Geni é uma revista virtual independente sobre gênero, sexualidade e temas afins. Ela é pensada e editada por um coletivo de jornalistas, acadêmicxs, pesquisadorxs, artistas e militantes. Geni nasce do compromisso com valores libertários e com a luta pela igualdade e pela diferença. ISSN 2358-2618

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Surto & Deslumbramento

Coletivo de Recife. Por André Antônio, Chico Lacerda, Fábio Ramalho e Rodrigo Almeida

 

 

Publicado em 14/12/2015

 

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O Surto & Deslumbramento nasceu em meados de 2012, como resultado das sucessivas e insistentes brincadeiras entre nós quatro durante bebedeiras intermináveis, sempre envolvendo uma vontade de fazer filmes, com ideias absurdas, cujo direcionamento paródico, debochado, artificialista e colorido seguia um caminho distinto da corrente minimalista-documental que dominava, naquele momento, o circuito cinematográfico pernambucano e brasileiro. Um dia, nós resolvemos colocar esse universo de conversas, piadas, obsessões esdrúxulas, matações em prática e logo nos assumimos como um coletivo abertamente gay, com um franco interesse pela quebra da hierarquia entre objetos culturais, sustentando uma proposta que poderia ser qualificada majoritariamente como “independente”.

Sabemos que o termo é bastante problemático. Contudo, para fins de simplificação, poderia ser usado para resumir uma dinâmica de trabalho que tende a se organizar de maneira mais horizontal. Boa parte do nosso processo criativo acontece através de trocas de e-mails ou nas conversas de bar, com uma produção marcada pelo baix(íssim)o orçamento, e projetos que são, em sua maioria, auto financiados. Depois da aceitação por parte do circuito dos festivais (a partir de “Estudo em Vermelho”, em 2013), passamos a esperar a primeira projeção de vulto para liberarmos nossos filmes na internet, aproveitando o buzz. Não rola grana pela exibição, mas alguns festivais dão passagem e hospedagem, o que já garante alguma diversão. Quando rola prêmio em dinheiro, então, é a glória! Mas é isso: basicamente, nos viramos com o que temos e como podemos, sempre gritando “segura essa marimba, monamu!”.

 

 

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A exceção, justamente, é o nosso primeiro longa-metragem, A seita (2015), produção mais ryca do coletivo, uma vez que foi financiada por edital público (ganhamos para fazer um curta, mas fizemos um longa!), e decerto uma realização ainda mais luxuosa quando comparada com a miséria que foi a soma das quantias investidas nas produções anteriores. Diante dessas características, nos deparamos com algumas questões incontornáveis, dentre elas o problema da representatividade, as demandas do “ativismo” e o papel do mercado nos processos de criação.

No que se refere à política, talvez seja possível dizer que buscamos novas inserções dentro desse campo para além da postura militante tradicional, pois nos interessa um modo de intervenção marcado pelo seu caráter suplementar. Com isso, entendemos que, embora de forma não-deliberada (nunca houve algo nem perto de um “programa” a ser seguido), o coletivo está unido pelo interesse em fazer as imagens que deseja ver e dedicar-se a estéticas que não parecem contempladas pelo que predomina hoje em termos de uma “política do audiovisual”. E isso não tanto porque queremos ser do contra (ok, por isso também), não porque queremos aparecer (ok, por isso também), mas sobretudo porque não faz muito sentido trabalhar a favor da redundância.

 

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De qualquer modo, o velho ensinamento de que a originalidade é uma ilusão cedo ou tarde se impõe. A cada novo projeto nós caíamos do pônei, daí subíamos no unicórnio e caíamos de novo, porque éramos lembrados de que há muita gente jogando imagens e sons maravilhosos no mundo e que o “novo” é, para dizer o mínimo, um conceito bastante relativo. Felizmente, a possibilidade de participar dessa algazarra que é a produção cotidiana de artefatos audiovisuais prevalece, e o coletivo termina reencontrando algo ainda mais interessante, que é o prazer de descobrir afinidades em algumas coisas que têm sido feitas hoje e tentar dialogar com elas.

Quanto à questão da representatividade, poderíamos dizer que ela está presente, mas na medida em que nos permite saciar a vontade de nos reconhecermos nos filmes. Se tivéssemos que eleger uma síntese para o que chamamos de representação, diríamos que ela se dá menos na acepção de falar por alguém – “eu te represento nas minhas imagens”, “eu serei sua voz” – e mais como uma espécie de versão degenerada e frívola do grande imperativo contemporâneo de sermos a mídia que não temos. Ainda assim, e para o bem da analogia, seria mais adequado e honesto descontar toda a ética militante contida nesse slogan. E isso por dois motivos: primeiramente, porque existe nas obras do coletivo uma dificuldade quase patológica de levar a sério a demanda para que os filmes sirvam de exemplo; em segundo lugar porque, no fim das contas, crescemos com essa mídia que temos, e não só aprendemos a gostar de parte do que há nela de tosquice e nonsense, como também porque, ao longo do tempo, fomos garimpando algumas pérolas do entretenimento que estaríamos dispostos a defender (e idolatrar!).

Em suma, e para encerrar a questão da representação, é justamente por reconhecermos nossa incapacidade de falar por pessoas e grupos, ou seja, de representá-las, que partilhamos de um sincero entusiasmo pela heterogeneidade de propostas e lugares de fala que têm despontado na produção contemporânea, ainda mais quando isso ocorre a despeito das barreiras muito severas colocadas pelos mecanismos de legitimação ou pelos critérios correntes de “relevância” e gosto.

 

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Por fim, dado que se tornou lugar comum – ou, se não é ainda, deveria ser! – o fato de que cinema e dinheiro andam de mãos dadas, seria ingenuidade dizermos a essa altura que trabalhar de maneira colaborativa e autogestada nos desobriga de considerar as dinâmicas do mercado (e A Seita vem sendo muito importante para amadurecermos essa relação). A questão dos recursos se impõe mesmo quando não há dinheiro vivo em jogo (e, nesse quesito, cabe-nos reconhecer que somos privilegiados, pois temos nossas fontes outras de sustento). A lógica de mercado toma parte em quase tudo, inclusive no que não é feito com o objetivo de vender. Diante disso, não há receita pronta, de modo que cada novo projeto postula suas próprias perguntas no que se refere a produção, financiamento, circulação e visibilidade. Não há muitas dívidas a serem cumpridas, felizmente, nem promessas ou princípios considerados inegociáveis. Talvez, por aí é que seja possível vislumbrar algo como uma liberdade e, ao mesmo tempo, continuar participando do jogo.

 

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Imagens retiradas dos curtas Estudo em Vermelho, Metrópole, do teaser de Virgindade e do Flickr do Surto & Deslumbramento.

 

 

 

 

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