resenha

Dançado rumba com Maria Madalena

Sobre Amor à Vida, telenovela escrita por Walcyr Carrasco. Por Otavio Chamorro



“Não se pode considerar alienante
um programa que fala de sentimentos,
como o amor e o desejo de liberdade,
comuns a todos os povos”


Marta Rojas, cineasta cubana



A bicha do prédio ao lado gritou, a timeline do Facebook explodiu, o Whatsapp bombou. Félix e Niko haviam acabado de dar um beijo apaixonado. Não vai ter Copa e eleições que ofusquem o último capítulo (mais precisamente a sequência final) de Amor à vida. Especificamente nesta novela, escândalo seria não ter o beijo. 


***


Amor à vida foi concluída cumprindo sua principal missão de interromper a queda vertiginosa da audiência do principal produto cultural brasileiro: a instituição novela das 9 da emissora hegemônica. Parte do sucesso se deve ao que a maioria dos colunistas de teledramaturgia comentaram na reta final da trama. Amor à vida contou com atuações primorosas, talvez até acima da qualidade do texto e da direção de cena. Ressalto Elizabeth Savalla, Tatá Werneck e Marcelo Flores. Incríveis em cada cena. Mas, quando daqui a alguns anos olharmos para trás e a novela passar por nossas cabeças, nossa primeira memória será Félix.


Só aí já temos um fenômeno. Hoje, quando nostalgiamos no bar ou no Twitter, lembramos de Carminha, Nazaré, Odete, Paulinha, Bia Falcão, Maria de Fátima. Tanto quem escreve como quem assiste a novelas entende que, se a história conta com uma ótima (pérfida, nefasta, ardilosa, desvirtuosa) vilã, metade do caminho está andado para seu êxito. Amor à vida até teve uma grande antagonista, a vingativa Aline (que coube como uma luva a Vanessa Giácomo). E se todos os holofotes se desviam para Félix, eu poderia dizer que um certo liberalismo conservador roubou a cena. A inovação se mesclou com o dramalhão. A naturalização da homossexualidade se fundiu com o rebaixamento do que se considera feminino. O “amamos odiar” se transformou em “odiamos amar”. Mas nada disso. Vamos lembrar de Félix porque conviver com ele foi extasiante. Ou melhor, foi do caralho. 


O peso na mão do texto e o exagero na composição de muitas cenas não desmereceram o personagem brilhante, magistralmente interpretado por Mateus Solano. Félix passou por todos os estágios de um vilão contemporâneo de novela. Para fazer rir, a “língua bifurcada” e o sarcasmo com o cristianismo substituíram muito bem a caricatura exclusivamente estereotipada de obras anteriores. Para fazer chorar, uma outra forma de provocar empatia. A compreensão das razões de ser maligno e a redenção final. Mas, convenhamos, teve redenção maior que a da emissora? E do próprio autor e equipe, achincalhados por ter um texto inverossímil, e que concluíram a história com uma belíssima última cena. O beijo era um grito guardado na garganta, um símbolo de que a população do país precisa aceitar, respeitar, tolerar. A foto do beijo, que dominou as redes na noite de 31 de janeiro, é mais forte que qualquer bandeira do arco-íris.


Não fosse o beijo tão aguardado, como uma espécie de messias das LGBT, ele seria coadjuvante diante da continuação da cena: o filho que declara o amor ao pai e o pai que retribui pegando na mão do filho, a quem desprezou a vida inteira. A música orquestrada, o sol sobre o mar, as lágrimas de emoção, os planos contemplativos. E pensar que o título provisório da novela era Em nome do pai... A referência patriarcal e cristã deu lugar a um pai homofóbico que enfim se rende ao amor do filho gay.


De qualquer forma, um grand finale como não se via havia muito tempo. Todos os problemas narrativos foram pras cucuias com o êxtase provocado pela cena que concluiu os 200 e tantos capítulos.


***


Quando os realizadores da novela perceberam que o problema de uma pintosa enrustida serelepear que “salgou a Santa Ceia” era mais a repetição fastiosa do termo do que um eventual choque para a tradicional família brasileira, Félix foi à forra. O personagem mostrou que o produto audiovisual mais consumido do país suplica por renovação. A mesmice do casal protagonista perde cada vez mais espaço e atenção. Prova disso foi o discurso cafona de Paloma com o recém-nascido cabeludo no colo. Bruno e ela entraram para o clube dos protagonistas que não encerram com chave de ouro sua história.


Os autores têm conseguido ampliar as nuances dos vilões com mais maestria do que dos heróis. Os antagonistas, mesmo na caricatura, ficam mais complexos e, por consequência, mais interessantes. Gongam a estrutura maniqueísta e melodramática e mantêm o telespectador envolvido com a narrativa. Numa era de conteúdo digital, descartável e imediato, a instituição novela carece de histórias mais inovadoras, de personagens mais inteligentes. Quando Walcyr Carrasco criou e sustentou uma bicha esperta, a novela se consagrou.


Se Félix foi da vilania ao heroísmo, as relações intrapessoais e familiares foram trabalhadas para dar credibilidade à sua jornada. Para conquistar a confiança, o carisma e a torcida da audiência, o personagem ganhou uma humanidade poucas vezes vistas em um personagem gay de novela. Seja na mãe que apoiou seu namoro ou no triângulo amoroso dos três homens (como foi bom torcer pra Lacraia do Olho Colorido se estrepar). Na construção do arco dramático, os sentimentos de Félix foram a fundo, cavucados até a raiz. Ressentimento, cobiça e amargura deram lugar a histórias críveis e íntimas ao público. Por isso, o beijo final não saiu nada escandaloso. Saiu como todo beijo gay é de verdade: natural. 


Mas como todo drama tem seu comic relief, não pode faltar o gay-pastiche, com Félix sendo paquerado pelo mecânico que queria ele de cueca vermelha porque “caiu na rede, é peixe”. Acabou que quem caiu na rede, sob olhares desconfiados do núcleo pobre, foi uma T figurante, cuja única fala foi dizer que não era operada.


Por mais que muitos analistas forcem uma interpretação de “emissora moderninha”, o produto que vai ao ar ainda guarda um formalismo muito forte. Avanços tecnológicos, estéticos e temáticos correm a galope na instituição novela. Basta relembrar do casal lésbico explodido no shopping em Torre de Babel, há 15 anos, após pesquisas indicarem uma forte rejeição àquelas mulheres bem-sucedidas e felizes juntas. Mas a evolução da novela ainda permanece um passo atrás da sociedade, em tempos em que a internet disponibiliza sempre o passo à frente. Amor à vida deu um salto em consolidar a diversidade sexual, mas nada de escandalizar a família reunida. Um exemplo foi uma cena com um diálogo à mesa de café da manhã: Pilar inferiu que gay não tem marido, tem parceiro. Niko concordou. Em cena posterior, a sogra não sabia se chamava o outro de genro ou nora. Aos risos, ele prefere ser chamado de companheiro.


Apesar do didatismo e do cristianismo explícito do autor, suas características mais irritantes, ele soube muito bem moldar o plot de Félix para atingir o clímax do homem que, no fim das contas, só queria ser amado para amar.


***


A partir de um olhar otimista, a evolução de discurso e conteúdo na mídia televisionada sopra favoravelmente aos direitos humanos. Ainda em 2013, um jornalista da Rede Globo opinou ao vivo que quem precisa de cura não são os gays, mas a Comissão de Direitos Humanos, então presidida por Marco Feliciano. Poucos anos antes, Insensato coração, de Gilberto Braga e Ricardo Linhares, condenou veementemente a homofobia, com assassino preso e debate intrafamiliar sobre a aceitação de um filho gay. Em Amor à vida, mesmo mantendo-se a pedra fundamental do estereótipo, os personagens gays ganharam mais humanidade, dramas pessoais mais verossímeis e, por isso, conquistaram identificação com o público.


No entanto, assim como acontece com muitos grupos minoritários politicamente, vítimas históricas de violência, preconceito, discriminação e depreciação, xs LGBTs buscam um realismo do seu cotidiano (como se houvesse só um) na trama da novela. É uma busca incessante por se sentir plenamente representado nos personagens. São reclamações de que a bicha é muito rica, ou muito má, que nenhum viado chama a mãe de mami poderosa nem joga a sobrinha recém-nascida na caçamba de lixo, e que tem que ter beijo como teve na novela de ditadura da outra emissora. Aí vejo que outro problema é mais forte que a construção dos personagens na novela: a dificuldade de leitura, análise e crítica dos meios de comunicação.


Na escola (nem mesmo quando se termina o ensino médio num colégio de qualidade), o currículo não estimula a problematização do discurso da mídia. O resultado é uma insatisfação geral, porque a novela não é real e representativa o suficiente, a ponto de a emissora ter que colocar nos créditos finais de toda sua dramaturgia um aviso de que aquilo é um produto cujo compromisso é exclusivo com o entretenimento. É um problema de desconhecimento generalizado do que é uma concessão pública de sinal de radiodifusão. Ou o completo desinteresse em assistir ou influenciar na pauta dos canais públicos. É dar à novela um status que ela não tem, ou não deveria ter. É querer que a novela resolva problemas muito mais graves e profundos da estrutura cultural e educacional do país. É culpar a novela pela superficialidade de capacidade crítica da sociedade.


***


Amor à vida deixa como legado uma importante contribuição de aceitação de LGBT. Na sociedade e na família. Entre uma idosa jogada barranco abaixo e receitas secretas para deixar alguém cego, e entre fazer uma peruca com os cabelos de Sansão e soltar fogos no sermão da montanha, houve também rechaço ao gay que não assumiu o marido na empresa, incentivo ao gay que queria ser pai, declarações de familiar dizendo que “não importa se você é gay, eu te amo mesmo assim”. Em resumo, houve o melodrama apoteótico de pai homofóbico e filho gay perdoados um no outro, e o beijo com gosto de alma lavada. Não tão quente e sensual como o de Amor e revolução, mas radicalmente mais significativo pela visibilidade e construção dos personagens.


Se o discurso foi muitas vezes machista (como o rebaixamento das piriguetes), estigmatizante (a gorda sendo achacada e até seus amigos entrando na brincadeira), homofóbico (o pai dizendo que queria que o filho tivesse morrido ou a loira boazuda chamando o outro de bicha quá-quá), o discurso integral da novela, verbalizado ou por contexto, aponta para uma sociedade menos discriminatória. E essa mensagem ganha força a cada história nova. Inclusive na próxima. Que lembremos de Félix e Niko (do Eron, não. O Eron é uó) com um sorriso de canto, daqueles bem ordinários e sarcásticos, todas as vezes que tivermos a sensação de que fizemos pole dance na cruz, de que sambamos no Santo Sepulcro ou de que ensinamos funk a Salomé.



Estrela