sementes registradas e não de sementes nativas que sempre foram parte fundamental de sua cultura.

 

Isso implica em um grave dano à soberania alimentar e à perda dos conhecimentos tradicionais a respeito do uso ancestral, manejo e intercâmbio de sementes nativas, da diversificação da produção, do fortalecimento dos mercados locais, da visibilização do papel da mulher na cultura, na produção local e na economia familiar***.

 

 

O despejo

 

O dia 9 de agosto de 2001 é uma data triste de lembrar, pois a comunidade de Tabaco foi despejada à força por parte do poder público, que atuava em favor da empresa de mineração, com o objetivo de dar início à exploração da mina de carvão do projeto Cerrejón. Naquele dia, os habitantes da comunidade se viram impotentes diante de uma máquina niveladora que destruía suas casas de taipa, e do desaparecimento do povoado em meio à poeira. Assim se desvanecia a herança dos mais velhos diante de seus olhos.

 

Tabaco era o único corregimento do município de Hatonuevo, em La Guajira. Possuía uma escola, um posto de saúde, um serviço de comunicações, redes de aqueduto, energia elétrica, um parque, uma igreja e um cemitério. Era um povoado muito bonito, havia comida, as pessoas quase não ficavam doentes porque não existia nenhuma poluição e um riacho de água pura alimentava toda a comunidade.

 

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¡Resistência cultural!

 

A Junta Social Pro Reubicación de Tabaco é a organização sem fins lucrativos que convoca e organiza as famílias de Tabaco. Desde 17 de dezembro de 1998, trabalha com o fim de promover uma reocupação integral da comunidade de Tabaco, corregimento étnico pertencente ao município de Hatonuevo, que antes do despejo estava localizado na Serrania del Perijá, departamento de La Guajira, Colômbia. Hoje em dia, a Junta Social Pro Reubicación de Tabaco trabalha na promoção da autonomia territorial com um enfoque étnico e de gênero, no fortalecimento organizativo e comunitário, no trabalho coletivo, na reconstrução do tecido social e na recuperação do meio ambiente e da cultura ancestral das comunidades étnicas de La Guajira afetadas pela megamineração.

 

Por outro lado, mas também em apoio ao processo de luta e resistência, as “Cocineras de sueños ancestrales” são um grupo de mulheres com que viemos trabalhando desde 2014 através da maravilhosa conexão da memória e da cultura representada na cozinha tradicional. Dessa forma, escolheu-se o “Chiquichiqui” como a receita pioneira do processo e representação da herança e do valor cultural que transmitem as mulheres, em uma preparação que se faz com base no milho roxo ou cariaco, a semente da comunidade. Além de ser de grande importância para eles, também é um elemento através do qual as famílias vem tentando resgatar e preservar o que lhes resta como povo, para não serem submetidas ao esquecimento. O Chiquichiqui é uma representação da identidade das comunidades, de suas tradições em torno do uso e do cuidado da semente do milho cariaco, semente de vida, fonte de sustento, alimentação e cultura.

 

E com o desejo não só de preparar a receita para a comunidade, mas também torná-la visível para o mundo, com tudo o que significava sua conservação, foi realizado um documentário dentro da lógica do cinema comunitário. Ou seja, usamos o audiovisual para contar a história de um povo que, apesar de ter perdido seu território, sonha e resiste ao desaparecimento pela voz de suas mulheres que ensinam e transmitem seus costumes autóctones com o sabor de uma comida típica. “Chiquichiqui: Cocineras de sueños ancestrales” é um documentário criado e produzido com a comunidade, fazendo dela participante não só para realizar uma denúncia contada em um poema gastronômico, mas como uma possibilidade de aprender novas técnicas de comunicação e de realçar suas habilidades, em especial a de suas mulheres que sempre fizeram estes processos com todo amor, mas que na maioria das vezes são subestimadas e não têm permissão para visibilizar cada um de seus esforços para manter uma cultura viva.

 

Essa realidade da comunidade de Tabaco também é vivida em outras comunidades com Chancleta, Patilla e Tamaquitos II, que ainda estão resistindo no seu território apesar das fortes pressões. Por isso, através dessa receita fazemos um convite à solidariedade e ao apoio às famílias que ainda resistem para tentar manter seu território e garantir condições de vida dignas.

 

É também um convite para refletir coletivamente sobre que tipo de extração queremos em nosso território, para quê são necessários os minerais extraídos ou a energia gerada e como gerar projetos que não imponham uma ruptura dos tecidos sociais e cargas ambientais injustas sobre as comunidades e a natureza. Estamos vivendo uma realidade onde se confrontam duas visões de como se entende e de como se quer viver no território: de um lado, estão as comunidades que veem suas terras como fonte de abrigo, de suporte de vida e de tecido social; de outro, estão aqueles que concebem o território como um meio de produção e de acumulação de riquezas.

 

 

 

**Campaña Semillas de Identidad. En defensa de la Biodiversidad y la Soberanía Alimentaria, Fundação Swissaid, El Grupo Semillas e la Red Agroecológica del Caribe (Recar). La Campaña Semillas de Identidad reivindica os direitos coletivos das comunidades indígenas, negras e camponesas sobre seus territórios e recursos. Seu objetivo é resguardar a soberania alimentaria, valorar e visibilizar as propostas agroecológicas de produção, preservar a diversidade biológica, cultural e produtiva, frente à privatização e patenteamento da vida e dos recursos naturais na Colômbia e na América Latina.

 

***Documento Campaña Semillas de Identidad. Colômbia. 2006

 

 

Andrea Villalobos e Samantha Rodríguez fazem parte do Coletivo Cocineras de Sueños Ancestrales.

Ilustração: Bruno O.

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