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Drama da favela, poeta da vida

Carolina Maria de Jesus catou papéis para sobreviver, reciclou a própria realidade e transformou os detritos da vida em adubo para a humanidade. Por Cícero Oliveira

 

 

 

“A vida é igual um livro. Só depois de ter lido é que sabemos o que encerra. E nós quando estamos no fim da vida é que sabemos como a nossa vida decorreu. A minha, até aqui, tem sido preta. Preta é a minha pele. Preto é o lugar onde eu moro”.

(Quarto de despejo, 1960)

 

 

 

Este texto, tecido com admiração e respeito, tentará retraçar alguns pontos do bordado de uma verdadeira obra de vida. Trata-se, antes, de uma homenagem a um admirável ser humano, a uma grande mestra da história da “humanidade brasileira” e a uma das escritoras mais importantes que li – a poeta, compositora, cantora, artista, mãe, mulher, negra Carolina Maria de Jesus.

Em comum, temos um lugar – o bairro do Canindé, em São Paulo, cenário de meu nascimento e infância, e cenário do livro que a tornou uma das autoras brasileiras mais conhecidas no Brasil (e no mundo) no final dos anos 1950.

Estranhamente, contudo, ainda hoje me deparo frequentemente com a pergunta: “quem é ela?”. Pois sim: ainda hoje, depois de ter publicado quatro livros – Quarto de despejo (1960), Casa de Alvenaria (1961), Provérbios e Pedaços da fome (1977) e Diário de Bitita (1986); depois de teses e monografias sobre sua obra em prestigiadas universidades do país e do exterior; depois de inúmeras matérias na imprensa nacional e estrangeira sobre o sucesso de seu primeiro livro; depois de ser homenageada pela Academia Paulista de Letras nos anos 1960; depois de ser traduzida para mais de 13 idiomas; depois de vender mais de um milhão de livros e de ainda ser uma das escritoras mais vendidas dentro e fora do Brasil; depois de ter seu diário transformado em filme, em peça; depois de ser homenageada pelo Museu Afro-Brasileiro, cuja biblioteca leva seu nome; depois de tantas façanhas (das quais lhes pouparei neste texto), ainda nos perguntamos: “Quem é Carolina Maria de Jesus?”.

 

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Ruth de Souza interpretou Carolina Maria de Jesus em 1961, 
em peça dirigida por Amir Haddad

 

 

Quem é Carolina de Jesus?

 

 

   “Negra é a nossa vida. Negro é tudo o que nos rodeia”.

(Quarto de despejo, 1960)

 

Nascida em 14 de março de 1914, na pequena cidade de Sacramento, no Triângulo Mineiro, Bitita – como era chamada pelos mais próximos – era descendente “de negros ‘retintos’”, pertencentes à segunda geração de famílias negras livres após a abolição. Naquela região, em que uma parte expressiva da população advinha do Quilombo do Ambrósio (localizado na cidade de Cristais, em Minas Gerais, e que fora atacado e extinto em 1746, tendo contado com mais de 15.000 habitantes), era possível ainda encontrar resquícios do sistema escravocrata e também da política coronelista comum no Brasil República, como a própria escritora nos relata em seu livro de memórias, publicado postumamente, Diário de Bitita:

 

 

“Se o filho do patrão espancasse o filho da cozinheira, ela não podia reclamar para não perder o emprego. Mas se a cozinheira tinha filha, pobre negrinha! O filho da patroa a usaria para seu noviciado sexual. Meninas que ainda estavam pensando nas bonecas, nas cirandas eram brutalizadas pelos filhos do senhor Pereira, Moreira, Oliveira, e outros porqueiras que vieram do além-mar. No fim de nove meses a negrinha era mãe de um mulato, ou pardo. E o povo ficava atribuindo paternidade: – Deve ser filho de fulano! Deve ser filho de sicrano! Mas a mãe, negra, insciente e sem cultura, não podia revelar que seu filho era filho do doutor X ou Y. Porque a mãe ia perder o emprego. Quantas mães solteiras se suicidavam, outras morriam tísicas de tanto chorar (…)”.

 

 

Filha de mãe solteira, a vida destinada às “pobres negrinhas” era em certa medida a vida de sua mãe, que possuía filhos “ilegítimos” (Carolina, inclusive), o que ocasionara sua expulsão da Igreja Católica ainda jovem. Por intermédio da caridade de uma rica senhora da região, a pequena Carolina fora mandada – ainda que a contragosto – à escola, uma instituição espírita onde aprendeu a ler e a escrever, hábitos que a acompanhariam até o fim de seus dias.
Ela permanece ali por apenas dois anos, pois sua família de “camponeses despossuídos” tivera que deixar sua terra natal em busca de sustento, em virtude da miséria absoluta que se alastrava pelo meio rural brasileiro no início do século XX.

Com a morte da mãe, Carolina perambula por diversas cidades do interior de Minas e São Paulo, chegando à capital paulista em 1937, junto com uma família para a qual trabalharia como empregada doméstica. Essa profissão ela rapidamente abandonaria, como ressalta Fernanda Rodrigues de Miranda em Os caminhos literários de Carolina Maria de Jesus:

 

 

“Inicialmente trabalhando como empregada doméstica, a autora não conseguiu adaptar-se às regras do trabalho doméstico semicolonial – dormir no serviço, não ter permissão de sair à noite, aguentar desaforos dos patrões – e logo abriu mão desta ocupação. De acordo com suas próprias palavras, ela era muito independente para passar a vida limpando as bagunças alheias (…)”.

 

 

Carolina era muito independente em todos os campos de sua vida.

Onze anos após sua chegada a São Paulo, grávida de seu primeiro filho (João Carlos) e desempregada, ela se vê compelida a ir morar numa favela que se formava às margens do rio Tietê, no bairro do Canindé. Este, aliás, era o destino (que muitos acreditavam ser provisório) de boa parte da população de migrantes que vinham para São Paulo apostando num futuro melhor – futuro que raramente chegava.

 

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Ali, naquele lugar – ao qual ela nunca se adaptou e que, anos mais tarde, chamaria de quarto de despejo – Carolina constrói um barraco para que ela e os outros filhos (João José e Vera Eunice, que nasceriam anos depois) pudessem morar. Para garantir o sustento da família, torna-se catadora de papéis e sucata, profissão que lhe permitia ter “tempo para seus afazeres domésticos como mãe e, sobretudo, como leitora e escritora” (conforme afirma Bom Meihy em Carolina Maria de Jesus: emblema do silêncio), hábitos que essa teimosa mulher de fibra insistia em cultivar.

“Quem não tem de ir para o céu, não adianta olhar para cima” escrevia ela em seu “livro” em 23 de maio de 1956. Mas em vez de mirar o firmamento, resolveu olhar ao seu redor, e o que viu, colocou em cadernos, em seu “estranho diário”.

Na favela, os quatro vivem uma vida marcada pelas dificuldades e pela fome – desditas que Carolina passa a registrar disciplinadamente em cadernos velhos e papéis que encontra pelas ruas da cidade. E seria assim, transformando a miséria da vida real em palavras, por meio de seus escritos encardidos, da cor da fome (que ela dizia ser “amarela), que Carolina veria sua vida ser completamente transformada, depois de uma matéria publicada na Folha da Noite pelo então jornalista iniciante, Audálio Dantas.

 

 

Fragmentos de uma vida

 

 

“Quando estou na cidade tenho a impressão que estou na sala de visita com seus lustres de cristais, seus tapetes de viludos, almofadas de sitim. E quando estou na favela tenho a impressão de que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo”.

(Quarto de despejo, 1960)

 

 

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Designado para fazer uma matéria sobre a favela do Canindé, Audálio Dantas lá se deparou com uma mulher altiva brigando com homens bêbados que estavam sentados nos brinquedos de um parque recém-inaugurado. Indignada, ela os ameaçava dizendo que colocaria seus nomes em seu “livro” e que, então, eles teriam o que mereciam.

Intrigado com a ameaça, o repórter lhe pergunta se poderia ver o tal “livro”. Desconfiada, Carolina o leva ao seu barraco e lhe mostra a série de cadernos e folhas empilhadas nas quais escrevia seu cotidiano, sua história de sofrimento, seus pensamentos sobre a vida, sobre o tempo, sobre a fome, sobre o Brasil. Naquele amontoado de palavras, estavam fragmentos de toda a sua vida e obra: poesias, romances, contos, além de um diário, iniciado em 1955.

Audálio lê tudo cuidadosamente, mas são os diários que chamam a sua atenção. Ele imediatamente percebe que “repórter nenhum, escritor nenhum poderia escrever melhor aquela história – a visão de dentro da favela”. Selecionando algumas entradas dos cadernos, faz uma curta introdução e publica, em 9 de maio de 1958 na Folha da Noite, uma reportagem com o título de “O drama da favela escrito por uma favelada”.

 

 

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 [Folha da Noite – Edição de 09/05/1958]

 

A celeuma, como se pode imaginar, foi imediata, e a curiosidade tamanha, que tempos depois a revista O Cruzeiro, publica outra matéria, em 1959, sobre a “estranha mulher” que tinha a ousadia de, mesmo sendo pobre, escrever a própria história.

Em 1960, uma seleção dos cadernos editada por Audálio e publicada pela editora Francisco Alves veio a público com o título de Quarto de Despejo. Se a reportagem já havia impactado os leitores, a publicação do livro teve efeito explosivo no cenário literário do país: a primeira tiragem, cuja previsão fora prevista para 3.000 exemplares, teve que ser decuplicada em virtude do sucesso estrondoso do livro: em apenas três dias a primeira edição esgotou. A Francisco Alves teve que providenciar às pressas a produção de mais 30.000 exemplares, pois pedidos de todos os cantos do país não paravam de chegar. E não tardou para que o público internacional também se interessasse por seu livro:

 

“Não fora apenas nacionalmente que Carolina fez sucesso. Tendo sido logo traduzida em pelo menos treze línguas, ela superou todos os escritores brasileiros em termos de conhecimento internacional. Ultrapassando largamente Jorge Amado como personalidade ‘literária’ mais conhecida do Brasil, Carolina conseguiu ainda outro mérito curioso: até hoje permanece como a autora brasileira mais publicada no exterior, em particular nos Estados Unidos” (Bom Meihy, Carolina Maria de Jesus: emblema do silêncio).

 

Mas a popularidade de Quarto de despejo, e o sucesso e exploração midiática do livro também foram fatores que colaboraram para o desgaste da imagem de Carolina e consequente esquecimento da autora (que depois desse livro, ainda escreveu mais três e tinha vários textos em seus arquivos). Para José Carlos Sebe Bom Meihy:

 

“(…) foi tanto sucesso por um livro que a autora teve o resto de sua obra ofuscada. Sim, curiosamente a autora de tanto sucesso no livro de estreia, depois deste, padeceu enormemente a dor do silêncio e, o que é pior, do esquecimento. Se é verdade que Carolina publicou ainda depois do Quarto de Despejo mais três livros (Casa de Alvenaria, Diário de Bitita – que em conjunto com o primeiro forma a trilogia vivencial da autora – e Provérbios e Pedaços da Fome), não é mentira que teve que amargar a fusão de seu nome a uma circunstância política externa a sua experiência como escritora. Uma nítida decadência pode ser constatada no périplo de Carolina, pois seu último livro, Provérbios, fora financiado por ela mesma, que não conseguiu mais editores”.

 

Poderíamos questionar o que além desse suposto “esgotamento” (ou, como coloca Bom Meihy, “silenciamento”) poderia fazer com que uma das escritoras mais vendidas no Brasil fosse relegada a uma amnésia social, indo terminar seus dias no quase que total anonimato?

 

 

Uma “escritora-favelada”

 

Da noite para o dia, Carolina passa de moradora da favela para “escritora-favelada”. A própria notícia estampada no jornal em 1958 ressaltava tratar-se do “drama da favela escrito por uma favelada”. Essa alcunha é injusta – e nunca a abandonaria mesmo em diversos estudos realizados sobre sua obra –, ainda mais tendo-se em conta que Carolina nunca se habituara ou se integrara à vida na favela, tendo se mudado de lá, assim que pôde fazê-lo.

Alguns críticos também insistem em ressaltar o fato de a autora “apenas com dois anos de escolaridade” ter sido capaz de escrever uma obra extensa e variada. A despeito de seu vocabulário rebuscado (possivelmente pelo fato de enxergar no “falar difícil” um sinal de “escrever bem”) poderíamos, no entanto, questionar o fascínio e surpresa da crítica pelo fato de um ser humano com um percurso escolar formal precário ser capaz de pensar sua realidade, de demonstrar sensibilidade, argúcia ou, em uma palavra, inteligência. É necessário estar na universidade para ser capaz de decodificar ou falar da realidade?

 

 

A vida de uma poeta, sua obra

 

 

“A noite está tépida. O céu já está salpicado de estrelas. Eu que sou exótica gostaria de recortar um pedaço do céu para fazer um vestido”

(Quarto de despejo, 1960)

 

 

Questiono-me se este não teria sido um dos motivos para o “silenciamento” da obra da autora – silenciamento que ocorre no Brasil, mas a voz de Carolina era muito forte e continuou ecoando (e ecoa) por todo o mundo.

 

 

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Carolina Maria de Jesus nos deixaria em 13 de fevereiro de 1977, vítima de insuficiência respiratória. Catar papel, colher, ler: ler na realidade, ler a realidade bruta da vida e transformá-la em palavras.

Sua obra, mais do que simplesmente denunciar a pobreza, escancara a dignidade humana – que está acima da cor, do sexo, da classe, da origem social. Mais do que simplesmente ter vencido as barreiras das adversidades da vida, Carolina Maria de Jesus nos fala de igual para igual e exibe, da forma mais explícita, que o ser humano pensa, sente, age, vive – independente de seu meio, das condições de vida.

Carolina nos faz acreditar que apesar da pobreza, da miséria, da vida, o ser humano é digno: aquela que passou a vida catando papéis para sobreviver, foi capaz de reciclar a própria realidade e transformar os detritos da vida em adubo para a humanidade.

Termino, fazendo minhas as palavras de Marisa Lajolo numa conferência em comemoração ao Centenário de Nascimento de Carolina, no Instituto Moreira Salles do Rio de Janeiro (em 14/03/2014):

 

“A grande contribuição dada por Carolina foi a escrita, de cuja autoria ela foi por várias vezes destituída – pela sua origem social, pela sua origem étnica. Acho lindo pensar que Carolina era catadora de papel: vejam todos os sentidos que a palavra papel tem em nossa cultura. O papel é aquilo em que escrevo e tenho nas mãos, mas é também a função que desempenho na vida social. Carolina não foi somente uma catadora de papel no sentido físico da palavra; ela catou e construiu o papel que ela representa na cultura brasileira e que precisa que nós hoje – educadores, escritores, professores – façamos com que ela volte à tona, com que ela seja lida, com que ela seja discutida, e que se pense em todas as lições que ela nos dá relativamente ao que é a vida letrada, a vida dos livros para uma pessoa que é despossuída por nascimento de todos os pressupostos que a cultura escrita pressupõe (…)”.

 

 

Obrigado, Dona Carolina.

 

 

 

 

Referências bibliográficas:

 

DE JESUS, Maria Carolina de. Quarto  de  despejo (1960):  diário de uma favelada. São Paulo: Ática, 2012.
DE JESUS, Maria Carolina de. Casa de alvenaria: diário de uma ex-favelada. São Paulo: Livraria Francisco Alves, 1961.
DE JESUS, Maria Carolina de. Pedaços da fome. São Paulo: Áquila Ltda, 1963.
DE JESUS, Maria Carolina de. Diário de Bitita. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
MEIHY, José Carlos S. B; LEVINE, Robert M.  Cinderela negra:  a saga de Carolina Maria de Jesus. Rio de Janeiro: UFRJ, 1994.
MEIHY, José Carlos S. B; LEVINE, Robert M. (orgs.). Meu  estranho  diário. São Paulo: Xamã, 1996.
MEIHY, José Carlos Sebe B. “Carolina Maria de Jesus: emblema do silêncio” In: Revista da USP n. 37. São Paulo: 1998.
MIRANDA, Fernanda Rodrigues de. Os caminhos literários de Carolina Maria de Jesus: experiência marginal e construção estética. São Paulo (Dissertação de Mestrado), 2013.

 

 

 

 

 

 

Ilustração: Nara Isoda

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