Geni é uma revista virtual independente sobre gênero, sexualidade e temas afins. Ela é pensada e editada por um coletivo de jornalistas, acadêmicxs, pesquisadorxs, artistas e militantes. Geni nasce do compromisso com valores libertários e com a luta pela igualdade e pela diferença. ISSN 2358-2618

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Por um marxismo queer da periferia – Parte 3

Centro, periferia e o mito da democracia racial. Por Lia Urbini

Lenin sempre dizia: ‘O movimento vem da província’.
E a mulher é a província do homem.”

(Companhia do Latão, na peça Equívocos colecionados)

 

Esta é a terceira parte de um programa que discute, por meio da articulação entre marxismos, teoria queer e perspectiva periférica, problemas teóricos/práticos da “vida diversa”. Nas edições anteriores, tratei brevemente de dialética, contradição, história, materialismo, sexo, gênero, identidade e política. Pretendo aqui acrescentar mais uma camada de pensamentos, composta por algumas discussões sobre as relações entre raça, gênero e periferia.

 

1. Centro e periferia: oposição ultrapassada?

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De acordo com o dicionário Michaelis, periferia é definida, no seu sentido urbanístico, como “região distante do centro urbano, com pouca ou nenhuma estrutura e serviços urbanos, onde vive a população de baixa renda”. No sentido anatômico, é a “superfície externa do corpo ou de um órgão”, e, mais abrangentemente, traz a ideia de estar nos arredores, nos contornos, nas margens. Existem muitas outras definições, mas praticamente todas se constituem em oposição à ideia de centro.

 

Centro, por sua vez, é um verbete com mais definições do que periferia. Além de ponto central equidistante de uma superfície considerada, local de encontros espíritas e umbandistas, posição política intermediária entre esquerda e direita, também é definido pelo mesmo dicionário como “coisa ou pessoa a que muitas outras se referem ou estão subordinadas”. Dessa incursão aos significados, vamos reter a ideia de periferia como algo oposto e subordinado ao centro.

 

Ao tratar da questão centro-periferia em termos espaciais, vemos alguns discursos se polarizarem em torno da seguinte questão: dadas as novas configurações do mundo do trabalho e do capital, bem como os seus desdobramentos na produção e na transformação das cidades e das rotinas das pessoas, faria ainda sentido usar esses dois termos opostos?

 

Argumentos inclinados à leitura pós-moderna do mundo focam nas múltiplas centralidades da contemporaneidade, na fragmentação estilhaçando unidades estanques. Para Teresa Salgueiro, professora de urbanismo em Lisboa:

 

“A própria continuidade centro-periferia (…) baseada em complementaridade se rompe. (…) o centro perde a especificidade regional e acolhe funções determinadas por processos longínquos de caráter global e a continuidade com a periferia é desafiada pela multiplicação das centralidades. (…) na urbes se multiplicam as áreas funcionalmente equivalentes sem ligações hierárquicas, tendendo para uma estrutura policêntrica e reticulada. Este processo é particularmente visível na estrutura terciária com o declínio do centro tradicional e a emergência de novas centralidades, polos de comércio e serviços com grande capacidade de atração que disputam clientelas, uma vez que os novos padrões de mobilidade acabaram com a exclusividade das áreas de mercado dos pontos de venda definidas pela distância aos consumidores”.

 

Outras abordagens, como a do geógrafo britânico David Harvey, compartilham algo da descrição pós-moderna das alterações do espaço, mas insistem mais enfaticamente no aspecto de continuidade nessas transformações: esse suposto descentramento seria uma nova forma das antigas desigualdades capitalistas fundamentais em relação aos modos de trabalho (oposições entre proprietários dos meios de produção e proprietários da força de trabalho). Ainda que pulverizados, centros e periferias ainda se manteriam como polos distintos e complementares. A relação de subordinação da periferia ainda persistiria, razão pela qual autores como ele leem a contemporaneidade mais como “mais do mesmo” do que como algo completamente distinto do que se tinha antes.

 

Para Harvey, em seu livro O enigma do capital, ainda podemos identificar a autoria das transformações para mapear estratégias de enfrentamento e resistência, em vez de lamentá-las e tomá-las como naturais:

 

“Os processos de acumulação do capital não existem, obviamente, fora dos respectivos contextos geográficos e essas configurações são por natureza bastante diversificadas. Mas os capitalistas e seus agentes também têm um papel ativo e fundamental na alteração dessas configurações”.

 

Além disso, o autor reconhece características mais “fluidas” na configuração do mundo hoje, mas não acha que elas sejam inexplicáveis ou incompreensíveis. Há de se reconhecer os sujeitos que, ainda que não plenamente conscientes, dia a dia trabalham em prol da perpetuação das desigualdades. Segundo Harvey:

 

“As populações excedentes não estão mais ancoradas em um lugar, assim como não está o capital. Elas fluem para todos os lugares em busca de oportunidades ou emprego, apesar das barreiras à migração por vezes colocadas pelos Estados-nação. (…) As diásporas de todos os tipos (de empresários e trabalhadores) formam redes que criam tramas intrincadas na dinâmica espacial da acumulação do capital. E é exatamente por meio dessas redes que agora assistimos aos efeitos do crash financeiro se espalhando em quase cada canto e recanto da África rural ou da Índia camponesa. A desnutrição e a fome devastam o Haiti na medida em que as remessas dos EUA secam porque as trabalhadoras domésticas em Nova York e na Flórida estão perdendo o emprego”.

 

A partir de constatações como essas, Harvey diz que devemos nos indagar sobre o processo pelo qual as coisas se tornam o que se tornam: “Como é produzida toda essa diferença geográfica? Como sua variedade aparentemente infinita e incontrolável se costura e tece internamente para formar a geografia dinâmica na qual estamos?”. Perguntas assim nos dão pistas para analisar de forma materialista, histórica e dialética processos como a produção dos espaços permeada por relações de poder e hierarquização.

 

2. No universo da cultura, o centro está em toda parte?

 

Quando penso em um marxismo queer de periferia, no entanto, não estou sugerindo apenas que se considere o olhar periférico do ponto de vista espacial. Sim, desejo pensar do ponto de vista do Brasil, mesmo reconhecendo o caráter bastante colonizado da nossa formação e as constantes referências ao pensamento “central”. Mas desejo também trabalhar com a dimensão metafórica do termo “periferia”.

 

A periferia pode ser compreendida como uma metáfora bastante concreta, que possui corpos, rostos e que fala sobre o lugar periférico – no sentido de subordinado e marginal – em que a mulher se encontra em relação ao homem; em que o negro se encontra em relação ao branco; em que LGBTs se encontram em relação a heterossexuais. Ainda mais porque existem relações entre a periferia espacial e essas outras periferias, como podemos perceber por exemplo na desproporção entre homens e mulheres nos espaços centrais de decisão, ou nas distintas composições raciais nas diferentesregiões de trabalho e moradia. Nesse sentido, um pensamento produzido pela periferia concreta e simbólica.

 

“No universo da cultura, o centro está em toda parte”. Essa é uma frase do Miguel Reale, um jurista paulista ativo no movimento integralista e, posteriormente, na ditadura civil-militar. Por ironia, a frase é inscrita num grande monumento de uma universidade estatal, a USP, subsidiada por impostos de contribuintes no geral, mas na qual apenas uma parcela deles ingressa, normalmente a parcela que pela primeira vez pisa em uma escola do governo. Esse contexto nos permite concluir que a citação deve ser lida com um sentido político (e partidário) de “centro”, como um recado perverso demarcando territórios: O centro, para não dizer a direita, está em toda parte.

 

Para nos contrapor a realidades de subordinação como essas, vamos conhecendo e nos articulando às redes periféricas, mesmo que soe fora de moda não aderir à onda pós.

 

Entreato: adendo explicativo sobre binarismos

 

Já que entramos nas polarizações políticas coroando as outras polaridades, um adendo explicativo sobre binarismos.

 

No evento das cooperativas populares que a Geni participou, uma das questões levantadas após a nossa fala foi a respeito dessa generalização dicotômica que teria permeado um pouco nossa argumentação sobre feminismo branco e feminismo negro. Uma indagação sobre o motivo de explicar as oposições nesses termos. Essa é uma pergunta necessária, ainda mais se a ideia é trabalhar dialeticamente com as oposições. Espero que o exemplo com o qual decido terminar este texto justifique algumas apostas, alguns tratamentos aparentemente duais.

 

3. Sobre o mito da democracia racial

 

Assim como o discurso do “centro em toda parte” – no sentido retórico que se pretendia dar, de pluralismo democrático –, houve (e ainda há) o discurso da democracia racial no Brasil. Ele consistia em enfatizar a quebra de barreiras entre negros e brancos na população brasileira, e produziu um imaginário identitário nacional bastante centrado nessa ideia conciliadora.

 

Ainda que a fórmula “democracia racial” não seja explicitamente do sociólogo Gilberto Freyre, ela traduz a linha geral da argumentação desse pensador em relação à possibilidade de coexistência pacífica e harmônica dos opostos, que segundo ele nem eram tão opostos assim, já que se misturavam pelo sexo. Trechos inteiros de suas principais obras eram citados nos discursos de Marcello Caetano, sucessor do ditador português Salazar, responsável por realizar nas colônias portuguesas a descolonização segura, lenta e gradual, com o intuito de pulverizar o antagonismo entre negros colonizados e brancos colonizadores. Obviamente que não se trata, aqui, de apoiar cisões entre etnias ou coisa parecida. Mas somente de compreender quando discursos aparentemente integradores e plurais também estão segregando, de outra maneira.

 

A própria defesa pelo uso sociológico da categoria “raça” dentro da luta negra se justifica nesse sentido. Há a constatação biológica de que, entre seres humanos, diferentemente de cachorros e outras espécies animais, não há diferenciação por raças. Geneticamente, as alterações não se agrupam e se polarizam em blocos que coincidem com as nossas diferenciações sociais sobre o que é um branco, um árabe, um negro, um oriental. No entanto, em sentido sociológico, e para as análises sociais em geral, a ideia de raça se mantém, pois ainda há distinções sociais que operam a partir das categorias da aparência física, vinculada a um conjunto de adjetivações deduzidas dos distintos passados de nossos ancestrais biológicos.

 

As categorias “homem” e “mulher” ainda não estão fundidas num discurso integrador queer hegemônico, e por conta disso parece fazer muito sentido, neste momento, questionar o binarismo de sexo e de gênero. Por outro lado, a existência de outros discursos integradores hegemônicos, como o discurso da democracia racial, nos fazem pensar sobre a necessidade de reafirmar posições polares, no sentido de explicitar posições. Trata-se de pensar as categorias historicamente, e as suas relações umas com as outras, como caminhos do pensamento e das estratégias políticas de resistência da periferia.

Leia outros textos de Lia Urbini seção Instrumental.

Ilustração: Bianca Muto.

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