Geni é uma revista virtual independente sobre gênero, sexualidade e temas afins. Ela é pensada e editada por um coletivo de jornalistas, acadêmicxs, pesquisadorxs, artistas e militantes. Geni nasce do compromisso com valores libertários e com a luta pela igualdade e pela diferença. ISSN 2358-2618

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PEGA NO MEU POWER | Os filhos das senhoras dos pássaros

Pelo fim do massacre da juventude negra. Por Sueli Feliziani

“As mães são compreendidas como a origem da humanidade e seu grande poder reside na decisão que tomar sobre a vida de seus filhos. É a mãe que decide se o filho deve ou não nascer e, quando ele nascer, ainda decide se ele deve viver. A mulher, especialmente nas sociedades antigas, tinha inúmeros recursos para interromper uma gravidez. E, até os primeiros anos de vida, uma criança depende totalmente de sua mãe; se faltarem seus cuidados, a criança não vinga. Em síntese, todo ser humano deve a vida a uma mulher. Se todas as mulheres juntas decidissem não mais engravidar, a humanidade estaria fadada a desaparecer. Esse é o poder de Iyá Mi: mostrar que todas as mulheres juntas decidem sobre o destino dos homens.”

http://tabadeoxossi.tripod.com/id40.html

“Para criar o Ayê, Ilê Ayê (acompanhada dos deuses), se deparou com o grande ‘Vazio’ (buraco negro). Momento em que a Princesa tira do Apo iwa, e assim sucessivamente criam-se os quatro elementos da natureza, Terra, Fogo, Água e Ar, que formarão o mundo material que os Deuses chamam de Ayê.”

http://profnetoieste.blogspot.com.br/2011/01/artigo-criacao-do-mundo-pela-otica-da.html

 

 

Toda mãe negra é mãe do mundo. Ela traz no ventre e no coração uma tradição de tribo e de família que foi cultivada milhares de anos antes de ela nascer. Somos Imojás e Oxuns. Nossas crias são parte de nosso sangue e de nossa tribo tanto quanto há mil anos o foram de nossas caravanas.

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A primeira vez que me encolhi de medo de um leão foi aos 16 anos. Ele usava farda cinza e ameaçava meu recém-formado bando com mais quatro de seus iguais. Eu voltava do colégio com meu companheiro. Era a década de 1990, e gangues de extermínio eram comuns na periferia. Durante 20 minutos fomos humilhados. Meu material escolar e o dele, jogados no chão. “Sim, senhor.” “Não, senhor.” As únicas coisas que balbuciamos de olhos baixos e coração em chamas.

 

Meu companheiro foi examinado em cada pedaço de seu corpo. E aquelas armas luziam como as presas de uma fera. Eram grandes. Ameaçadoras. Desproporcionais. E tinham apenas um propósito: acabar com vidas e sonhos de gente preta daquele lugar.

 

Foram os 20 minutos mais longos da minha vida. Ou ao menos eu pensei que fossem. Voltamos para a minha casa. Eu em prantos. Punhos cerrados. Nem uma palavra saiu da minha boca sobre aquilo. Nem pra ele. Nem pra ninguém.

 

Até o dia 29 de maio de 2001. Eram 11 horas e meu companheiro deveria ter chegado em casa há bastante tempo. No mesmo dia houvera tiroteios num baile local. Éramos então casados e eu, grávida, não pudera acompanhá-lo. Uma da manhã. A orientação das autoridades é “espere 24 horas antes de fazer uma queixa de desaparecimento”. Duas da manhã. Duzentos e quarenta minutos de puro desespero. E cada fibra do meu ser gritava. E meu filho também. Ele chega, um tanto sujo e assustado, às duas da manhã. Tomara outra geral. Desta vez, o mandaram deitar no chão.

 

Nós, mães do gueto, somos todas Ododuá. Somos descendentes daquelas que deram a vida ao mundo. Nós podemos sentir os quatro elementos. Sentimos nossos filhos e companheiros a distancia. A dor deles é a nossa dor.

 

Aprendemos parte com a sábia Nanã. Temos, cada uma, em nós, a Ya Mi Oxoronga. A que dá e decide a vida e a morte. A que sente tudo o que vive e o que morre. Quando um dos nossos se vai. É parte de nós que se vai junto.

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Para uma mãe da periferia, 20 minutos podem ser a diferença entre o alívio e uma viúva. Douglas e Amarildos são nossa tribo. Nossa família. Nossos filhos e maridos. E irmãos e avós. Para uma companheira da favela, 240 minutos não são apenas a passagem das areias de Iroko. Um telefonema às duas da manhã é a diferença entre uma estada fora e uma estatística. Entre um samba de caixa e um caixão.

 

E é por essas e outras coisas que o genocídio da juventude negra é problema feminista SIM!!!

 

Toda mãe preta.
É mãe ancestral. É ciosa de seus filhos.
E é bom que saibam que estamos alertas. E não esqueceremos a morte de nossos rebentos.
Toda preta é a benfazeja e também implacável Nanãe. Somos todas Iá Mi Oxorongá.

Mãe destruidora, hoje te glorifico:
O velho pássaro não se aqueceu no fogo.
O velho pássaro doente não se aqueceu ao sol.
Algo secreto foi escondido na casa da Mãe…
Honras à minha Mãe!
Mãe cuja vagina atemoriza a todos.
Mãe cujos pelos púbicos se enroscam em nós.
Mãe que arma uma cilada, arma uma cilada.
Mãe que tem potes de comida em casa.
Mãe todo-poderosa, mãe do pássaro da noite.
Grande mãe com quem não ousamos coabitar
Grande mãe cujo corpo não ousamos olhar
Mãe de belezas secretas
Mãe que esvazia a taça
Que fala grosso como homem,
Grande, muito grande, no topo da árvore iroko,
Mãe que sobe alto e olha para a terra
Mãe que mata o marido mas dele tem pena.
nã Buruku, mas o poder de Iyá Mi é manifesto em toda mulher, que, não por acaso, em quase todas as culturas, é considerada tabu.
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