Geni é uma revista virtual independente sobre gênero, sexualidade e temas afins. Ela é pensada e editada por um coletivo de jornalistas, acadêmicxs, pesquisadorxs, artistas e militantes. Geni nasce do compromisso com valores libertários e com a luta pela igualdade e pela diferença. ISSN 2358-2618

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Reprodução e subjetividade

Uma aproximação empírico-reflexiva sobre educação, gênero e poderes. Por Paulo Castello

 

Publicado em 31/01/2016

 

 

Defendemos o direito das crianças de serem subjetividades políticas irredutíveis a uma identidade de gênero, de sexo ou de raça.

Paul B. Preciado

 

 

Desde que comecei a estudar gênero e sexualidade me dei conta de que durante toda minha vida fui rodeado por essas questões. Compreendi que o modo como manejamos nossas relações e posturas diárias, em diálogo com as micropolíticas cotidianas, reflete nossos posicionamentos políticos e ideológicos. Assim, na medida em que vamos mexendo nas próprias posturas pessoais, vamos corroborando, lentamente, para que algo da macropolítica se mova. E, ao mesmo tempo, compreendemos quanto dela foi incorporada em nossas atitudes pessoais, sem que pudéssemos nos dar conta.

Reconheci que o gênero é cultural, e que é parte dessa macropolítica que nos fazem incorporar: papeis, vestimentas, voz, gestos, caminhar, interesses, gostos, desejos, e poderia seguir com uma lista quilométrica. Reconheci a heteronormatividade, o machismo, a homofobia, a transfobia, o racismo, o elitismo, entre outras tantas relações de opressões. Reconheci o aprendizado infantil como base de todos esses discursos, e, consequentemente, que minha história educativa tinha sérias questões.

Eu era um menino afeminado que adorava rosa. Acho que sempre fui uma criança viada – e um par de fotos comprova que isso vem de cedo. No pré-primário eu tinha um grupo de amigas, com as quais eu passava o recreio e brincava nos finais de semana. Eu era conhecido entre meus familiares como o menino que tinha várias namoradas. Porque no imaginário social garotos e garotas não são amigos, são casais. E um menino que se relaciona com várias meninas é galã.

Eu aprendia que minhas amigas deveriam se tornar minhas namoradas e que eu não deveria brincar das mesmas coisas que elas. Isso porque a performance do masculino deveria se distanciar da do feminino. Quando pedi uma Barbie para minha mãe, ela me negou. Algo sobre aquelas questões eu tinha entendido e tentei negociar: “e um Ken?” – já que eu era menino, eu tinha que ser menino na brincadeira? Ela me deu um Max Steel com roupa camuflada e metralhadora. Minha frustração aumentou quando descobri que ele tinha o dobro do tamanho da Barbie e do Ken, e não dava pra brincar junto.

 

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Aos meus seis anos, me mudei para uma escola um pouco mais tradicional, aí comecei a sentir os primeiros traços do que Paul B. Preciado chamou de heterocracia: o regime autoritário que governa nossos corpos de acordo com a cis-heterossexualidade. Lá eu tinha só uma amiga e um amigo – ele, tão afeminado quanto eu. No recreio, enquanto os meninos jogavam futebol, eu e meu amigo brincávamos de escolinha. “Caza ou casa?”. Era clara a relação excludente entre meninos–meninos e meninos–menos-meninos.

Com sete anos me mudei para onde cursei o primário e ginásio: colégio católico, no qual os padres moravam. Boa parte dos colegas da turma do pré-dois também foram para essa escola – eles, agentes exemplares do regime heterocrata. Quando eu usava o banheiro masculino me diziam que eu deveria usar o outro. Quando separavam a turma entre meninos e meninas, me diziam que eu deveria estar no grupo das meninas. Eu adoraria, se pudesse: nessa época eu só tinha amigas. Na verdade, eu tinha um amigo menino, mas a gente só brincava fora da escola. Dentro da escola, na frente da sala, ele me enchia o saco (de um modo diferente dos outros meninos, sem humilhação). Covardia? Autoproteção? Imagina perder o privilegio de ser um menino comum ficando amigo da bixa? Eu não sabia o que significava bixa, mas pelo tom que eu ouvia, deveria ser bem ruim.

Dentro do modelo de educação que vivi me parece importante atentar-se à questão de hierarquias. Ao meu ver existem duas principais relações hierárquicas: diretores–professores–alunos e a hierarquia entre alunos “normais” e “anormais”. Nesta, os “normais” são vigias dos comportamentos dos “anormais”, e a título de correção e cobrança de uma postura de acordo com os padrões cis-heteronormativos, aplicam cotidianamente pequenas punições e humilhações. Geralmente os professores legitimam a postura desses alunos. Viviane Mosé comenta que ainda que estes defendam o aluno ‘anormal’, legitimam a opressão, colocando-o em uma posição de fragilidade. No entanto, se o educador desautoriza a atitude do “normal”, ele desfaz a ação. Nunca vivi a desautorização. Ao contrário, a legitimação que mais presenciei foi a que o professor reafirmava a importância de adequação.

A observação do comportamento alheio, como discute Michel Foucault, é parte do aprendizado social dentro das instituições disciplinares. Esse tipo de inspeção resulta em um processo de instalação da heterossexualidade compulsória, que obriga as pessoas a terem uma identidade cis-sexual e praticarem a heterossexualidade. Essa vigília produz um discurso que permite certas identidades e repudia outras. Quando Judith Butler reflete acerca desse sistema, diferencia os seres abjetos dos sujeitos. O abjeto é invisível e se encontra num espaço social “inabitável”, fora da hierarquia dos sujeitos.

Esse era o não-espaço que eu ocupava dentro da escola. E, com o tempo, fomos nos reconhecendo entre os corpos vulneráveis que habitavam a margem. Minha primeira amiga abjeta era uma loira de bunda grande. Fruto do imaginário da “mulher vulgar” (criado pela publicidade, televisão, pornografia…), os sujeitos heterocratas a definiram como “puta”. Éramos ótimas parceiras: a bixa e a puta. Tínhamos dez anos e uma brincadeira preferida, na qual reproduzíamos as brigas que teríamos, imaginando como reagiríamos às próximas agressões: “sabe o que vou responder quando o Bola falar alguma coisa?”.

 

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Nunca fui bom aluno. Eu era lento com as leituras (e ainda sou), não me interessava pelas atividades propostas, não terminava nada e anualmente ficava de recuperação em pelo menos duas matérias. Eu me preocupava mais com a tarefa de me afastar dos temas escolares, ao invés de me interessar por eles. Essa falta de vontade e o mal desempenho gerou preocupações. Me sugeriram que eu fosse ao psiquiatra. Depois de quatro sessões de análise de avaliação, uma tomografia e uma polissonografia, fui diagnosticado: transtorno de déficit de atenção (TDA). Que alívio. Entendemos que minha falta de atenção e de interesse vinha de uma má formação em meu cérebro que dificultava o funcionamento de neurotransmissores. Ritalina® LA 20mg 1x/dia.

Tomei o tarja preta diariamente durante os três anos do colegial. Meu desempenho escolar nesta época melhorou, e de fato eu sentia algum efeito do remédio. Mas essa é uma análise bastante sugestiva, já que justo nesses três anos eu mudei para outro colégio, onde eu era muito melhor aceito. Além de ter uma proposta de ensino menos tradicional, ali eu entrei consciente da minha não-heterossexualidade, e de que minha performance de gênero se distanciava do que se espera do masculino. Em um misto de afirmação e teste, eu usava uma bolsa grande, umas canetas de plumas e aparava os pelos da perna.

As farmaco-políticas são relacionadas por Preciado ao conceito de bio-poder de Foucault. A regulamentação dos corpos proposta por Foucault é fruto de um sistema de ensinamento que regra as ações e condutas sociais das pessoas. O que propõe Preciado é que parte do bio-poder­ exercido hoje vem em cápsulas. E que as substâncias são fortes aliadas no processo de “normalização”, ou seja, mudar as condutas de alguém que sai do que se espera de uma interação social.  A Ciência, portanto, se tornou co-criadora de identidades: a masculinidade é testosterona; depressão, Prozac; concentração, Ritalina… Desde que comecei a me questionar sobre minha perspectiva em relação ao fato de medicarem tanto as pessoas, penso que existe um nível de diagnóstico compulsivo. Parece muito mais fácil diagnosticar uma criança ou adolescente e controlá-lo por medicamento do que analisar seu entorno, (auto)criticar a relação da pessoa com seus responsáveis ou problematizar instituições supostamente oniscientes como a Escola.

No entanto, ainda que me interesse, refleti pouco sobre poder médico, científico, ou diagnósticos compulsivos. Em relação a isso, discuto, por agora, a minha vivência empírica. Mas, quando comecei a pensar nessas questões, me dei conta de que a possível “má formação” no meu cérebro ocultou uma questão muito mais séria: a problemática educação que recebi durante a infância, baseada no modelo hierárquico normal-abjeto. Comemoramos meu melhor desempenho escolar por conta do medicamento, sem levar em conta o novo colégio.

 

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Me parece bastante problemático que tenham sugerido que eu fosse medicado, ao invés refletir o porquê da minha falta de interesse, ou sobre minha “má-formação” acadêmica. Estudar, para mim, tinha a ver muito mais com ser exposto a cobranças de atitudes que não me interessavam, do que com aprender ou pensar. Como comentei, minhas preocupações infantis sempre priorizaram qualquer coisa que não tivesse a ver com o ambiente escolar. A escola era uma obrigação incômoda. Quando me lembro de minha infância, tenho claro que não foi prazeroso ser criança. Mas na pré-adolescência cheguei a agradecer por estar naquele colégio, por achar que ele era uma boa simulação da realidade, “e que o mundo era mesmo agressivo”. Hoje interpreto essa fala como uma forma que encontrei de amenizar a questão emocionalmente – eu não tinha ferramentas para um olhar crítico.

Uma vez que nossa sociedade está estruturada em um sistema binário de gênero (papeis, condutas e desejos), ela será inóspita aos que não se reconhecem dentro deste. Estou com Preciado: a violência de gênero é o próprio gênero. Nosso modelo educativo ainda enaltece as agressões como punições corretivas, em prol do que se nomeia correto e incorreto. E essas relações hierárquico-repressivas sempre são motivadas pelo comportamento frente à sociedade: pais e educadores demonstram a sxs filhxs e alunxs a postura que devem ter em relação aos outros, ensinando que sair do padrão é vergonhoso e inseguro. Priorizam, desta forma, a reprodução alienada em detrimento da subjetividade afetivo-intelectual.

Paulo Castello é artista plástico e investiga as inúmeras possibilidades do gênero, dos corpos e dos sexos.

Ilustração: Lia Urbini e Gui Mohallem

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