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Gaslighting no filme Anticristo

Uma perspectiva brechtiana para discutir a opressão feminina no filme de Lars von Trier. Por Patrícia Kruger

 

Publicado em: 14/12/2015

 

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O fenômeno de manipular a percepção que determinada pessoa tem da realidade possui um termo específico, gaslighting, que me parece um tema bastante interessante para a discussão da construção narrativa no cinema. Não apenas porque o próprio termo deve sua origem a um filme (Gaslight, À meia luz, 1944, de Georg Cukor), mas porque a própria formatação dos filmes hegemônicos, cuja base é o drama, nada mais é do que uma manipulação de técnicas e materiais com o intuito de projetar estereótipos de comportamentos, sentimentos e reações como a percepção “oficial” da realidade. Tal formatação, que podemos chamar de naturalista, é descrita pelo teórico Ismail Xavier como “o estabelecimento da ilusão de que a plateia está em contato direto com o mundo representado, sem mediações, como se todos os aparatos de linguagem utilizados constituíssem um dispositivo transparente (o discurso como natureza)” (XAVIER, 1984, p. 42). Exploro neste texto o conceito de gaslighting (em tradução livre, “manipulação psicológica”) para a análise de um filme em particular: Anticristo (Antichrist), de Lars von Trier, vinculando o termo a um de seus usos mais recorrentes: o processo de construção pública das mulheres como seres insanos e irracionais (1). Antes disso, vale verificar como o termo relaciona-se à obra de Cukor.

Gaslight é baseado na peça homônima escrita por Patrick Hamilton em 1938 e possui duas versões para o cinema, a de Cukor e a de Thorold Dickinson, lançada em 1940. Tendo mais alcance e repercussão, inclusive porque a MGM tentou minar de todas as formas a existência da primeira versão, o remake estadunidense será aqui minha referência. Nesta obra, Ingrid Bergman interpreta Paula, sobrinha de uma milionária que acaba de ser assassinada. Dez anos após o crime, Paula casa-se com Gregory (Charles Boyer), ninguém menos que o assassino de sua tia, e volta a morar na mansão onde a idosa fora morta. O objetivo de Gregory é se apossar de suas joias e, para tanto, sua estratégia é agir de modo a fazer com que Paula pense estar ficando louca – seus planos ficarão mais fáceis se a esposa for atestada como insana e enviada a uma instituição de doentes mentais. Assim, ele faz com que ela não encontre objetos, pense estar ouvindo passos no sótão vazio e, intencionalmente, deixa as luzes de gás fracas e inconstantes, replicando, toda vez que ela reage a isso, que ela está vendo coisas. A esposa começa a acreditar em seus “sinais de insanidade” e que as luzes diminutas de seu quarto, que ninguém parece notar, são alucinações. Gregory encoraja o isolamento de Paula, já que em seu “estado alterado” não há como ela conviver com outras pessoas. As intenções de Gregory, no entanto, acabam sendo descobertas por um detetive e o filme tem um desfecho feliz.

 

IMAGEM MAIS IMPORTANTE PRA GENI

 

A manipulação psicológica e emocional que Paula sofre no filme ecoa na vida real de muitas mulheres que, depois de circunstâncias em que se sentem frustradas, injustiçadas, tristes ou irritadas, têm suas reações desqualificadas por meio de argumentos tais como “você é muito sensível”, “você é muito emocional”, “você está exagerando”, “você é muito dramática” (ALI, 2011, minha tradução). Desta forma, por meio da criação de bloqueios e inseguranças, não raramente estas mulheres acabam também limitando sua vida social, com receio da exposição psicológica ou emocional. De fato, como aprendemos desde cedo que a emotividade e a sensibilidade são os âmbitos por excelência do feminino, relacionados à “profunda conexão da mulher com a natureza”, ao misticismo e à famosa “intuição feminina”, nada mais coerente do que o fato de as mulheres duvidarem vez ou outra de sua própria racionalidade! E quando reagem a esta forma de manipulação, expondo uma agressividade não esperada e não aceita pelas normas da sociedade, fica estabelecida a prova da loucura das mulheres, apenas atestando, claro, que são mesmo mais sensíveis e instáveis do que os homens. Yashar Ali, no artigo Why Women Aren’t Crazy (Porque as mulheres não estão loucas) aponta como esse tipo de tratamento muitas vezes não é premeditado ou intencional – uma forma de comportamento que já tomamos por natural.

 

constelacoes_corvee ou corveus

 

É neste ponto que eu gostaria de puxar uma conexão com o filme Anticristo. Lançado em Cannes em 2009, o filme gerou grande polêmica, sendo compreendido por grande parte da crítica como misógino. No estudo do filme que venho desenvolvendo em minha tese, o que tento mostrar é que a opressão feminina não é endossada pela obra, mas exposta e problematizada por diversos elementos – como suas configurações épica e expressionista – que dificultam a interpretação naturalista e a associação direta entre seu conteúdo e o ponto de vista do filme. Anticristo, portanto, é estruturado de maneira a permitir o distanciamento e a abordagem crítica dos assuntos que o filme apresenta, e não como uma mímese perfeita da realidade. Acredito, assim, que uma abordagem hiper-realista do filme – a história de um casal que perde um filho, isola-se numa cabana no meio da floresta, onde o protagonista tenta curar o sofrimento da protagonista por meio de terapia cognitiva, mas acaba descobrindo “a maldade intrínseca de sua esposa”, sendo, justificadamente, levado a cometer seu assassinato – é um tanto limitada.

Neste âmbito, é interessante observar a declaração de Trier em uma entrevista dada pouco antes do lançamento de Anticristo: “Seja o filme sobre o que for, ele não é o que o diretor pensa” (TRIER, 2009). O mais importante em sua técnica, segundo ele, seria apresentar uma tese com a qual ele mesmo não concorda. Bom, se Anticristo não apresenta as ideias do próprio diretor, então apresenta as ideias de quem? E como poderíamos perceber que tais ideias são problematizadas no filme e não expostas de forma acrítica? Para responder estas perguntas, é necessário observarmos os elementos do filme que perturbam a identificação acrítica do espectador e, tal qual o método épico do dramaturgo alemão Bertolt Brecht, explicitam o caráter de construção e exposição de pontos de vista do cinema.

O fato de as personagens não serem nomeadas, por exemplo, reforça a leitura distanciada que o filme incita. Vale lembrar que o diretor vem atualizando o estilo épico característico de Brecht já há algum tempo, sendo que a referência mais óbvia à reapropriação do recurso deu-se em Dogville (2003) e em Manderlay (2005), com os cenários riscados a giz e o convite ao estranhamento do material apresentado. Anticristo também traz diversos elementos que corroboram com o estranhamento dos materiais que o filme apresenta, como a divisão do filme em prólogo, capítulos e epílogo; sua forte carga simbólica e relativa aos sonhos; o comentário que a ária do prólogo e as imagens documentais de mulheres-bruxas no sótão fazem ao filme; a inclusão de elementos fantásticos que quebram a linearidade narrativa, como a raposa falante; a edição do filme, com a transição brusca de uma tomada a outra, expondo-o como construção; os personagens que olham subitamente para a câmera etc.

A não nomeação das personagens indica também que elas representam grupos, funções sociais – homens e mulheres. Ao mesmo tempo, seguindo a dinâmica brechtiana dialética entre coletivo e individuo, tais personagens são historicamente situadas: um núcleo familiar estadunidense (aspecto também ignorado pela crítica, ainda que haja um close up de uma correspondência indicando que o filme se passa em Seattle), formado por dois intelectuais, situados na contemporaneidade. Assim, as questões concernentes à opressão feminina devem ser contempladas de uma forma que dê conta da inter-relação entre o plano sócio-histórico e o plano do indivíduo e de sua subjetividade, inclusive de sua construção psíquica.

 

projecão da loucura_criação e critica

 

Com isso, chegamos ao fato que considero essencial para a interpretação do filme: a utilização de uma estratégia denominada “armadilha ideológica”, que nada mais é do que uma elaboração artística que permite que uma cilada, uma mistificação, uma mentira astuciosa seja desfeita. É uma estratégia muito recorrente na cinematografia de Trier, como no jogo que o diretor estabelece em Dogville, por exemplo, ao iludir, por meios dramáticos, a plateia, e fazê-la aderir ao discurso de Grace, das demais personagens e mesmo do narrador, apenas para trazer à tona o repertório moralista, conservador e, por vezes, fascista, destes espectadores (e da crítica), que vibram com a vingança da protagonista (SOUSA, 2007). Em Anticristo esta armadilha se dá com a estruturação do filme através de um foco narrativo determinado que estaria vinculado à personagem de Willem Dafoe. Esta narrativa da personagem masculina, apresentando uma determinada visão de mundo, insere-se numa estrutura maior, o ponto de vista do filme, que comenta, desmente, perturba e coloca à prova nosso narrador. Tal armadilha ideológica, quando não percebida, ou seja, quando ignorado que o filme possui um narrador cuja versão dos fatos deve ser encarada com cuidado, pode levar às inúmeras interpretações da obra, que enxergam nela pura afirmação da misoginia.

Devemos, assim, atentar ao risco da aderência à narrativa desta personagem, aderência que é alimentada por ser ele um terapeuta, um homem da Ciência, da Razão, disposto a ajudar sua esposa a superar o trauma da perda do filho. Nada mais honroso! A tarefa que nos cabe é perceber que, assim como ele conduz a esposa por meio de sua abordagem racional de tratamento da dor, ele também está conduzindo a audiência a compartilhar de sua ótica, como se esta fosse a própria ótica do filme. No entanto, as provas de que a condução da narrativa é feita tão somente por ele estão espalhadas por todo o filme, sublinhando seu papel central na configuração da história. Basta notar que a câmera subjetiva relaciona-se comumente com o seu olhar, e que pouquíssimas cenas se dão na presença isolada da personagem feminina, ao contrário dos vários momentos centrados na personagem masculina, que também é a única a presenciar acontecimentos “fantásticos”, como a famosa cena da raposa. A edição, a iluminação e a grande discrepância de falas em Anticristo também ajudam a privilegiar esta personagem como a responsável pela narrativa do filme.

O foco narrativo vinculado à personagem masculina funcionaria, desta forma, de maneira semelhante ao discurso não confiável de um narrador em primeira pessoa, mas com um importante acréscimo: aqui haveria a materialização da esfera psíquica da personagem de Dafoe(2), como se o filme ilustrasse os processos mentais ocultos, mas historicamente condicionados, de uma determinada subjetividade e sua relação com determinados discursos hegemônicos – como o patriarcalismo e as ideologias que estabelecem o que é o “feminino”, e de que forma esta “entidade” pode ser tão “ameaçadora”.

Nesse sentido, a constelação de imagens e acontecimentos irreais, as inúmeras referências ao universo dos sonhos e às teorias freudianas configuram, de fato, antes uma rica exposição de acontecimentos psíquicos ocultos, vinculados a um ego determinado, em relação ao qual e a partir do qual todas essas manifestações ocorrem, do que uma realidade propriamente dramática e realista. Esta configuração se dá de maneira semelhante ao que ocorre em inúmeras peças do dramaturgo sueco August Strindberg. Também nelas, ao invés do confronto entre duas subjetividades, o que se apresentam são desdobramentos da psique do protagonista.

Nesta nova leitura, o ataque extremo de Gainsbourg contra Dafoe, por exemplo, seria, na verdade, reflexo da consciência de Dafoe, sendo os traços principais da personalidade da esposa, seus atos e justificativas, determinados por ele próprio. O argumento principal que justifica a loucura de Gainsbourg – a sua identificação com a tese que deveria criticar – é também uma transferência à personagem de Gainsbourg de pensamentos próprios da subjetividade cuja exteriorização se dá no filme: a de Dafoe. Ele suspeita de pensamentos que podem ocorrer na cabeça de Gainsbourg e os projeta na tela como as palavras e ações da esposa. O movimento é bem próximo do executado por um narrador conhecido nosso, o Bentinho de Dom Casmurro, que expõe sua não confiabilidade de maneira obscena quando discorre sobre o justo castigo de Desdêmona em Otelo. Tudo o que sabemos de Capitu, como seu comportamento “dissimulado” e “ardiloso” é-nos transmitido pelo narrador da obra, que possui interesses muito claros em incriminar a esposa para salvaguardar sua posição patriarcal. Também em Anticristo há interesses patriarcais do intelectual branco, estadunidense e de classe média em pintar a esposa com as cores da instabilidade e da loucura.

 

calçando os pés trocados

 

Para exemplificar a projeção de pensamentos de Dafoe na figura de Gainsbourg, basta observarmos o diálogo do casal no hospital, no qual Gainsbourg assume a culpa pela morte do filho, ou a cena, quase ao final do filme, em que vemos claramente Gainsbourg assistindo a criança lançar-se pela janela. Tudo faz parte da construção da realidade por Dafoe, servindo, como no caso do diálogo, para torná-la mais confortável e consonante com sua posição social e sua percepção do mundo. Assim, suas próprias convicções – “a culpa foi dela”, “ela poderia ter impedido”, “ela sabia que isto poderia acontecer, enquanto eu não sabia de nada” – são projetadas nas falas e ações da outra personagem, recebendo um caráter menos condenável do que se expostas por ele mesmo, ou caso se referissem a ele mesmo. Assim, o descuido de uma criança por parte de sua mãe, este ser que lhe deve nada menos do que amor incondicional, segundo o discurso hegemônico defendido por Dafoe, seria justificadamente um fato passível de execração e punição. Quanto à cena em que ela vê o filho saltar para a morte, podemos notar que ela é repetida alguns minutos depois com a absurda presença de um veado dentro do apartamento do casal. Este animal fora observado exclusivamente por Dafoe, carregando um filhote morto junto ao corpo e sua reinserção no filme pouco depois de vermos Gainsbourg assistir à morte de seu filho confirma a projeção de um desejo oriundo tão somente da mente de Dafoe: o consentimento da morte da criança pela esposa.

A versão dos fatos exposta por Dafoe, contudo, é problematizada pelo ponto de vista do filme, que faz com que a narrativa de Dafoe apresente alguns lapsos – como a presença do veado no apartamento sem qualquer lógica de causalidade. Ou que vejamos na tela uma constelação inexistente, que Dafoe também , ao mesmo tempo que afirma: “não há uma constelação assim!”. Ou, ainda, que mostre os pés de Gainsbourg vermelhos após ela afirmar que o chão está queimando, ao que Dafoe, com riso sarcástico, reponde: “o chão não está queimando!”. Desta forma, o ponto de vista do filme exprimiria as contradições da obra, e problematizaria as “verdades” apresentadas pelas projeções psíquicas de Dafoe, incitando brechtianamente o espectador a enxergar as questões colocadas no seio de aparentes evidências. A presença da ária no filme (de uma ópera de Händel sobre a Primeira Cruzada Cristã) e as imagens de bruxas no sótão também funcionam como indicações do ponto de vista do filme sobre os materiais da História aos quais a narrativa de Dafoe deve ser relacionada.

Neste caminho, as conexões de Gainsbourg com a natureza (recordemos que ela torna-se, literalmente, a própria natureza quando se deita na grama), que determinaria, assim, sua “inconstância”, seu “misticismo” e sua “sensibilidade”, deve ter uma leitura a contrapelo. O universo feminino apresentado pelo filme é, sem dúvida, o universo da loucura e da contraposição à razão. Mas é o universo que Dafoe, corporificando o discurso autoritário e patriarcal no filme, quer fazer-nos crer como intimamente ligado às mulheres, universo que, segundo ele e o discurso misógino que personifica, deve ser controlado e supervisionado, como qualquer âmbito em que reine a insanidade e a imprevisibilidade. Contudo, o fato de Gainsbourg assumir ter descoberto “a natureza maligna de todas as irmãs” e afirmar que “as mulheres não controlam seus próprios corpos. A Natureza é que os controla” (TRIER et al, 2010, minha tradução) é uma das contradições que torna o filme bem mais complexo e interessante. Ao mesmo tempo que estas acepções são projeções do discurso de Dafoe sobre a esposa, reflexo de sua consciência, o fato de ela exprimi-las serve também ao propósito de complicar a leitura maniqueísta de homem-patriarcal versus mulher-vítima. A forma épica do filme, desta maneira, reproduzindo as contradições da vida material, impulsiona a reflexão sobre as dinâmicas das relações humanas em nossa ordem social. Impulsiona também a detecção da maneira como as mulheres muitas vezes reproduzem as bases de sua própria opressão ao valorizar, por exemplo, uma “especificidade feminina” como um atributo que as conecta a uma mística “empoderadora”.

Seguindo essa linha de raciocínio, advogo, na contracorrente da produção crítica sobre o filme, que a “loucura” de Gainsbourg nada mais é do que a instabilidade, o pânico e as incoerências da personagem masculina transferidos à personagem feminina. Por trás de toda uma carapuça de racionalidade há uma subjetividade incapaz de interpretar a realidade (como o barulho de bolotas de carvalho caindo sobre o teto) e que precisa construir um outro (uma mulher, como é de praxe) como irracional, inconstante e imprevisível para continuar velando a irracionalidade de seus argumentos. O fato de o filme trazer como um dos assuntos principais a Caça às Bruxas corrobora tal leitura. Lembremos que o ápice das perseguições às bruxas deu-se não na Idade Média, mas sim no início da Idade Moderna, recepcionando o desenvolvimento do Racionalismo e do Capitalismo. Toda a irracionalidade dos argumentos justificando esta barbárie, criados e propagados pela Igreja, por artistas, filósofos, juristas e estadistas da época, foi, assim, transferida às palavras e ações de milhares de mulheres, obrigadas sob tortura a confessar os mais fantasiosos atos.

 

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Desta forma, o estudo do feminicídio por Gainsbourg, seu grande interesse por sexo e a punição que lhe é imposta devem ser vistos de forma a acrescentar comentários à “essência feminina” que o filme traz sob o filtro discursivo de Dafoe. Tendo em mente que essa “essência feminina” ou de que esta lógica “emotiva e sensitiva” das mulheres tem ainda hoje justificado sua submissão à lógica patriarcal, aos cuidados e controle de um homem “racional e constante”, perceberemos que o filme, através de sua forma distanciada e historicizante, realiza justamente uma critica aos discursos que relacionam as mulheres ao âmbito da falta de razão.

A esta altura já deve ter ficado evidente como a crítica que o filme tece ao esquema “racionalidade masculina X sensibilidade feminina” relaciona-se ao fenômeno de gaslighting. E como as mulheres que ousam contestar esta manipulação psicológica e tentam fazer valer sua voz, tornam-se, logo, figuras desnecessariamente agressivas, ameaçadoras, descontroladas e histéricas. O abuso mental da personagem feminina pode ser observado na primeira metade de Anticristo. A violência psicológica e simbólica que Gainsbourg sofre, frutos da manipulação emocional e do controle “racional” de um homem que sabe o melhor de jeito de conduzir seu caminho no luto (e que qualifica as ideias da esposa como “apropriadas para um livro infantil”, por exemplo, quando ela discorre sobre a morte das sementes de carvalho), serve à lógica de garantir o controle e a manipulação das mulheres por aqueles que se beneficiam do sistema machista em que vivemos. Ao reagir de forma não esperada, rebelando-se contra a arrogância de quem age de maneira dita “mais racional”, entretanto, Gainsbourg é logo tida como louca. Basta lembrarmos que quando ela declara-se “curada” o filme desenvolve-se às avessas, com a mulher frágil e inconstante tornando-se, no interior da mente de Dafoe, a mulher-bruxa ameaçadora, ainda mais irracional, e que precisa ser aniquilada. Não é à toa que, logo após a cena em que Gainsbourg anuncia sua cura, observamos Dafoe, claramente aturdido com sua súbita recuperação, assistir à raposa exclamar: “O caos reina!”. Em outras palavras, depois de sua tentativa de escapar da manipulação psicológica de Dafoe, desafiando a ordem patriarcal, Gainsbourg precisa ser punida para que a ordem volte a reinar.

 

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A forma de problematizarmos os abusos mentais cotidianos também parece estar cifrada em Anticristo – o súbito aparecimento de uma coletividade de mulheres ao final do filme, que mais uma vez deixam Dafoe aturdido (assim como o público) e perturbam a ordem que o marido parecia ter reestabelecido no Éden com o assassinato da “feminista-bruxa-histérica”. Assim como o desvelamento da armadilha do filme ajuda-nos a estranhar estereótipos e violências naturalizados e cotidianos, vendo-os como construções sociais para garantir determinados privilégios, acredito que a denúncia e a exposição coletiva de gaslightings das mais variadas formas por mulheres no Brasil (como na campanha #meuamigosecreto) também colabora para desnaturalizar o fenômeno. A ação será chamada de desnecessária, exagerada e agressiva, e vai gerar clamores de que estas mulheres restrinjam-se ao seu silêncio. Mas é cada dia mais urgente a necessidade de seguirmos rebelando-nos e perturbando o Éden do patriarcalismo.

 

 

NOTAS

1 No artigo “A projeção da loucura na figura feminina em Anticristo, de Lars von Trier” (KRUGER, 2014) abordo, em parte, este assunto.

2 Uma vez que em Anticristo temos a presença de duas personagens sem nome, irei me referir, a título de praticidade, à personagem masculina como Dafoe, sobrenome do ator que a interpreta (Willem Dafoe) e à personagem feminina (Charlotte Gainsbourg) como Gainsbourg.

 

 

Bibliografia

ALI, Y. Why Women Aren’t Crazy. The Good Men Project, 18/09/2011. Disponível em

http://goodmenproject.com/featured-content/why-women-arent-crazy/.

KRUGER, P. A. “A projeção da loucura na figura feminina em Anticristo, de Lars von Trier”. Revista Criação & Crítica , v. 13, p. 55-68, 2014.

ROSENFELD, A. O teatro épico. 4ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2006.

SOUSA, E. G. Dogville, Filme e Crítica. Dissertação de Mestrado, FFLCH, USP, 2007.

TRIER, L. v. “‘Foi uma escolha fazer um filme não muito lógico’, diz Lars von Trier”. UOL Entretenimento, Cinema, 26 ago. 2009. Disponível em: http://cinema.uol.com.br/ultnot/2009/08/26/ult4332u1221.jhtm

TRIER, L. v, et al. Antichrist. Array (Irvington, N.Y.): Criterion Collection, 2010. (108 min)

XAVIER, I. O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência, São Paulo: Paz e Terra, 1984.

 

 

 

Patricia Kruger é doutoranda pelo Departamento de Letras Modernas da Universidade de São Paulo com estágio doutoral no Nordeuropa-Institut da Universidade de Humboldt/Berlim.

Ilustração: Renata Torres

 

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