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Educação popular feminista em direitos

Rute Alonso, integrante da União de Mulheres de São Paulo e coordenadora do curso das Promotoras Legais Populares, fala sobre o curso das Promotoras Legais Populares. Por Gabriela Cunha, Lia Urbini e Olivia Pavani

 

Publicado em 31/01/2016

 

 

 

Nessa edição especial sobre educação buscamos entrar em contato com experiências protagonizadas ou direcionadas para quem está aí na fronteira do reconhecimento, xs minorizadxs, e no caso dessa conversa, quem está de escanteio em relação à educação, à justiça burguesa e ao direito em geral. Por isso, entramos em contato com Rute Alonso, umas das coordenadoras do curso das Promotoras Legais Populares, para conhecer um pouco mais sobre esse trabalho.

 

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Você poderia contar um pouco da sua trajetória pessoal, dizer como entrou para a União de Mulheres do Município de São Paulo e no projeto Promotoras Legais Populares (PLPs)?

 

Sou advogada não atuante, militante LGBT, feminista e promotora legal popular da 17ª turma. Eu entrei em contato com a União de Mulheres em 2010, então é bastante recente minha história por lá. Morei um tempo fora do Brasil e nessa época comecei a me dar conta de uma série de coisas. Era um incômodo inominado, que de repente fui nomeando: machismo, sexismo, o lugar da mulher na sociedade, especialmente o da mulher lésbica, opressão via religião e coisas do gênero.

 

Em meados de 2009, já de volta ao Brasil, minha parceira da época comentou “ah, tem grupo de mulheres feministas, elas têm um curso de leis”. Eu fui atrás e descobri a União e o curso das PLPs. A União organizou um seminário para falar sobre perspectivas do feminismo. Lá conheci a Amelinha Teles, a Terezinha Gonzaga, a Crimeia [Almeida], a Margareth Rago, a Arlene Ricodi, e pensei: “putz, é aqui!”. Comecei a ficar ligada quando a União fazia atividades e em 2010 me inscrevi no curso. Depois de formada, recebi o convite para participar da coordenação e acabei compondo a diretoria da União. A partir de então estou cada vez mais envolvida com esse trabalho.

 

Gostaríamos de conhecer um pouco mais sobre as experiências informais ou  extrainstitucionais, como quisermos chamar, de educação com recorte de gênero. A União de Mulheres realiza esse curso há tantos anos e com bastante sucesso. Ele está na 22ª edição em São Paulo, certo? Você poderia nos contar brevemente sobre os objetivos do curso?

 

Acho importante falar um pouquinho sobre as origens desse movimento. O movimento feminista no Brasil se envolveu bastante nas lutas contra a ditadura, pela redemocratização, participou ativamente das Diretas Já. Mesmo antes, ainda em 1975, a ONU declarou o ano como o internacional da mulher, e, numa perspectiva de abertura política ainda incipiente, as mulheres se aproveitaram e escancararam o feminismo público e organizado no país. A União surgiu em 1981, mas antes já existia diversas iniciativas feministas,  como os jornais, o Brasil Mulher e o Nós Mulheres. Foi uma crescente. Na época da Constituinte, nós tivemos o “lobby do batom”.

 

Saltando para 1992, foi realizado um encontro do CLADEM [Comitê Latino-americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher] onde houve uma socialização de experiências de companheiras de outros países da América Latina e do Caribe que tinham construído cursos sobre legislação para mulheres. Na época, o pessoal da União tava lá, e também o Grupo Themis, do Rio Grande do Sul. Os dois grupos se interessaram muito pela ideia e foram se articulando, organizando seminários, vendo como efetivariam o curso. Em 1994, as mulheres da União deram início ao curso, a partir de um seminário com duração de cerca de 60 horas e um número reduzido de participantes.

 

Sobre o objetivo do curso PLPs, a gente discute bastante o assunto, mas de uma forma geral podemos dizer que nos propomos a realizar uma educação popular feminista sobre direitos, numa perspectiva bastante autônoma. Nosso interesse seria o de alcançar as lideranças comunitárias, mulheres que estão aí na lida, ou que já estão organizadas em algum coletivo ou associação. No entanto, o perfil do curso acaba atraindo diversos grupos de pessoas, universitárias, mulheres que já passaram ou estão passando por situação de violência. Às vezes tem o boca a boca, uma mulher que já foi promotora legal popular e fala para outras: “olha, fiz o curso, gostei”.

 

Como são estruturados os cursos e como funciona a dinâmica dos encontros?

 

Nossa ideia é pensar de que forma a grade curricular e a dinâmica do curso em geral permitem que essas mulheres entrem em contato com um universo desconhecido para elas. A nossa Constituição, por exemplo, está aí há vinte e tantos anos, mas não necessariamente é algo conhecido pra gente.  A ideia é pincelar algumas questões de forma a compreender o que é o Estado e quais são as ferramentas que ele disponibiliza pra efetivação de direitos. Pensando nos direitos específicos das mulheres, nossa proposta é chamá-las para a luta e fazer com que elas tragam as lutas nas quais elas já estão inseridas para dentro do curso. Um compartilhamento. Pensar de que forma essa mulher se fortalece no nosso meio e como elas podem levar o que elas estão aprendendo ali para os seus espaços.

 

O curso não tem uma perspectiva acadêmica. Eu posso recomendar bibliografia, fazer uma contextualização sobre o que é o Estado, mas é um link muito mais direto e prático. Por que é que eu preciso entender o que é esse Estado? Porque eu também tenho que saber onde e o que demandar numa situação x. Com quem eu falo? Governo do Estado, Prefeitura ou Governo Federal? Não existe só a questão objetiva de trabalhar o fortalecimento dessa mulher e seu reconhecimento como cidadã, mas tem também o partilhar das histórias dessas mulheres, suas narrativas. Muitas vezes, uma situação objetiva está sendo discutida e ela se relaciona com uma história que a pessoa já viveu. Esse compartilhamento pode vir à tona no grupo e então a gente tem que fazer essa administração.

 

Buscamos fortalecer essas mulheres para que elas consigam se articular, organizar melhor seus pensamentos e se expressar em diversos registros.  A gente sabe que para demandar as coisas você precisa saber concatenar os pensamentos de uma determinada maneira, ter uma boa expressão. Então a gente acaba estimulando as alunas: “É um grupo pequeno, mas usa o microfone. Faz um resumo de uma história, ou de uma notícia que te impactou”. Tudo para essa mulher não ter medo de microfone ou de expor suas ideias, sua opinião. E também para ela se analisar em relação à partilha, ter uma perspectiva coletiva. Não é um curso para eu me formar e rivalizar com alguém, é uma formação coletiva. Nós que participamos da coordenação, as pessoas que vêm ali pra fazer a troca porque estudaram um pouco mais sobre algum tema, todxs aprendem nesses espaços. Sou suspeita para falar, mas é muito bom.

 

Em que local o curso começou a acontecer e em quantos lugares ele acontece hoje?

 

A iniciativa foi do grupo Themis, em parceria com a União de Mulheres de São Paulo. Mas aí foi espalhando com o pessoal de Campinas, Sorocaba, São José dos Campos. Num dado período, por meio de um incentivo, foi possível replicar o curso pelo Brasil inteiro. Ele não necessariamente se manteve em todos os lugares, mas não é difícil encontrar uma experiência em Belém, outra no Ceará. Tem mulheres do sertão do Pajeú que estão levando o curso para lá. Atualmente temos mais proximidade com as meninas de Curitiba, na Universidade Federal do Paraná; as meninas de Brasília, na Universidade de Brasília; Campinas; Sorocaba; e na, região do ABC, com companheiras em São Bernardo, São Caetano, Mauá e Santo André. O Geledés também tem um núcleo bastante forte em São Mateus. Elas são bastante atuantes, acabaram acompanhando mulheres em situação de violência, dando orientação.  Houve um multiplicar.

 

Em alguns casos, a própria prefeitura organizou o curso, e aí, às vezes a gente tem algumas questões. Nesse modelo nem sempre as mulheres têm a liberdade de poder criticar o Estado. Faz parte desse processo de se compreender cidadã conhecer os mecanismos e os espaços onde se pode fazer essa crítica, por exemplo.

 

Tem lugares em que o curso é realizado em parceria com igrejas, ou com movimentos relacionados à igrejas. Nesses casos, é necessário uma delicadeza para pensar como a gente vai falar de aborto numa situação dessa.

 

 

Como são feitos os contatos e como são as relações entre as cidades e lugares em que o curso é realizado?

 

Nesse momento, a gente até está tentando pensar de que forma unificar um pouco algumas coisas. Existem alguns princípios comuns, apesar de termos essa pluralidade de cursos. Mas não queremos homogeneizar o curso, a ideia não é essa. Para nós, a diversidade é que é o bacana.

 

Em Campinas, por exemplo, elas têm um trabalho muito forte com prostitutas, com mulheres negras, e com mulheres que estão em ocupações. O ideal não é apagar essas características, muito pelo contrário, mas então partir de onde? Tem tópicos obrigatórios, a gente precisa falar de aborto, descriminalização e legalização, por ser uma pauta imprescindível dentro dos direitos das mulheres.  Nesse sentido, tem mulheres que chegam na gente e falam “quero uma cartilha pra levar pra minha cidade.”.

 

Estamos conversando com umas meninas do interior de São Paulo, Piracicaba, elas querem levar o curso prá lá. E às vezes nosso problema é como chegar até os lugares que queremos alcançar. Mas a gente vai contando com as parceiras e acaba chegando.

 

Então dá pra dizer que de alguma forma há uma rede nacional?

 

Ano passado nós fizemos um seminário com companheiras de alguns estados, aquele que as meninas do sertão do Pajeú vieram. Teve as companheiras de Curitiba e as de Brasília. Tem gente no Mato Grosso que quer organizar.

 

Queremos organizar uma associação, mas ainda estamos discutindo com qual intenção. Não é burocratizar, não é uma associação em termos jurídicos, mas uma maneira de conseguir fazer com que esse contato fique mais fácil. Uma coisa que a gente discute é isso, “a gente pode falar que é nacional?”. Em todos os estados você pode ouvir sobre alguma experiência, podemos falar que tem muita promotora legal popular espalhada pelo Brasil (nossa estimativa está em torno de 5 mil). Na elaboração do novo site [por enquanto, as informações sobre o curso podem ser acessadas pelo site da União de Mulheres] a gente vai tentar organizar algum modo da pessoa se identificar e entrar num lugar onde possa conversar com outras promotoras de outros espaços, de outros estados, com outras experiências. Então há uma tentativa de unir os pontos.

 

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Vocês dizem que o curso das PLPs não é um mero curso sobre direitos. Vocês incluem uma abordagem multidisciplinar sobre o direito, partem do pressuposto da necessidade da  democratização do acesso aos saberes jurídicos, e o próprio fato do curso ser uma política afirmativa se alinha com um questionamento de base em relação ao elitismo do mundo jurídico. Você poderia falar um pouco sobre isso, e especificamente sobre as consequências para as mulheres, já que dentro desse elitismo as mulheres sofrem uma camada a mais de exclusão?

 

Acho que a gente tem alguns fetiches, e o direito está nesse espaço da sociedade, o espaço do doutor. Doutor por quê? A pessoa fez 5 anos de uma graduação como muitas outras, e o doutorado funciona apenas para a academia, e não pra vida. Além disso, tem o imaginário que é construído. Quando uma pessoa diz “sou advogado, sou promotora, sou defensora, sou juiz” isso já é um argumento de autoridade. Existe uma linguagem que é muito específica, o famoso “juridiquês”, uma vestimenta própria. Em suma, há um espaço juridico que muitas vezes afasta as pessoas.

 

Quando estamos falando de educação feminista popular em direitos, a tarefa é como a gente desmistifica isso. Em casos de violência contra a mulher, por exemplo, agora já não precisa da representação, mas quando precisava, a mulher chegava para elaborar o boletim de ocorrência, havia a necessidade de representação mas não explicava pra mulher o que era isso, que processo era esse. Xs funcionárixs registravam o que queriam e entregavam um boletim que não ia dar em nada, porque a denunciante não tinha sido instruída a dar continuidade no processo, dizendo “eu quero sim que isso vire um inquérito, que seja investigado”. Essa mulher saia de lá pensando “tá, levei meu problema e agora está na Justiça”, quando na verdade não, ela só fez um registro, ela contou uma história que ficou arquivada. Em seis meses, se ela não fizer, nada acabou.

 

Por isso é muito importante que esse curso não adote posturas acadêmicas. Não vamos falar naqueles termos esquisitos. Ao contrário.  Ali a gente vai tentar fazer com que esse Direito que está no imaginário venha para a Terra, para a realidade das pessoas. Para quando alguém lhe falar alguma coisa, que essas mulheres consigam decodificar esse sinal, mesmo não sendo advogadas. Quando a gente pensa no perfil das pessoas que vão ser as professoras, que vão compartilhar ali, não é um perfil “nossa, ela é doutora, dá aula em latim”. Não é isso que a gente quer. Precisamos de alguém que saiba falar com as pessoas, que faça essa tradução e entenda qual é a situação daquelas mulheres.

 

O direito está muito mais próximo do que a gente acredita e quando a gente traduz todo esse juridiquês, ele fica muito mais simples. De que forma eu consigo articular pra continuar não sofrendo violência? Quando alguém bate, você se defende, é instintivo, mas o direito não permite isso, porque ele coloca todo um imbróglio, uma formalidade. Como no curso a gente parte de um universo muito plural (você tem desde mulheres analfabetas até mulheres que estão no curso como se ele fosse um curso de extensão, ou a pessoa que precisa de um certificado de tantas horas pra concluir o curso da graduação), na troca cada mulher começa a conhecer as palavras da outra, a traduzir as coisas, a entender que aquilo que aconteceu com ela, a história da mãe dela, pode ser visto de outra forma. Podia existir outra saída se ela tivesse conseguido articular de outro modo. É um momento muito rico.

 

E também é uma crítica ao que está posto. Não é simplesmente: “abram a página na cartilha”, é a forma como a gente observa esse Estado e consegue fazer a crítica. E ele é dinâmico. O que está acontecendo na rua? A gente tá aí discutindo o aumento da tarifa do transporte e o que isso representa? De que forma as mulheres que estão inseridas aí estão nessa luta, de que forma isso afeta a vida delas? Isso sim é conhecer os direitos.

 

Qual a duração do curso?

 

Em São Paulo ele vai de fevereiro a novembro, dura um ano, com 4 horas a cada sábado. Em outros locais às vezes existe um formato mais concentrado, vai depender das características do lugar. Ano passado, além de ter os encontros de sábado, a gente teve que fazer alguns encontros à tarde porque entendeu que não foi o suficiente.

 

Sentimos que precisávamos introduzir outros temas. Questões previdenciárias, a Lei Maria da Penha, nosso sistema de Justiça, tudo isso é necessário, mas tem também o tráfico de pessoas, a diversidade sexual, racismo, feminismo negro, os corpos periféricos, enfim, você vai ampliando. A gente planejou o ano, mas depois da Marcha das Mulheres Negras, por exemplo, a gente considerou que faltou um ponto que esse grupo estava demandando. Ano passado tinha muita mulher negra engajada no movimento, superarticuladas, e nossa previsão de discussão não deu conta, precisamos criar mais espaços para falar sobre o assunto. E isso é bacana, não fica um curso pré-moldado, ele dialoga com as participantes.  

 

É ótimo, não fica engessado. Existem bolsas para possibilitar a frequência de quem não pode comparecer sem?

 

Como é totalmente desinteressado economicamente, todo trabalho e todo comparecimento é voluntário. O que a gente tenta organizar, por exemplo, é uma rifa em todos os encontros. Esse dinheiro serve tanto para a formatura (para confeccionar camisetas para o encontro final, por exemplo), como para resolver alguma situação pontual. Mas a priori não tem bolsa, se tem alguém com alguma necessidade específica a gente pode direcioná-la pra algum lugar de assistência social,  algum lugar da própria estrutura do governo para que ela possa ter a questão da presença garantida. Mas a gente sabe que tem esse problema.

 

Estamos no centro de São Paulo, até mesmo por isso fazemos no centro, mas pra quem mora em Guaianazes são trinta quilômetros, com transporte a R$ 3,80, a depender de quantas conduções ela pega, o gasto mínimo do final de semana vai ser de quinze reais. A gente acaba dando um lanchinho que nós mesmas organizamos pela rifa, pra comprar um biscoito e um café, pra que as mulheres que às vezes saíram sem tomar café consigam comer alguma coisa e voltar pra casa.

 

A gente vê que às vezes o curso tem uma demanda de inscrições que é praticamente o dobro da capacidade do lugar, mas por ser um longo curso longo a gente sente o impacto da dificuldade da permanência quando chegamos ao final. Não é nenhum luxo, é o dinheiro pro transporte, mas às vezes a pessoa perde o emprego, ou não tem uma renda tão disponível assim, então isso afeta. De qualquer forma, o curso não é uma coisa fechada. Se a pessoa frequentou um semestre, parou e quer voltar, continua de onde parou, ou vem frequentar no outro ano. A ideia não é meritocrática. Muitas mulheres nunca tiveram um certificado na vida, e aquele é o primeiro. É bastante simbólico nesse aspecto. Mas não é pelo certificado exclusivamente, a gente não se atém a isso.

 

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Aproveitando essa sua referência sobre a plasticidade do curso, pensamos numa coisa. Para realizar uma educação jurídica popular com recorte de gênero é necessário também tocar na interseccionalidade, tendo em vista os cruzamentos com raça e sexualidade, dentro dos exemplos que você mencionou. Você pode falar um pouco mais sobre como na prática do curso de vocês tem sido possível realizar essa fusão?

 

A Magali Mendes é uma companheira fantástica lá de Campinas e ela narra a experiência que elas tiveram com mulheres transexuais e travestis. O curso lá foi organizado de uma forma que não teve como foco o aspecto biológico, falava-se de gênero. Já em outros lugares surgiram questões em relação aos banheiros. Desde que eu estou próxima da União e do curso das PLPs, a gente não enfrentou nenhum problema, mas a busca pelo curso não é tão comum para as travestis, por exemplo.

 

Entendemos que a discussão de gênero e sexualidade é um ponto pacífico pra gente. Há muitos anos já temos na grade um encontro sobre diversidade sexual e um pressuposto de que se o curso for procurado por uma mulher transexual ou por uma travesti ela é muito bem-vinda. De qualquer forma, uma coisa é fato, temos sempre que administrar algumas situações pelo curso ser um microcosmo, que não deixa de representar o que está posto na sociedade. Você não elimina magicamente a desigualdade social e os preconceitos dentro desse espaço.

 

Já que você tocou nesse assunto, como são feitas as dinâmicas e essas mediações entre as pessoas do grupo?

 

O grupo geralmente é formado por pessoas de universos bem diferentes e que estão juntas dispostas a compartilhar aquele ano. Isso não necessariamente representa um problema, muito pelo contrário, é muito enriquecedor, mas às vezes aparecem conflitos. A gente tem umas propostas de mediação e fomentamos que as próprias pessoas envolvidas consigam resolver e entender o que gera o conflito. Não é uma coisa de cair algo lá de cima, vertical, a gente constrói horizontalmente. Mas os conflitos surgem, e é bom que surjam.

 

Uma coisa que a gente discute é sobre não deixar coisas escondidas, não esconder uma situação que pode impactar na vida dessa pessoa. Se a gente tá falando de racismo e essa é uma questão para alguém, vamos pôr na roda e discutir. Se alguém não entende porque a travesti comporia o grupo, vamos conversar sobre isso. Tem muitas mulheres lésbicas compondo o curso e se alguém não entende isso, a gente senta e conversa. Tem gente que nos primeiros encontros se diz contra o aborto, com formação religiosa, e apesar dos conflitos internos, elas resistem e passam a entender que se trata de um direito ao corpo, um direito de decisão. Ainda que eu possa escolher por não realizar em mim, a gente tem que discutir e lutar para que exista a descriminalização e a legalização. Tem uns pontos delicados, mas a gente vai administrando.

 

A gente recebe críticas. Recebemos críticas desse último grupo, e isso é bom, permitiu que a gente levasse a questão e abrisse com o grupo para a gente se repensar. Dessa forma, tivemos a possibilidade de discutir a questão racial, a diversidade sexual, as mulheres transexuais e travestis, entre outras coisas. A gente tinha uma pessoa imigrante na composição do curso e ela fazia umas colocações fantásticas trazendo muita coisa que estava sendo discutido entre as companheiras bolivianas. Quando ela se colocava como estrangeira, a gente também se entendia meio estrangeira, ainda que brasileiras. Estrangeiras porque a gente se entende na contramão de muita coisa.

 

Quais são as principais parcerias que viabilizam hoje esse projeto?

 

Tivemos inicialmente uma parceria com a Escola da Procuradoria, depois com o Ministério Público Democrático, com a Associação dos Juízes pela Democracia, a gente já usou o espaço físico do Sindicato dos Bancários e o espaço da Secretaria da Justiça. Agora a gente está na Câmara Municipal dos Vereadores. Tivemos a colaboração, durante um período, do Coletivo Dandara (Coletivo Feminista da Faculdade de Direito da USP),  entre outras pessoas que já colaboraram bastante e que eu não elenquei aqui. Temos muitas companheiras do IBCCrim que colaboram, da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, da Secretaria de Políticas Públicas para as Mulheres do Governo Federal. O Instituto Patrícia Galvão também é muito próxima da gente.

 

Hoje a gente conta muito com o pessoal que compõe a União mesmo, a Conceição [dos Santos], que é uma mulher incrível e que se você falar com as Promotoras Legais Populares de São Paulo, todas vão conhecê-la. A Amelinha Teles, Ticiane [Vitória], Marília [Kayano], a Crimeia [de Almeida] são nomes que estou elencando aqui porque são pessoas que estão no dia a dia. Quem está no cotidiano é a gente, mas estamos sempre abertas para quem quiser somar. As próprias Promotoras Legais Populares já formadas somam, é um espaço em que a gente procura sempre horizontalidade. Tem horas que algumas pessoas é que vão decidir certas coisas, mas quem quiser somar que venha. Só nos preocupamos para que o somar não seja uma forma de cooptar. Existem pessoas que, a princípio, são vinculadas a partidos, mas não estão ali necessariamente em decorrência do partido, ou seja, não é o partido que está dando a linha. Assim garantimos a autonomia, de forma que a gente consiga discutir os assuntos sem ter um compromisso com alguma situação, com uma legenda, com alguma entidade.  

 

No site de vocês há menções a ações marcantes resultantes da atuação das PLPs, como a formação de 2 mil lideranças femininas no estado de São Paulo; a criação do Centro de Atendimento às Mulheres em Situação de Violência (região Leste) organizado pela AMZOL – Associação de Mulheres da Zona Leste; o encaminhamento de dois casos de assassinatos de mulheres cujos criminosos se encontram impunes à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA); e o reconhecimento pioneiro do estupro no local de trabalho como acidente de trabalho, abrindo caminho para outros casos. Que outras você destacaria, atualizando essa lista?

 

Uma coisa que a gente tem feito é o Abraço Solidário, sempre no mês de agosto. É uma crítica à implementação [deficiente] da lei Maria da Penha. A lei faz dez anos em 2016, mas o abraço começou em 2007. A ideia original foi abraçar o Tribunal da Justiça, e depois a gente foi pensando no sistema de Justiça como um todo e identificando outros atores que deveriam ser cobrados. Sabemos que não há uma implementação de fato da lei, os Juizados de Violência Doméstica com caráter híbrido (que tratam tanto a questão cível como a criminal) não estão implementados, então nós cobramos. Já fomos na porta da primeira Delegacia de Mulheres, na Defensoria Pública, no Ministério Público. Geralmente a gente faz um manifesto, colhe assinaturas e protocola para simbolicamente fazer essa cobrança.

 

Normalmente somamos com outras movimentações na cidade, como a Marcha do Oito de março e [os protestos pelo] “fora Cunha”. Historicamente posso relatar a entrada no Supremo Tribunal Federal de calça [para as mulheres], que parece pouco, mas é uma conquista. A Amelinha narra que no início das paradas LGBT, quando havia um clima mais de manifestação, a União e as PLPs estavam lá apoiando. É gostoso perceber que vamos nos inserindo em outros cenários. E as Promotoras Legais Populares não ficam estanques na União de Mulheres. Tem muitas que estão em outros movimentos de mulheres. A Marcha Mundial das Mulheres, a luta de mulheres por moradia…

 

Com o Brasil sendo um dos países mais desiguais do mundo, com o estado da distribuição de renda conectado com alto nível de exploração do trabalho – e nesse quesito a mulher em muitos aspectos é mais atingida que o homem– , como as questões do trabalho e dos direitos específicos do trabalho são abordadas com as promotoras legais populares?

 

Ao longo do curso garantimos uma aula sobre a mulher e o trabalho, e é uma maneira de expor alguns dos questionamentos do que está posto. No caso das empregadas domésticas, por exemplo, discutimos o que é esse avanço delas poderem ter mais direitos assegurados, mas também fazemos uma narrativa de como, na Constituição, o direito delas foi barganhado. Diziam: “se quiserem aprovar todos os direitos das domésticas, a gente vai diminuir outras questões”. Mas por mais que a gente tenha uma aula dedicada especificamente para esse tema, ele é transversal, porque está no nosso cotidiano. Quando eu falo que às vezes as mulheres não chegam ao final do curso por não terem grana, é porque elas estão em trabalhos informais, ou em um trabalho extremamente precarizado. Para além de ser informal, elas ganham muito menos do que os caras, às vezes mantêm a família, e na hora de repartir, os R$ 15 da condução não sobram naquele final de semana. Ou até mesmo porque saiu um bico no sábado e não dá mais pra vir.

 

Óbvio que a gente tenta pensar numa rede. Pensar de que forma, às vezes criativamente, você consegue dar uma alternativa. Mas a gente sabe que não é só isso. Existe uma estrutura por trás e importa trazer a visão crítica sobre o que a gente tá discutindo. Saber como demandar diante de uma situação. Como discutir assédio moral e assédio sexual, mas numa perspectiva do fortalecimento, para que, em uma situação exacerbada, seja possível agir. E digo exacerbada porque o trabalho que permite que você pague suas contas, ainda que ganhando pouco, já é um lugar no qual muitas vezes você faz concessões. Você acaba sofrendo algumas violações pra continuar mantendo aquele vínculo. É por essa razão que é preciso ter muito cuidado para lidar individualmente com uma situação no trabalho quando uma pessoa vem falar sobre ela. Se eu digo “sai, denuncia”, às vezes não é a melhor solução.

 

Então, podemos fazer uma analogia a como pensamos na questão de violência doméstica e de gênero: “Essa mulher tem que ser a protagonista”. Quando chega até a gente uma situação assim no trabalho, tentamos construir com ela: “o que, para você, seria melhor?”. A gente pode propor várias coisas, mas é essa mulher que tem que decidir. Ela é a protagonista da história e a gente tá ali para colaborar com esse protagonismo, não para assumir o protagonismo no lugar dela. De que forma podemos fortalecê-la? Isso sem ignorar a existência de uma precarização macro: ter carteira assinada, que antes já era um sonho, está ainda pior porque os empregos estão diminuindo, tem a chamada “pejotização”, que é mais um processo de precarização. Você, em tese, é uma pessoa jurídica, mas na verdade é uma camuflagem, você é tratado como microempreendedor individual, mas é uma camuflagem para uma relação empregatícia sem décimo terceiro, estabilidade e todos outros direitos trabalhistas. Esses elementos amarram muito as mulheres. A depender das suas responsabilidades, você vai ficando cada vez mais amarrada, e não dá para simplesmente explodir. Então quando chegam alguns casos, a gente discute como está a estrutura no macro, mas no caso a caso, [o jeito] é conversar com elas. Porque a gente não tem uma rede que as absorva: “olha, tem uma companheira que está empregando”…. Se rolar rolou, mas não existe essa rede por norma.

 

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Pra encerrar, você poderia contar uma história de maneira mais detalhada, alguma situação dentro do curso que te moveu especialmente?

 

Em uma oficina aplicamos um jogo sobre as rotas críticas das mulheres em situação de violência. Maria Fernanda Terra foi quem o aplicou, e a proposta era percorrer o histórico de violência das mulheres. As histórias eram baseadas em fatos reais e a gente reencenava os caminhos que essas mulheres buscaram para resolver ou não resolver a situação. As pessoas tinham que andar, se mover, e foi muito interessante sentir inclusive o desgaste físico de você procurar os lugares: “Onde está a delegacia?”, e aí você ia atrás buscando as estações.

 

Depois da aplicação da oficina tivemos uma rodada de discussão pra ver o que as pessoas sentiram, ter a devolutiva das mulheres. E uma companheira acabou se reconhecendo como agressora da própria filha, como alguém que marcava a vida da filha por violências. Ela se emocionou e isso nos tocou muito, nos emocionamos nessa busca por ajuda. Ela entendeu o que estava fazendo, o papel dela. Buscava dosar o cuidado de mãe, para que ela não repetisse uma história de desatenção como a que havia sofrido, mas reconhecesse que a filha também tinha direito de decidir, autonomia, merecia respeito. Foi um exercício e uma exposição. Quando ela abriu o coração, a experiência dela, e nossa, foi uma partilha muito gostosa, apesar de dolorosa.

 

Por isso que dizemos que não se trata de um simples ensino de direito ou de legislação. É de que forma que essa coisa fria, que está nos livros com essas palavras estranhas, tem sangue, calor, choro, sofrimento. Tem alegria também, tem sorriso, se materializa. É orgânico, não é aquela coisa estática. E quanto umas narrativas fortalecem as outras! Às vezes o silêncio também diz muito. Me lembro de alguns silêncios e que eles diziam muita coisa. Aquele silêncio quase sepulcral, que grita.

 

Outra companheira trabalhava à noite como cobradora de ônibus e vinha pro curso direto do trabalho. E além do curso das PLPs ela fazia o curso do Maria Marias, da União em parceria com o IBCCrim, específico sobre a lei Maria da Penha. Essa companheira vinha e, algumas vezes, trazia as filhas, e  tinha uma paixão por elas! Esse é um perfil que a gente realmente quer atingir. O depoimento dela na formatura foi: “agora eu não sei o que vou fazer de sábado de manhã” (que era o horário do curso). Falamos pra ela: “mas o curso continua! Vem que tem tema que no seu curso não rolou, você vem aqui e traz coisas, discute com a gente”.

 

Muitas vezes elas dizem que um mundo se abriu: “eu não consigo mais me ver daquela forma anterior, agora eu preciso fazer alguma coisa, preciso me inserir em alguma coisa, preciso continuar a luta”. É uma superação do individual para pensar numa perspectiva coletiva. “Eu superei uma condição minha de violência, uma dificuldade por abrir esse leque, o que eu faço com isso?”. Devolve. Devolve para a sociedade e para as outras mulheres. Por que é que eu sou Promotora Legal Popular? Não necessariamente para conseguir um emprego. Algumas podem conseguir, mas não é por isso. É para que quando uma companheira chegar e contar uma situação, se eu não souber o que fazer, eu saberei quem procurar pra ajudar. É questão de ampliar a articulação.

 

Você deixa de olhar apenas para o seu próprio umbigo e passa a ver que essa outra mulher também é você. Todo mundo junto, é dessa forma que a gente supera desigualdades e violências. Te ajuda a repensar, refletir sobre o quanto a gente reproduz coisas, é um caminho para deixar de reproduzir. Tem a transformação e isso é fantástico.

 

Acha que faltou alguma coisa na entrevista?

 

Acho que sim. Tenho que agradecer a todas as mulheres que permitiram que a gente pudesse estar aqui hoje. Eu tenho um especial carinho e admiração pela Amelinha Teles, a Crimeia, a Terezinha Gonzaga, entre outras tantas. É pela luta delas e de outras companheiras, pela coragem de dizer “eu acredito”. Quando você pensa que tem um curso que há 22 anos está aí rolando, e quantas outras mulheres que por essa experiência modificam as suas vidas, salvam vidas, descobrem um outro universo e podem ser felizes… Então eu quero agradecer a todas essas mulheres e a vocês também.

 

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minidocumentário sobre os 30 anos da União das Mulheres de São Paulo,  realizado por Elisa Gargiulo

 

Fotos: Gabriela Cunha

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