Geni é uma revista virtual independente sobre gênero, sexualidade e temas afins. Ela é pensada e editada por um coletivo de jornalistas, acadêmicxs, pesquisadorxs, artistas e militantes. Geni nasce do compromisso com valores libertários e com a luta pela igualdade e pela diferença. ISSN 2358-2618

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Se partir em dois

A série Autotomy, da fotógrafa Adelaide Ivánova, e um papo sobre identidades trans e cis. Por Gui Mohallem

Acho que conheci Adelaide Ivánova em 2010, num workshop do fotógrafo estadunidense Alec Soth. A gente estava lá, cada um com seu projeto de livro, buscando uma pista de por onde ir, tentando se entender.

 

Desde 2011 ela mora na Alemanha e estuda fotografia em uma escola de nome impronunciável. Um de seus projetos recentes se chama Autotomy e trata de uma aproximação em um mundo estrangeiro: o cotidiano de dois jovens trans. Ao longo do processo, a câmera se volta para o universo da fotógrafa, numa investigação de sua própria identidade e de seus valores – questionados pela vontade de empatia ou pela simples convivência com esses meninos.
A conversa que se trava aqui tenta aproximar as nossas experiências com a alteridade transformante. Do meu lado, sobretudo, a partir das vivências no santuário de Welcome Home; do lado dela, a partir do envolvimento com o universo de Michael e Kai.

 

 

Gui Mohallem: Queria que você começasse falando um pouco sobre como essa convivência com esses garotos te afetou. Você diz que não ficou amiga deles, mas que a convivência gerou questionamentos íntimos, e que talvez por isso a série não trate só deles, e sim da relação do universo deles com o seu.

 

Adelaide Ivánova: Comecei a fotografar a série com esse desejo antropológico, eles existindo e eu observando. Mas não deu! No geral, a fotografia alemã é tipografia, né, é puro gelo. Na minha escola – a Ostkreuzschule, do fotógrafo Werner Mahler – não é diferente, e me atrai demais esse olhar nada passional que eles [os fotógrafos alemães] têm pras coisas, eu queria ser assim. É sábio “reportar” sem se misturar, sem ficar se metendo na vida dos outros. Trabalhar assim é a supressão do ego, de certa forma, o que pra um artista pode ser um exercício muito difícil. Mas devagar meu DNA latino se manifestou, o eu-narradora foi virando personagem. Porque conviver com Michael e Kai foi mexendo com essas certezas que temos em relação à biologia, com aquele debate do inato versus adquirido.

 

Eu tentei buscar em mim meu lado masculino, mas em exercícios muito ingênuos: antes de encontrar com eles, eu me vestia bem diferente do que me visto normalmente – não passava maquiagem, tirava o esmalte, essas coisas que pra mim são naturais e, de certa forma, importantes. E me peguei várias vezes os imitando nos gestos, na fala. Mas isso foi uma bobagem, porque “lado masculino” não é isso. E foi assustador perceber, assim, que também meu “lado feminino” não é determinado por essas coisas nem pelos símbolos visuais aos quais eu achava que minha feminilidade estava ligada. Aí pirei com isso de o gênero ser um estado de espírito, e fiquei decepcionada com a minha incapacidade de empatia, porque eu simplesmente não consegui entendê-los, a natureza deles. Foi tão forte minha incapacidade de entender – é um mistério tão enorme, isso do corpo e da identidade de gênero dissonantes – que tive um ataque de pânico, fiquei internada, endoidei mesmo!

 

Mas, por outro lado, esse breakdown me fez aceitar que esse sim era meu tema, esse não entender e tentar entender. Aí vieram as fotos, por exemplo do esmalte, que é um utensílio ligado ao feminino – ou seja, não às mulheres, mas ao feminino! –, mas aquela embalagem especificamente é bem fálica, com aquele negócio dourado ereto. Fiquei me ocupando de achar esses símbolos no dia a dia.

 

Gui: Em relação ao que você falou, tem duas coisas aí que me chamam a atenção. Uma é essa frustração e essa impossibilidade da empatia, de se colocar verdadeiramente no lugar do outro. Já pensei muito sobre isso, sabe? Se eu e você mordermos a mesma maçã, a gente nunca vai sentir o mesmo gosto. Do mesmo jeito, a gente nunca vai ver a mesma cor – nem que eu não fosse daltônico. Aí eu me pergunto: quem me garante que a gente usa a mesma palavra pra definir um sentimento, uma sensação ou uma emoção?

 

Entendo total seu malfunction em cima disso, porque esse isolamento é constante, inexorável, mas a gente finge que ele não está lá pra viver. Não quero piorar as coisas, mas acho que isso não acontece só na sua relação com aqueles meninos, acho que isso acontece inclusive com as pessoas mais próximas, as pessoas que a gente ama.

 

Sobre a questão do feminino, eu pifei quando conheci duas pessoas no santuário que se consideravam mulheres trans, mas usavam barba! Ainda sou muito próximo de uma dessas pessoas, e o que ela me diz é que ela não acredita nisso que a gente entende como feminino, o esmalte, o cabelo, a roupa etc. Que a questão da feminilidade é uma questão muito mais profunda, muito mais interna. Assim, mesmo se sentindo uma mulher, tendo muito claramente internalizado que ela é uma mulher trans, ela se veste de camisa de flanela, jeans, cabelo curto e barba.

 

Uma vez uma criança de longos cabelos louros, vestida de cor-de-rosa e com muitos colares no pescoço, me repreendeu porque achei que ela era uma menina. Ela me disse, firme: “Eu sou garoto, eu só gosto de usar cabelo comprido e cor-de-rosa, mas sou garoto”. Aí entendi uma coisa que essa criança de seis anos já dominava fazia tempo: que a identidade e a expressão nem sempre andam juntas.

 

Adelaide: É, eu já ia te perguntar como foi pra ti no santuário, porque tu não foste lá somente pra realizar um projeto, mas também pra viver uma experiência pessoal, assim me parece. Num contexto como esse, a empatia pode acontecer mais facilmente, porque tem uma identificação tua com essa comunidade, existe um pré-encontro.

 

Sabe que tem outra coisa que me pegou muito na feitura da série, ainda tratando do tema “empatia”: o não se apaixonar pelo fotografado. Antes de começar a fotografar Michael e Kai, o projeto sobre transsexualidade nasceu com a Grete, uma trans inteligentíssima, amiga de amigos. Eu fiquei fascinada, aprendi muito com ela, e as fotos estavam ficando lindas, mas depois de alguns encontros ela desistiu de participar do projeto, não queria se expor tanto.

 

Com Michael e Kai não foi assim. Eles eram muito simples, não havia conflito existencial, apesar de serem transgênero, e eu tive muita dificuldade em aceitar essa banalidade. Sentia muita culpa de não gostar deles como gostei da Grete. Essa foi outra luta minha no decorrer do processo: aceitar que meus fotografados são como são, que às vezes não são fascinantes como a gente espera que sejam. A culpa era, claro, toda minha e das minhas expectativas.

 

Eu achava que ia encontrar dois caras que carregavam uma sabedoria de vida, detentores do mistério primordial da nossa existência [risos]. Mas encontrei dois meninos normais. Aí que estava a doidice: dois meninos normais, tão normais que me entediavam, mas que eu absolutamente não conseguia entender na coisa do mistério do gênero.

 

Agora, me conta como é pra ti lidar com a rejeição, quando tu não sentes nada por alguém, no nível pessoal, mas essa pessoa é interessante pro trabalho. Tu sentes culpa?

 

Gui: Que dó que me deu de a Grete não querer mais participar do projeto! Deve ter sido uma puta frustração. Mas, ao mesmo tempo, fico pensando aqui que o fato de você não ter se apaixonado pelos meninos, de ter se frustrado em relação ao que você esperava deles, fez muito bem ao trabalho. Porque aí o que aparece não é o conflito existencial deles, mas o seu. Isso é fantástico! É muito mais fácil quando o outro tem aquilo que a gente quer investigar na gente, quando a gente se reconhece no outro. Acho que a força da sua série vem de que, no conjunto, você também acaba aparecendo.

 

Isso que você chama de rejeição, eu chamo de impermeabilidade. Acho que o trabalho em que eu me senti mais próximo disso foi com os ciganos, porque eu não fiquei com eles o suficiente para a gente estabelecer uma relação de confiança mútua. Eu tinha um fascínio por esse universo, mas não deu tempo de entrar, não consegui aprender como lidar com suas ambivalências. Fiz uma edição para mandar para o Prêmio Conrado Wessel como um exercício, e com a ajuda da diretora do filme. Quando veio a premiação, fiquei superfeliz, mas dividido também, pois não consigo bancar o ensaio. Gosto das imagens, mas não acho verdadeiro. Não vejo nem a mim nem a eles. Faltou tempo de convivência.

 

Acho que você lidou melhor com isso no Autotomy. Aliás, queria te perguntar o porquê do título, que ainda não me é claro.

 

Adelaide: Pois então, sobre esse negócio de não ter me apaixonado por eles ter trazido outros elementos importantes, tu tens toda razão, mas na época eu só sentia o incômodo. Hoje eu vejo que foi o melhor, pra série e pra mim. Esses dias vi uma entrevista da [performer sérvia] Marina Abramovic, em que ela fala que, se você só trabalha com o que gosta, você não se transforma. É bem isso.

 

Tem uma frase do biógrafo da [fotógrafa estadunidense] Diane Arbus. Eu li na época em que estava me recuperando da crise de pânico, e foi quase um consolo e um encorajamento. Ele diz: “Arbus’ particular contribution as an artist was not in what kind of people she approached to photograph, but in what she was able to derive from the experience[A contribuição específica de Arbus, como fotógrafa, não está no tipo de pessoas de quem ela se aproximou para fotografar, mas no que ela foi capaz de derivar dessa experiência].

 

Acho que é assim pra todo artista que se ocupa do outro, né? Mesmo no caso de histórias cujo ponto de partida é muito íntimo, como em outro trabalho teu, Tachrafna, essa frase do biógrafo se aplica; pois o teu sujeito é, na verdade, os resquícios da vida de outra pessoa, e consequentemente é a experiência dessa busca ainda mais grandiosa do que o resultado, e a experiência vira o resultado. (Nossa, soa como se eu tivesse fumado três beques [risos]!)

 

O título da série vem de outra mulher incrível, a poeta polonesa Wislawa Szymborska. Ela tem um poema que se chama “Autotomia”, que é a capacidade que alguns animais têm de mutilar o próprio corpo pra se defender dos predadores ou pra se adaptar ao meio. Não é mimetismo, quando o animal se camufla. É literalmente se partir em dois. O poema começa assim:

 

“Diante do perigo, a holotúria se divide em duas:
deixando uma sua metade ser devorada pelo mundo,
salvando-se com a outra metade.”

 

Eu acho isso tão lindo, e essa primeira estrofe é pra mim muito representativa dessa dualidade interna e a (des)aceitação do meio. Queria que o projeto se chamasse “holotúrias”, mas achei que dar ao título o nome de um animal podia oferecer interpretações erradas ou engraçadinhas – afinal, holotúria é um nome bonito do pepino-do-mar [risos]. Não que “autotomy” seja um termo que a gente ouça na fila do pão, mas acho menos hermético.

 

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 Clique na imagem para ver a série Autotomy, de Adelaide Ivánova

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