Geni é uma revista virtual independente sobre gênero, sexualidade e temas afins. Ela é pensada e editada por um coletivo de jornalistas, acadêmicxs, pesquisadorxs, artistas e militantes. Geni nasce do compromisso com valores libertários e com a luta pela igualdade e pela diferença. ISSN 2358-2618

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Uma carta de Altamira

É às custas do aniquilamento das mulheres negras, indígenas, quilombolas e ribeirinhas da Amazônia que o Brasil caminha para se consolidar como potência energética. Por Paloma Franca Amorim

Publicado em 28/10/2015

 

 

 

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Américo Vespúcio, o Descobridor, vem do mar. De pé, vestido, encouraçado, cruzado, trazendo as armas européias do sentido e tendo por detrás dele os navios que trarão para o Ocidente os tesouros de um paraíso. Diante dele a América Índia, mulher estendida, nua, presença não nomeada da diferença, corpo que desperta num espaço de vegetações e animais exóticos. Cena inaugural. Após um momento de espanto neste limiar marcado por uma colunata de árvores, o conquistador irá escrever o corpo do outro e nele traçar a sua própria história. Fará dele o corpo historiado – o brasão – de seus trabalhos e de seus fantasmas. Isto será a América “Latina”.

Michel de Certeau

 

No prefácio da segunda edição do livro A escrita da história, o francês Michel de Certeau compõe uma analogia entre a “descoberta” da América e a apropriação e territorialização do corpo de uma mulher: ambas comportariam a significação de espaço colonial/colonizado que, inevitavelmente, sofre uma compulsória desqualificação política assim como o apagamento do próprio percurso histórico. Sua destruição física e simbólica se inicia a partir da demarcação e legitimação da existência e da visão de mundo do colonizador independentemente do que foi vivido até então pelo povo/gênero colonizado.

 

As realizações sociais, políticas e culturais do povo/gênero dominado não importam para esse novo quadro de escrita da história. Materialmente, isso é uma das bases que gerenciam o racismo, a cultura patriarcal, a exploração sistemática e institucionalizada de recursos naturais que, primordialmente, garantiriam a sobrevivência de comunidades e povos originários. Sob esses termos, a neutralização da história dos oprimidos é um recurso acionado pelo opressor (a “metrópole descobridora” representada por Américo Vespúcio, homem este que possuirá a “índia América”) para que a memória social seja estruturada sobre as premissas políticas e culturais do dominador. Para assassinar o poder mítico do ato de recordar, silencia-se a voz de quem ou daquilo que carrega em si a recordação. A cultura dessas populações dominadas começa a ficar doente e, de repente, num dia qualquer, ela aparece estendendo a mão em alguma publicação acadêmica, completamente “sorridente, feia e morta”.

 

 

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O projeto da barragem

 

Na região Amazônica esse contrato de silenciamento é renovado a cada século. Tanto no amplo sentido das relações entre grandes empresas, governo e exploração, quanto nos contextos de recorte mais específico que dizem respeito à relação de gênero e raça nos ambientes privados da família, do trabalho e do comportamento cotidiano.

 

Inaê Nascimento, em conversa concedida à revista Geni #23 sobre gênero e movimentos sociais periféricos, comenta de modo simbólico como se percebe o contexto amazônico à luz da dimensão sócio-política de gênero, raça e classe, quando comparada com outras regiões mais privilegiadas do território nacional:

 

Quando eu olho pra Amazônia eu entendo que ela é a mulher negra, índia, pobre no Brasil, assim como sul-sudeste seria o homem branco de classe média pra cima. Não estou ignorando a existência de mulheres negras, índias e pobres das outras regiões do Brasil. É uma analogia. Quando a gente compara grupos sociais distintos onde um dos grupos tem mais privilégios que outro, onde um dos grupos é marginalizado, onde as necessidades entre esses grupos são distintas por conta dessa desigualdade de privilégios, com certeza a Amazônia está para o Sudeste, por exemplo, como a mulher está para o homem, a mulher negra está para a branca, a trans está para cis, a pobre está para rica, e assim por diante.

 

O olhar de Inaê parece ser pertinente à discussão de gênero, ativismo feminista e ecoambientalismo travado na contemporaneidade. Sua ponderação, de imediato, nos remete ao fato de grande parcela da energia limpa produzida pelas usinas hidrelétricas construídas na região ser voltada para o desenvolvimento do Sul e Sudeste brasileiros. Enquanto isso, as áreas que integram diretamente a geografia abalada pelos projetos de barragem permanecem paradas no tempo, precarizadas pela ausência de recursos técnicos e planejamento básicos de habitação urbana e rural.

 

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Várias comunidades de Volta Grande do Xingu não serão contempladas pelo plano compensatório do governo e das empresas envolvidas na construção de Belo Monte, pelo fato de não serem diretamente afetadas pela barragem. Esse é um parecer técnico muito distante da realidade local já completamente atingida pelos efeitos do projeto, agora em vias de finalização.

 

Os moradores dessa região apontam contradições de caráter estrutural no projeto da barragem. O impacto ambiental para as comunidades do beiradão do rio Xingu é grave e irreversível. Na Ilha da Fazenda e na Vila da Ressaca, por exemplo, a escassez de peixes já se apresenta como um problema para a manutenção da fonte de renda e subsistência de várias famílias que também aguardam a concretização do iminente isolamento, uma vez que a secagem do rio impossibilita o deslocamento para outras ilhas e o contato comercial e político com as demais áreas afetadas pela barragem. Como bem sabemos todos os paraenses: em rio que não há, barca nenhuma faz travessia.

 

O inchaço populacional de Altamira, cidade que recebeu os trabalhadores da construtora Norte Energia S.A, também revela falhas graves no planejamento de Belo Monte. Ali, a céu aberto, pode-se testemunhar o desenvolto crescimento do mercado de tráfico de drogas, prostituição, prostituição infantil e trabalho escravo – problemas esses já detectados em outras regiões brasileiras onde também houve a construção de barragens hidrelétricas.

 

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Vence quem fala mais alto

 

A situação de Belo Monte, no Xingu, propicia o aparecimento dessas zonas de opressão social guiadas pela pobreza, em Altamira vence quem fala mais alto e em uma perspectiva de relações de gênero, identidade e comportamento sexual, o berro mais violento é sempre do patriarca, Estado, poder, capitalismo desenvolvimentista.

 

Em seu blog Cartas daqui, a jornalista paraense Larissa Saud relata através de cartas de próprio punho as condições de vida que encontrou em viagem para a região de Altamira. Em um dos textos, Larissa nos conta:

 

Quase sempre quando eles estão por aqui evito sair. Volto pra casa cedo e não consigo dormir com o som dos carros. É horrível para qualquer mulher andar na rua. Parece que os caras nunca viram mulher na vida. Outro dia um foi mexer comigo e eu já “por aqui” fui inventar de responder como faço aí em Belém. Mandei alguns palavrões.

 

Pra quê?!

 

O cara, que passava com a moto bem devagar ao meu lado, acelerou um pouco e parou um quarteirão à frente, bem na esquina de casa. Tirou o capacete e ficou me encarando. Acho que esperava eu passar pra me chamar de “vadia, puta, caceteira, mal comida” ou qualquer coisa pior. Minha coragem desabou. Dei meia volta, retornei para orla e esperei até que ele fosse embora.

 

Sei que você me ensinou a não chamar palavrão, mas às vezes parece que só um palavrão bem articulado serve pra expressar os sentimentos. Eu diria o que? “Senhor, por gentileza, não me assedie!”? Sei também que isso pode acontecer em qualquer lugar, mas acho que por aqui a concentração de assédio por metro quadrado deve ser bem elevada, olha. Tira-se pelo índice de estupros, que disparou desde o início das obras.

 

Altamira segue abarrotada de demandas populacionais muito maiores do que sua estrutura urbana pode suportar. É importante salientar que esses processos atingem de forma mais intensa as mulheres, isso é, os processos de machismo e de imposição patriarcal se adensam em quadros demográficos e sociais como esse vivido pelos atingidos por barragens e pela transformação da energia limpa em mercadoria. A realidade é controversa: enquanto, de um lado do mapa, as regiões Sul e Sudeste dão um beijo apaixonado na boca do progresso, do outro lado, Norte e Nordeste padecem com tanta exploração, desrespeito e apagamento da própria História. Se o futuro é um pressuposto associado ao desenvolvimentismo que constitui o plano de construção das usinas hidrelétricas, o povo das cidades e as comunidades ribeirinhas, quilombolas e indígenas do Xingu não têm direito a futuro nenhum, nem ao presente, tampouco ao próprio passado.

 

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Romantismo e higienismo

 

A discussão sobre o assunto muitas vezes é conduzida à luz de um pretensioso universalismo da Amazônia. A adjetivação de pulmão do mundo (tão recorrente em anúncios de ONG’s pela defesa do meio ambiente) é hoje uma forma ofensiva de se referir à Amazônia. Isso porque o que se denuncia nos meios de comunicação muito pouco tem a ver com realidade vivenciada na região Norte do país por essas comunidades. Muitas vezes essa mistificação da Amazônia apenas serve para refinar a venda ideológica do controverso sistema nomeado economia verde; essa ordem de discurso pouco defende os interesses das comunidades implicadas de fato pela exploração dos recursos naturais locais.

 

O Movimento Gota d’Água, lançado em 2013, por exemplo, teve uma campanha encabeçada por artistas da rede Globo que se dispuseram à tentativa de dialogar com o governo para solicitar que fosse revisto o planejamento da usina hidrelétrica de Belo Monte, e mesmo assim não passou de uma transitória lufada de romantismo ecoambiental. Apesar das boas intenções do núcleo organizador do grupo (integrado inclusive por nomes importantes no cenário das lutas sociais, como Eduardo Viveiros de Castro, antropólogo indigenista), a forma como a discussão foi apresentada nos canais midiáticos lançou uma penumbra higienizante sobre o tema. A objetificação da Amazônia quase não é percebida no ardor de discursos a favor dos rios e das matas.

 

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No vídeo de apresentação, artistas globais comentam sobre sua ascendência étnica e racial de modo a pedir, em certa medida, licença para falar em nome das populações negras, caboclas e indígenas do Norte do país. A adequação à práxis política é forçada e não vinga. Não surpreendentemente, o movimento sucumbiu diante das primeiras negativas à pauta, ao contrário de Antonia Melo e tantas outras ativistas integrantes dos movimentos em defesa do Xingu.

 

Antonia, no último setembro, teve sua casa demolida por conta do projeto de Belo Monte. Antonia é uma liderança importante e incansável articuladora e nunca deixou de questionar sua posição na luta como mulher amazônida. Pouco se fala dela nos meios de comunicação. Antonia faz jus ao instintivo comportamento desbravador e matriarcal da Icamiaba, guerreira dos rios, mulher de peito partido.

 

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Talvez a resposta para Belo Monte não esteja no já conhecido olhar macroestrutural e muitas vezes fetichista sobre a Amazônia, mas sim na dedicação aos pormenores, ao que de fato ocorre nas cidades, ilhas e vilas que compõem nossa cartografia. Importante perceber que os impactos ambientais causado pelas usinas hidrelétricas ressoam de modo ainda mais trágico sobre a vida das mulheres que, como a terra conquistada de Certeau, percebem impressas sobre si mesmas a perspectiva do explorador e o peso sobre os ombros da densa pirâmide construída nos últimos anos de progresso nacional.

 

Qual o custo da energia limpa? Quantas vidas são arruinadas em virtude do progresso que a poucos alcança? Quantas mulheres serão abusadas simbólica e materialmente nessa estrutura patriarcal de exploração humana e da natureza?

 

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VÍDEO:

 

 

 

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Ilustração: Ana Mohallem

Fotos: Luana Peixe

Vídeo: Larissa Saud e Luana Peixe 

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