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O Lampião da Esquina
Primeiro jornal gay de circulação nacional fez história. Por Pedro “Pepa” Silva
Quando, em fins dos anos 70, um jornal assumidamente gay surgiu nas bancas, o Brasil era um país que ia sobrevivendo a doses pequenas de esperança. A propalada “abertura política” ia se constituindo como um horizonte do possível. A crença de que algo aconteceria ia ganhando mais força.
Para as bichas (termo que convivia com a deliciosa forma aportuguesada “guei”), era uma época interessante. Digamos que elas estavam mais faladas na imprensa. Desde 1976, no jornal Última Hora, circulava a “Coluna do Meio”, assinada por Celso Curi, toda dedicada ao público homossexual. O sucesso da coluna representou um considerável aumento nas vendas do periódico – e incentivou a criação de outras colunas semelhantes em jornais. Em 1977, a revista Veja (que era bem diferente dessa fábrica de chorume que se vê hoje) fez uma longa matéria sobre o que chamou de “um gay power à brasileira”. Já a Manchete falou em “acordes de uma liberação gay”. No fim daquele ano, um fato importante: o editor do jornal Gay Sunshine (EUA), Winston Leyland, passou pelo Brasil atrás de autores para uma antologia de literatura gay latino-americana. A visita representou uma oportunidade de articulação dos homossexuais e foi o pontapé inicial para a criação de um jornal que fez história: o Lampião da Esquina.
Por trás do tabloide, estavam o jornalista João Antônio Mascarenhas (articulador da ideia do jornal e que convidara Leyland para vir ao Brasil), Aguinaldo Silva (que na época não era autor de novelas, mas repórter policial e figurinha importante na imprensa alternativa), o jornalista e crítico musical Antônio Chrisóstomo; o artista plástico e escritor Darcy Penteado; o crítico de cinema Jean-Claude Bernardet; o escritor João Silvério Trevisan; o antropólogo Peter Fry, além de Adão Costa, Clóvis Marques, Francisco Bittencourt e Gasparino Damata, todos jornalistas e escritores. Esse time compunha o “conselho editorial” do jornal.
Detalhes se embaralham na memória dos participantes. Alguns dão conta de que as primeiras reuniões se deram no apartamento de Mascarenhas em Copacabana, outros, que elas ocorreram na casa de Darcy Penteado. Aguinaldo Silva diz que o nome inicial seria Esquina e que o “Lampião” do título nada tinha a ver, em princípio, com Virgulino Ferreira da Silva, mas se referia mesmo ao instrumento de iluminação – a associação com o símbolo do “macho nacional” teria nascido depois e dado origem ao logotipo estilizado lembrando o cangaceiro…
O primeiro número (“Edição experimental – número zero”) saiu em abril de 1978 apenas com o nome de Lampião. A partir do número um, lançado em maio, surgiu o complemento e o jornal teve mais de 30 edições sob o nome de Lampião da Esquina.
Aquele número zero teve uma tiragem por volta dos 10 mil exemplares. Entre diversos outros textos, havia um ensaio de Darcy Penteado sobre homoerotismo na arte, um texto sobre García Lorca, uma reflexão sobre o sentido da imprensa underground, uma longa matéria sobre a demissão de Celso Curi do Última Hora, um poema de Leila Míccolis. O primeiro editorial dava o tom do desejo do jornal. Intitulado “Saindo do gueto”, evidenciava seu lugar na luta pela visibilidade dos homossexuais:
o que Lampião reivindica em nome dessa minoria é não apenas se assumir e ser aceito – o que nós queremos é resgatar essa condição que todas as sociedades construídas em bases machistas lhes negou: o fato de que os homossexuais são seres humanos e que, portanto, têm todo o direito de lutar por sua plena realização, enquanto tal
Ao lado dessa preocupação de deixar o gueto, havia a dúvida sobre como articular as reivindicações, anseios e desejos numa sociedade ainda profundamente desigual e padecendo de outros tantos problemas estruturais graves. Assim, Lampião se queria um jornal de minorias.
Essa ideia de se pensar as minorias e a questão homossexual num panorama mais amplo fica mais evidente no editorial do número um do jornal. Assinado pela colaboradora Mariza, ele tem o sintomático título de “Nossas gaiolas comuns”:
Uma metalúrgica que luta pelos seus direitos salariais no sindicato, mas aceita as imposições ditadas pela moral sexual dominante nas relações com seu companheiro, ou um bancário que se engaja no movimento de liberação dos homossexuais, mas ignora a luta pelos direitos sindicais, estão alheios, um quanto o outro, da luta mais ampla.
A noção de “luta mais ampla” surge como desejo, como horizonte, mas também como um fantasma para qualquer veículo de imprensa. Como articular lutas distintas? Daí que, parafraseando aquele russo, surgia a questão: como fazer? E quem quiser saber como isso foi feito no Lampião da Esquina (e foi muito bem feito, diga-se) deve ir imediatamente ao site do Grupo Dignidade verificar todas as edições digitalizadas do jornal!
Nos idos de 1981, a publicação chegou ao fim. Houve muitos fatores que resultaram nisso – conflitos editoriais internos, questões administrativas (especialmente relacionadas à publicidade e à distribuição) e culturais, como o desejo de consumo da pornografia (a grande novidade da época, especialmente a partir da liberação do filme O império dos sentidos). Há que se pensar mais a respeito de todos eles. De todo modo, o Lampião ficou na história como um bem-sucedido “jornal de viado” (como alguns jornaleiros chamaram), que tentou articular e integrar vozes – algo que está no gene desta Geni.
Para saber mais:
Aguinaldo Silva relembra o Lampião da Esquina, em depoimento ao projeto “Resistir é preciso”: http://www.youtube.com/watch?v=2z9uyCRF7ic.
GREEN, James N. & POLITO, Ronald. Frescos trópicos: fontes sobre a homossexualidade masculina no Brasil, 1870-1980. Rio de Janeiro: José Olympio, 2004.
KUCINSKI, Bernardo. Jornalistas e revolucionários. Nos tempos da imprensa alternativa. São Paulo: Edusp, 1991.
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