Geni é uma revista virtual independente sobre gênero, sexualidade e temas afins. Ela é pensada e editada por um coletivo de jornalistas, acadêmicxs, pesquisadorxs, artistas e militantes. Geni nasce do compromisso com valores libertários e com a luta pela igualdade e pela diferença. ISSN 2358-2618

tradução

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O passado não é uma conclusão…

…tens que interrogá-lo. Por Jenny Granado, da Cidade do México

 

 

 

Publicado em 31/01/2016

 

 

Os trechos que traduzimos nesta seção fazem parte de uma publicação mexicana elaborada por um grupo de artistas reunidos no que chamaram de Consultório Informal de Deslocamentos a Olhos Fechados. Selecionamos para nossa edição especial sobre educação algumas passagens que tocam em questões de gênero e sexualidade dentro dos mais variados processos formativos pelos quais passamos nas instituições escolares.

O caderno do CIDOC é uma livre criação com base nos materiais coletados em regressões que remetiam às experiências da infância. A junção de fragmentos sem identificação dxs falantes cria uma intrigante segunda camada de tensão em relação ao gênero, antecipada aqui apenas como nota explicativa de tradução.

 

 

***

 

 

Apresentação

 

CIDOC

Consultório Informal de Deslocamentos a Olhos Fechados

 

O consultório informal de deslocamentos a olhos fechados (CIDOC) é uma plataforma experimental de encontros que toma emprestadas metodologias terapêuticas e investigações desenvolvidas nos campos da psicologia, mnemotecnia e arte.

O consultório incita a construção de enunciados coletivos a partir de relatos orais produzidos em estados extraordinários da consciência, e pretende vincular as subjetividades dos colaboradores a partir da criação de espaços para exploração da memória. Procuramos tempos de diálogos para a cura coletiva.

 

Buscamos desvelar as estruturas de poder nas quais estamos imersos a partir do diálogo, com o propósito de construir juntos novas possibilidades críticas de ação e pensamento.

Como nos afetamos mutualmente?


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Regressão Primária

 

“É a memória que o historiador convoca e interroga, não exatamente ‘o passado”. […] a memoria é psíquica no seu processo, anacrônica nos seus efeitos de montagem, de reconstrução, ou de “decantação” do tempo. Não se pode aceitar a dimensão memorativa da historia sem aceitar, ao mesmo tempo, sua âncora no inconsciente e sua dimensão anacrônica.”

Georges DidiHuberman

 

 

No Consultório Informal de Deslocamentos a Olhos Fechados pegamos emprestadas metodologias terapêuticas de indução à recordações distantes – também chamadas regressões – para realizar deslocamentos dentro da memória, com o objetivo de relembrar vividamente momentos afetivos e experiências educativas pessoais que refletem a forma nas quais as dinâmicas socioculturais e as estruturas hegemônicas influenciam na constituição de identidades. A regressão, nesse caso, é nossa ferramenta, e o tempo é nosso campo de ação.

Buscamos recuperar a experiência subjetiva da infância escolar para visibilizar mecanismos, às vezes sutis, de dominação, de relações de poder, construção de papéis, hierarquização de conhecimentos, e de maneira paralela elucidar como construímos noções de liberdade, identificação, autonomia, rebeldia e coletividade desde tenra idade. Recorremos à memória como uma ferramenta crítica do presente.

Nos interessa, também, a comunicação corporal: quais sinais dão nossos corpos enquanto falamos ou enquanto escutamos? Como aprender a dialogar com o corpo do outro? Qual informação valiosa jogamos fora ao descartar esta possibilidade?

 

[…]

Com este exercício pretendemos recuperar a capacidade de socializar nossas experiências íntimas com o objetivo de articular formas alternativas de gerar diálogos. A comunidade também se forma a partir dos relatos pessoais, compartindo-os, na capacidade de escutá-los, na possibilidade da empatia e da identificação.

 

O passado de repente tem voz e corpo, mas o que ele nos diz sobre o presente? O que nos diz o presente sobre aquele passado? O que nos diz agora, que fala no presente?

 

Feche os olhos para observar o passado.

 

Tome seu tempo…

 

O que vê?

 

Realizamos uma convocatória pública em Cuernavaca a qual responderam principalmente estudantes de arte, trabalhadores da cultura e da educação. Com cada participante se realizou uma sessão de indução à recordações do Ensino Fundamental, e na Cidade do México foram convocadxs todxs xs participantes do projeto: “Entre Utopia y Desencanto”.

No total realizamos 25 sessões com 25 pessoas diferentes.

 

Essas sessões foram registradas em áudio e posteriormente transcritas. A partir desse arquivo editamos cinco cápsulas de áudio e este caderno, com o proposito de formar vários relatos coletivos.

Cada cápsula narra um dia escolar através das relações com os professores, os colegas, os amigos, os pais, as primeiras experiências sexuais e os espaços da escola. O caderno, além de abarcar a fundo os mesmos temas, inclui nossas vozes de várias maneiras: mostramos aqui o roteiro das induções e as perguntas feitas axs regressionadxs. Recuperamos a potência dos relatos compartilhados para construir um corpo de texto com muitas vozes, reflexões e emoções que aprofundam e complexificam a possibilidade crítica das anedotas pessoais na sua relação com os outros relatos, com as outras vozes.

 

As lembranças compartilhadas nos movem.

 

O passado não é uma conclusão, temos que interrogá-lo.

 

[…] O CIDOC foi fundado por Andrés Garcia Riley, Natalia Magdaleno, Waysatta Fernández e Yollotl Alvarado, integrantes do Cráter Invertido e da Revista Cartucho, na Cidade Monstro no ano de 2014, a partir do convite feito por Sofia Olascoaga para participar no projeto “Entre Utopía y Desencanto”.

 



Indução

 

[…] Vamos fazer juntos uma viagem ao seu passado. Vamos descobrir experiências que tenham sido favoráveis para você, assim como essa experiência também será. É uma viagem segura que vamos fazer juntos e eu vou estar aqui todo o tempo, ao teu lado, para o que necessite.

 

[…] Minha voz te guiará às lembranças de sua infância. Cada palavra que eu disser nos levará a um nível mais profundo, relaxado e perceptivo. Vou contar de um a dez e quando chegarmos ao 10, estaremos de volta em sua infância.

 

Um… ao centrar toda sua concentração na minha voz você vai relaxar […]

Dois… As mãos e os dedos do seu corpo estarão mais quentes […]

 

Três… O calor se estende pelos seus braços […]

 

Quatro… Sinta como os dedos dos seus pés diminuem […]

 

Cinco… O calor do seu corpo se estende, seu corpo emana calor, agora essa luz […]

 

Seis… Veja um nível mais e mais profundo. Percorre teu corpo […]

Sete… Vamos aproximando do seu subconsciente […]

 

Oito…. Cada vez que respire, aprofunde mais.

Nove… Sente. Teu corpo é muito pequeno, é um corpo de criança. […]

Dez… Você voltou a ser criança.

 

 

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É uma imagem um tanto desfocada

 


São muitas caras. São muitas professoras. Ao mesmo tempo, de todos os anos. A miss Maritonha… hmmmm… a miss Eva. Sempre são mulheres: a professora de inglês, a professora de espanhol.

Acho que nunca tive professores homens além do de biologia… ah! E o de educação física, que era horrível.

 

Todas eram mulheres.. só havia um professor ou dois.

 

Você tem que sentar junto com outra menina sempre…as meninas com as meninas e os meninos com os meninos.

A gente se conversava ou se conhecia, às vezes, quando nos juntavam em equipes. Mas fora daí já não existia amizade… quase nada. Só tinha um, quase sempre conversava mais com ele na sala de aula. Era com ele que eu melhor me dava entre os meninos.

 

Com Isaú, é com ele com quem mais converso, mas só quando estamos na sala de aula. De fora, no recreio, sempre me junto com mulheres.

Os outros meninos, às vezes os vejo com vergonha e às vezes com muita admiração.  E as meninas – se estão bonitas – gosto muito delas.

 

Eu gosto da Pino. Eu gosto da Tania. Eu gosto da Alexis. Eu gosto da Mariana. Mas elas sempre querem estar com os bonitões: querem estar com Fern, querem estar com Raul, querem estar com Grillo. Eu sempre sou o amigo.

 

Como seu amigo, como inofensivo.

 

Me lembro de… correr. Ali, no pátio, para espiar Lúcia o tempo todo. Eu era muito tímido e observava ela muitíssimo e tomava notas: do que ela estava fazendo, de como estava sentada, com quem estava conversando, se tinha me olhado ou se não tinha me olhado. Eu estava perdido, perdido.

 

Ele gostava de mim e me perseguia. E me perseguia até o banheiro das meninas. Era uma coisa meio louca, como… se ele quisesse se declarar pra mim. Mas loucamente; correndo pelo pátio. E isso me dava pavor e medo, e eu me escondia no banheiro pra me defender porque me parecia uma coisa horrorosa. E me lembro de uma tarde, porque fosse com meus pais, ou fosse com o pessoal com quem eu voltava, sempre éramos os últimos a sair da escola. E ele também. E então.. quanto menos gente havia, mais eu começava a me preocupar, porque já não tinha como me defender. Mas me lembro disso de correr pro banheiro das meninas e ele, por debaixo da porta do banheiro, se aproximar, e me dar uma cartolina. Ou me dava coisas ou me dizia coisas. E pra mim tudo isso era horrível. Humilhante. Me dava medo e muitíssima vergonha, mais que medo. E eu o evitava. Logo pensei que esse menino era gay e, no final, é neto de gente com muito dinheiro nesse país.

 

Era muito feminino e o chamavam de “Senhorita Cometa”. Não sei se conhecem, era uma série de televisão japonesa. Era como uma espécie de fada que vinha do espaço e cuidava das crianças. Tinha um dragãozinho que marcava as crianças com uma cruz. Chibigón era seu nome. E havia um gênio muito velhinho, que castigava ou não a Senhorita Cometa. E batiam na cabeça do garoto, o incomodavam muito. Era uma escola muito estranha.

Obviamente, a personagem principal era Fer. Era um menino de óculos. Não me lembro como era o comercial mas… hmmm… começaram a maquiá-lo e passaram batom. E me pareceu muito estranho. Eu pensava “ai, que coisa? É um menino. Porque estão passando batom nele ?”. Era uma idiotice. Porque, na realidade, o único que fazia alguma coisa era o Fernando. E nós só ali, sentados como idiotas.

 

Brincávamos muito com ele e com Andrés Molleda, brincávamos muito… de casinha…  com papéis de gê… Ou seja, como pai e mãe e… nos beijávamos. E são lembranças bem estranhas, com os dois. É. Não era uma atração, era como entrar em um jogo e pronto. Com um pouco de curiosidade… mas não, atração nunca senti. Acho que a coisa era mais para experimentar o beijo. Nada mais. Se tornava um pretexto. Mas não… me lembro de uma vez… no quarto dos meus pais nos trancamos Genaro, eu e Matías e… imaginem… era como a gente se beijava entre os três… um era o filho, logo o outro era o pai, a mãe… tudo era só um pretexto pra…pra darmos uns beijos. Nada mais.

 

Me parecia muito estranho quando eu ia dormir na casa de um menino, porque ia muito na das meninas. Mas era estranho com os meninos.

Eu gostava muito dos beijos.

 

… e estávamos planejando como íamos nos beijar; de tarde, na casa dela. Acho que fizemos uma lista: oito beijos enquanto eu era médico, oito beijos de novela, beijos de língua… não sei se selinhos. Não sei, meio que desde pequenos a gente tem um rolo. Desde o jardim de infância nos beijávamos. E experimentamos. Eu nunca vi uma novela mas como ela fala muito disso, diz: “me beija como na novela”, e pra mim isso era… a primeira coisa que pensava era em beijos apaixonados.

 

É bonito. E eu me sinto já bem grande, adulta. Ou querendo ser adulta. Ele se chamava Eduardo. Não me lembro como nos tornamos namorados, mas ele era meu namorado.

 

Acho que era mais que físico. Era uma paixão. Uma vontade de estar grudado o tempo todo. Mais como jogos… brincávamos muito juntos. E nos fazíamos isso, charadas, presentes surpresas, era assim…

 

… e  nos jogávamos em pneus. Não me lembro exatamente o que jogávamos. Mas nos tocávamos. Era bonito. Gostava de estar junto dela, mas tampouco sabia direito para que. Era apenas uma vontade de olhá-la. Me lembro quando mudaram-na de escola… foi… ficamos tristes. Ximena também, porque era sua melhor amiga. Diziam que Ximena e eu éramos namoradxs, mas eu sentia falta era da Rebeca.

 

Sentia o amor de um jeito muito inocente. Olha só, me lembro de que dessa vez não houve problemas em eu sair com outra mina. E disse pra Elizabeth… disse que já não queria mais ficar com ela.

 

Nunca a vi depois. Mas não sei se é o despertar sexual porque não o identifiquei como um outro espaço, diferente dos demais. Foi até depois que encontrei esse espaço como algo independente, com minha professora de quarto ano, da qual eu gostava. Chamava-se Estela. E assim me dei conta que era outra coisa, se separou de todo o resto.

 

Eu gostava quando ela usava saia. Sempre cruzava as pernas, muito vaidosa. Acho que dei a ela um monte de presentes e… eu quando criança era muito brega!

 

As garotas tímidas me atraiam mais, porque na verdade era difícil me animar para falar com elas. Então elas eram mais interessantes.

 

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Acho que começamos a sentir mais diferença quando já tinha… uns dez anos, nove… os meninos começavam a fazer piadas idiotas que… Não sei… Aí começava a surgir uma difere.. Mais entre a gente. Na verdade não sei como começava. Nós não nos reuníamos muito, mas antes não era assim. Eu ficava mais com as minhas amiguinhas e as via mais. Mas… também jogávamos com os meninos. E eu não sentia uma diferença na sala de aula.  

 

Eu tinha o costume de jogar futebol com os meninos. Fanny e eu éramos as únicas duas meninas que jogavam com os meninos.

 

Nos recreios eu brincava de luta livre com os meninos, já me lembrei! Isso! E sempre ganhava! (risos) Acabei de lembrar isso. Sim, brincávamos de luta livre (risos). Quase era a única menina que se metia a jogar futebol com eles, e…isso da luta livre…meio que eu era um pouco machona quando pequena, e aceitavam que eu brincasse com os meninos.

 

Eu saía e gostava de jogar beisebol. Mas só as meninas podiam jogar, porque os meninos sempre acabavam brigando. Então, quando os meninos não estavam jogando, aí podíamos jogar. Do contrário, íamos a um jardim.

 

Conversávamos… ou dávamos cambalhotas. Também com Irma e com Andrea. E Brenda.

 

Mas meu primeiro amor foi minha amiga Marilú. Nunca rolou nada. Eu percebia que Clara tinha um rolê com as outras meninas, mais explicitamente sexual. Mas com Marilú e eu não, bastava essa coisa de confidência. Uma especie de cartas, e de… de estar juntas.

 

… e o Conrado tinha uma mão laranja dos Thundercats, e metia ela pelos buracos dos pneus. Isso sim era uma coisa… super sexy. Disso sim eu me lembro. Ela te atacava ao passar na casa dos sustos, íamos engatinhando, trepando por dentro dos pneus. E sempre havia alguns que te agarravam pela bunda, e não sei o que mais. E me dava muito medo, me lembro. A confusão se armava porque éramos um monte de meninas, e faziamos um debate, e quem sabe o que…

 

Ai! Sentia preguiça…tipo “Ai, esses moleques não entendem nada!” Era picuinha para encher o saco o que os meninos faziam. Já nem me lembro de como eram, mas me provocavam algo. Era tipo “que idiotas!”. Sim, que idiotas! E foi aí, me lembro claramente, foi aí que já não nos juntávamos, os meninos e as meninas, como antes. Quando começaram os meninos a falar besteiras e fazer as fofocas sexuais.

A gente fazia fofocógrafos. Também era uma dinâmica super terrível… eles diziam “quem é a sua preferida? quem é a mais feia? quem é a mais legal?”. Assim, terrível, e a gente ia lá ver os resultados, era uma merda.

 

Lembro que eu gostava muito de um menino que todo mundo gostava, de um ano acima, era o gato da escola.

 

Todos sabíamos quais eram os gatos e então a gente só dizia que gostava dos gatos. Mas não sei, não sentia nada por eles. Só com o Lu… o Luca foi o primeiro por quem eu senti alguma coisa de verdade.

 

Era mais um apaixonado bobo.. assim como…como agora, (risos). Isso de ver florzinhas voando, sabe?…

 

[…]

Vi que minha melhor amiga, Simone, estava com o menino que eu gostava. E foi horrível. Acho que foi a primeira vez que senti ciúmes, e como era algo novo, senti bem forte. Me senti traída. E parei de falar com a Simone. Que tonta, parei de falar com ela.

…logo já tinha mais casaisinhos. E dramas. E era uma confusão. E tinha uma menina que era uma antípoda minha, sempre andávamos brigando. Ela chamava Nilloatziin, Nillo. E sempre brigávamos, porque ela queria ficar com o Alan e eu não queria deixar. Depois com o Armando, sei lá, a gente tinha uma treta.

 

Sempre havia um.. um trato… um tratamento tosco, com as meninas que demonstravam muita sensualidade. Aí começamos. Tínhamos nove anos mas já havia algumas mais abusadas.

 

Tirávamos fotos mostrando a pegação. Mostrando paus duros. Todos mostrando a pegação, todos com as calças arriadas. Muito sexual.

 

As coisas se agravaram pra caralho: na 5a serie e na 6a já haviam uns rolês de gênero muito mais marcados. E já rolava gostar dos meninos. E nesse momento era quando havia mais problemas entre as mulheres…entre meninas… e mais divisões e tal.  Não sei, também era tipo sentir que éramos grandes, tínhamos um poder meio estranho aí.

 

Me lembro que teve um período assim. Tinha disso: de tirar, baixar as calças… Como uma brincadeira…

 

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…existem duas em particular.

Sobretudo uma que pude ver. 

Pude ver, daquele lugar, que sim, havia uma…

um deleite em castigar certas meninas.

Sim, havia crueldade.

 

Parava-os. Mandava-os a um canto. Ou tirava-os do salão e os deixava parados do lado de fora. E outras vezes mandava-os ao pátio. Era muito feio porque logo fazia muito sol e ela os deixava alí, por quase toda a manhã, dependendo: se era cedo, até a hora do recreio, e se era depois do recreio, até a hora da saída eles tinham que ficar alí.

 

Hmmm… sinto que ela e eu tivemos uma relação um pouco difícil porque… acho que… eu a lembrava alguém que ela não gostava, ou alguém com quem ela tinha um problema, aí era ela muito dura comigo. Mas às vezes sua cara me dava… uma paz, porque eu gosto de estar ali e gosto da minha escola.

 

É estranho porque a professora Edith tinha bons exercícios, muito divertidos. Mas tenho uma lembrança de uma vez em que ela expulsou ou suspendeu quinze de nós. Não sei o que passava com ela. Não sei qual era o problema dela, mas acho que era algo emocional. Em duas semanas ela havia suspendido algo como três crianças por dia. Acho que nessa semana faltei oito vezes à escola. Até que eu não podia mais porque a diretora percebeu. Já ninguém mais ia. Aí ela resolveu dar muitos sermões na gente. Nos esculachou muito. Tinha duas caras essa professora. E falava dos zapatistas e eu tinha repulsa porque eu não sabia nem o que era, mas sabia que ela tinha algo a ver com eles. Me lembro que uma das vezes que ela me suspendeu foi por eu ter pisado no pasto, e eu dizia pra minha mãe: “mas eu só estava pisando no pasto! Como ela pode me suspender por pisar no pasto?”, e então a coisa abrandou, foram falar com ela, todo um show.

 

[…] desde sempre ela nos esculacha. Só porque um se formou bem e outro não isso já é motivo. Era insuportável. E ela era gritona. Com uma voz… gritona… e fala em francês.

 

Está dando aulas. Está explicando algo na lousa. Por isso temos que brincar sem que ela perceba. Temos que sussurrar. E não podemos rir. Porque se ela nos vê, vai dizer que não podemos brincar e que temos que ter atenção à aula.

 

Me sinto muito pequenininha e medrosa. Me vejo sentada na cadeira e ele esta de frente e eu me sinto muito pequena, me dá medo.

 

… de que vão até minha casa pra me esculachar. A escola me assusta por isso.

 

[…]

 

Sempre tem tarefa. E quase nenhum jogo. Sempre tem castigo. Sempre está presente a ameaça do castigo. Nós queremos jogar, queremos conversar.

 

[…]

E ela começou a me esculachar pesado. E me deu um tapa. E queria me expulsar dessa vez. Já não me queriam ali, mas não me expulsaram. Não me mandaram mais de volta pela manhã. Desde então minhas notas baixaram todas. Também comecei a ter sono. Muito sono.

 

Nos chegou a dar reguadas, com a régua de um metro, quando se desesperava. Por exemplo, Naxitl recebeu muita reguada. Em mim não me lembro bem. Mas ela mudava a gente de lugar quando se incomodava ou quando pegava a gente falando com algum companheiro ou companheira. Sempre te isolava ou te mandava pra mesa do canto. Com sua voz super estridente. E te mandava pro canto.

 

… nos pegou e agarrou a carta. E foi horrível porque ela viu a carta e nos levou… Me levou, porque eu que tinha começado tudo. E me levou pra direção e minha mãe trabalhava lá. E aí ela chamou a minha mãe e lá estava a diretora. Elsa chamava ela. Elsa, minha mãe e eu. Estivemos horas falando, e me senti muito mal. E chorei. E me esculacharam muito. Que confusão. Não gostava nem um pouco quando me esculachavam. Chorava muito. Me sentia como um bebê, pequenininha.  

 

Todos me viam como se eu tivesse feito algo muito péssimo, mas eu ficava escutando o esculacho. Era como se eu tivesse que obedecer. Como se eu não tivesse escolha. Eu não dizia nada, só escutava. Me doía a forma como se dirigiam a mim; o tom de voz. Como se eu tivesse cometendo muitos erros, coisas muito ruins.

 

[…]

 

… se chama Clara. Era bem alta. Acho que tinha uns doze anos. Mas ela tinha se desenvolvido rápido e evidentemente tinha uma sexualidade mais aparente. Era bem linda. Muito simpática. Mas já tinha uma sexualidade mais explícita. E a escola tinha uma coisa super erótica, porque na hora da saída estavam os meninos da escola parados no portão e também havia uma sexualidade entre a gente. Quem era sua melhor amiga, ciúmes. Se essa amiga teria ido também com outra amiga fazer fofocas, né? Se você era mais ou menos aplicada. Mas também já tava tudo permeado desde então, por essas amizades íntimas, as melhores amigas. E Clara fazia de modo um pouquinho mais explícito. Não sei …acho que pra mim ela era muito engraçada e muito bonita e sempre estava essa freira perseguindo, nunca pude ver uma cena exatamente. Mas sei que…a freira a perseguia e a fazia sofrer. A resposta de Clara era se colocar. Todas nós subíamos a saia para sair porque a regra era tê-la nos joelhos. E a de Clara era muito muito curta. Eu acredito que foi aí que ela entendeu muito bem e respondia e sabia defender-se melhor que todas. Lembro claramente dela. Éramos amigas, mas ela… ela era muito extrovertida. Eu estava apenas construindo algo próprio… bem… ela foi minha companheira muitos anos depois. E sim, estivemos mais próximas. Mas sempre que lembro dessa época, penso nela. Essa coisa desafiante. E que ela se saiu bem, porque haviam outras… A outra, que era mais velha que ela, coitada, essa sim, ela tinha uma coisa… não tinha classe. Era loira. Isso era melhor pra ela. Mas algo aí…

 

[…]

 


Originalmente publicado pelo selo Editorial Cráneo Invertido, em 2014.

contato: consultoriocidoc@gmail.com ou craterinvertido@gmail.com

 

 

Jenny Granado é….é cachorra, é gatinha. Artista visual e performer. Sua avó também foi Geny. Tradição de família: Malditas Genis.

https://vimeo.com/jogapedranageni

 

Fotografias: Consultório Informal de Deslocamentos a Olhos Fechados

 

 

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