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Vista a saia se for homem!

Os únicos que podem se sentir humilhados são os machistas”. Por Clarice Val, de Buenos Aires

 

 

Publicado em 08/12/2015

 

 

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“Homens de saia. Homens que se colocam no lugar da mulher. Homens que dizem que hoje ‘somos todos mulheres’ e que estamos em risco. Homens que se orgulham das mulheres e usam uma das peças do seu guarda-roupa como símbolo. Por isso, nos autoconvocamos com o lema ‘vista a saia se você é homem’ e a etiqueta #unomasXniunamenos”. No mês da primavera das mulheres no Brasil, a Argentina foi palco de uma passeata divulgada através das redes sociais, no início de novembro, com a hashtag #unomasporniunamenos (um a mais por nem uma a menos), e chamou a atenção graças à seguinte provocação: ponéte la pollera si sos hombre (vista a saia se você é homem).

 

 

O crime contra a ativista trans Amacay Diana Sacayan, gestora das leis do casamento igualitário, Identidade de Gênero e Vaga Laboral para trans na Argentina, foi a principal motivação da passeata. Diana foi assassinada em seu apartamento em Buenos Aires, no dia 13 de outubro, na mesma semana em que foram contabilizados nove feminicídios na capital argentina. A caminhada dos homens de saia em silêncio foi um dos desdobramentos importantes da grande manifestação #niunamenos (nem uma a menos), ocorrida no dia 3 de junho deste ano, que reuniu 200 mil pessoas na frente do Congresso Nacional, entre elas a própria Diana Sacayán.

 

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Román Mazzilli, professor de biodança e comprometido com a luta feminista, foi o idealizador da passeata, que logo contou com o apoio de cidadãos e de alguns movimentos sociais, entre eles o Colectivo de Varones Antipatriarcales, que no final da caminhada organizou uma grande roda e leu um manifesto, ironicamente em frente ao símbolo fálico da cidade, o Obelisco.

 

 

“Os únicos que podem se sentir humilhados em caminhar de saia são os machistas. Ou o machismo que se aninhou em cada um de nós. Necessitamos de coragem para fazê-lo. Necessitamos das mulheres para fazê-lo. E, sobretudo, necessitamos parar o feminicídio”, disse Mazzilli através do manifesto que convocou a passeata.

 

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Pollerudo!

 

 

Durante a caminhada pela Av. Corrientes em Buenos Aires, os homens vestidos de saia tiveram o apoio de mulheres, meninos, meninas e até bebês acompanhadxs pelas mães. Minha filha de 2 anos e meio, Uma, fez a sua estreia em passeatas feministas e movimentos sociais, levando a tiracolo o seu macaco de estimação, Horhe, apelidado carinhosamente por mim de “mono queer”. Outras mães e pais também levaram pequenas e pequenos, alguns deles, meninos, também vestiram saia, e levaram cartazes. As frases pediam justiça por Diana Sacayan, mas também ressaltavam a importância da liberdade feminina: “nós as queremos vivas, livres e felizes”; “nós, homens antipatriarcais, dizemos basta à violência”; “se tocarem em uma, tocarão em todos nós”; “machismo assassino”.

 

 

A polícia acompanhou o percurso e, vez por outra, algum descontente que passava de carro, gritava da janela: “salí del medio de la calle, pollerudo! (saia do meio da rua, saiudo!)”. Na gíria argentina, pollerudo é um pejorativo machista que designa o homem que vive embaixo da saia da mãe ou da mulher; um submisso, dominado que não toma decisões por conta própria. Ou seja, ser pollerudo é, em grande medida, levar em consideração os desejos e anseios da mulher, ter a capacidade de escutá-las e apoiá-las em suas dores. Nesse caso, sim, estávamos cercadas deles, muito bem acompanhadas.

 

 

“Isto não é um protesto, é um pedido a nós mesmos. Estamos doentes de amor, não sabemos como nos relacionarmos com o outro, matamos à pessoa que queremos amar, cremos que é nossa propriedade uma pessoa que é livre, como nós. Temos que mudar”, disse Mazzilli.

 

 

O movimento contou com a adesão de coletivos de homens em outras capitais da Argentina, como La Plata, Mar del Plata, Tucumán, entre outras; e chegou a mobilizar grupos feministas no México, que manifestaram seu apoio ao movimento, e na Colômbia, onde estão organizando sua versão da passeata na cidade de Barranquilla, no dia 25 de novembro.

 

 

 

Reflexos do #NemUmaaMenos

 

 

Dois dias depois das manifestações #NemUmaaMenos, ocorridas em junho deste ano, a Secretaria de Direitos Humanos do Governo Federal argentino criou um registro de feminicídios, para sistematizar e acompanhar os casos de violências de gênero. Nesse registro estão especificados os feminicídios íntimos, não íntimos, familiares e infantis, bem como os vinculados ou por conexão e os sistêmicos, que se dão em contexto de crimes massivos. Também estão incluídos os crimes em contextos de tráfico de pessoas; por prostituição; por mutilações sexuais e homicídios agravados pelo gênero em particular, conhecidos como crimes de lesbofobia ou transfobia.

 

 

Segundo dados da ONG Casa del Encuentro, 277 mulheres e meninas foram vítimas de feminicídios na Argentina em 2014, o que deixou 330 pessoas órfãs de mãe. Em 56% dos casos, o suposto feminicida era companheiro ou ex companheiro da vítima; em 20% o agressor não tinha vínculo com a mulher; e em 7% a relação entre ambos era familiar.

 

 

Em 4 de novembro, um dia antes da passeata dos homens de saia, o Congresso Nacional aprovou uma lei que garante assistência jurídica gratuita, através de um advogado, às vítimas da violência de gênero na Argentina. A lei de autoria do deputado federal Juan Manuel Aval Medina é outro avanço atribuído às mobilizações coletivas em todo país, que foram eco da manifestação de junho. Os hermanos avançam vestidos de saia nessa primavera das mulheres, que chegou colorindo as ruas de ambos países, mobilizando a sociedade e garantindo direitos às vítimas de violência de gênero na Argentina.

 

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Clarice Val é jornalista, baiana, professora de Yoga, terapeuta floral e mãe de Uma. Filha de Yemanjá com Xangô, aprendeu a viver longe do mar e a fazer acarajé. Adora Jung, mas tem uma queda irresistível por Lacan e o lado feminino da força. Está se formando em consultoria psicológica em Buenos Aires, onde vive há mais de uma década.

 

 

 

 Ilustração: Mariana Leme

Fotografia base da ilustração: Flávio de Carvalho

Fotografias Marcha: Jerónimo Alberto Delor

 

 

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