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A bruxa revolucionária
Jiang Qing foi a única mulher entre os principais líderes da Revolução Chinesa. E sofreu as consequências disso. Por Andrea Longobardi
Como muitos nomes de país, o nome China não mostra uma nação. Talvez mostre muitos lugares com algumas coisas em comum, e a força militar que garante uma unidade. Não há nação nem negócio da China.
Para situar-nos ali, deixo algumas informações menos comentadas: na China, o que os lugares têm em comum são as cores – verde-escuro, verde-musgo, amarelo sépia, amarelo deserto. A maior parte da terra não é muito fértil, e um pequeno agricultor fica muito feliz com uma cenoura de mais ou menos sete centímetros de comprimento. É muito comum alguém passar fome algumas vezes na vida, comer pão cozido com pimenta para enganar o estômago. Então, porque as coisas da terra são difíceis, tem as coisas bonitas que as pessoas fizeram. Por exemplo, transformar a água em comida e remédio. Beber a água em que se cozeu o macarrão é a sopa-delícia; beber água quente porque ajuda na gastrite, na gripe, na fome, na bronquite, em quase tudo; fazer suco geladinho da água em que se cozeu o feijão-verde e servir alegre às visitas.
Além dessas criações com a água, a China tem também a história das palavras. Primeiro, os imperadores e os mandarins precisavam ler e escrever ideogramas para impor leis e exigir impostos das regiões que não falavam a língua han – o idioma comum do império era a escrita. Escrita só de privilegiados. Durante a Revolução, iniciada em 1949, os ideogramas foram simplificados para que todos os conhecessem. Hoje, na China, mesmo quem não sabe ler e escrever conhece palavras. Uma pessoa, 人, aparece andando; se está de braços abertos, 大, significa “grande”; se está embaixo da linha, 天, significa “céu”.
Pronto, aqui: terra, pimenta, água e palavra – coisas que tem em comum na China, e que se trocam prazerosamente mesmo entre pessoas que não falam a mesma língua ali.
江青, Rio Anil
Posso agora falar da 江青. O nome dela é transcrito como Jiang Qing e se pronuncia “djian tching”. Esses dois ideogramas querem dizer “rio”, 江, e “anil”, 青. 江também é o nome do rio Yangtzé (em chinês, 长江, o “longo rio”). O Yangtzé é o “Pai Chico” da China, porque alimenta uma grande parte do país, inclusive regiões desérticas. Foi a própria 江青quem escolheu seu nome, em 1938, quando se casou com Mao Tsé-Tung num acampamento comunista em Yan’an, noroeste da China, entre cavernas, em uma terra semidesértica.
Um ano antes, ela era atriz em Xangai. Membro do Partido Comunista, dava aulas sobre política em algumas fábricas e fazia parte de um secreto grupo comunista de teatro. Ela tinha chegado em Xangai com 16 anos, em 1930, escondida da família, com duas mudas de roupa, procurando trabalho e teatro.
“As únicas coisas que eu sabia eram que eu não queria mais passar fome e que eu adorava teatro.”
(Depoimento em entrevista de 1972)
O nome artístico dela naquele período era Maçã Azul (Lan Ping 蓝苹), mas ela também tinha o nome Garça das Nuvens (Li Yunhe 李云鹤. Li era seu sobrenome de família, e Yunhe fora escolhido por um professor dela no colégio porque ela tinha pernas finas).
Em Xangai, os comunistas estavam sendo perseguidos pelo Partido Nacionalista, e, em 1937, os japoneses invadiram a cidade. 江青decidiu fugir. Na saída da cidade, militares nacionalistas a encontraram e ela ficou presa oito meses. Libertada no fim daquele ano, saiu de Xangai e foi, de trem, a cavalo e a pé, até o acampamento das Bases Vermelhas, em Yan’an.
A longa marcha
Era nesse acampamento que estava nascendo o sentido do comunismo chinês – unindo marxismo-leninismo e a vida camponesa do sertão da China, uma região pobre e semiárida. Os comunistas assentaram ali as Bases Vermelhas em 1935, depois de dois anos atravessando a pé os 9 mil quilômetros entre rios, montanhas e guerrilhas que ficaram conhecidos como a Longa Marcha – uma retirada estratégica para escapar dos ataques dos nacionalistas. Em Yan’an, começaram a construir uma experiência de comunismo: alfabetização, estudo de livros e temas políticos, peças de teatro, exercícios com armas, prática de gritos de guerra medievais para assustar os inimigos, agricultura e trabalhos cotidianos em cooperativa e rotativos. Moravam todos em cavernas – o que é comum naquela região até hoje, porque a caverna é fresca no verão e quente no inverno.
Alguns dias depois de 江青chegar em Yan’an, ela conheceu Mao Tsé-Tung. Com o tempo, virou secretária e companheira de Mao, e em 1938 eles se casaram nas Bases Vermelhas. Nesse tempo, 江青também cuidava do filho da ex-esposa de Mao, que estava internada na Rússia após sofrer muitos ferimentos e crises psíquicas durante as guerrilhas.
江青foi secretária de Mao por 11 anos de guerrilhas e também continuou sendo atriz nos grupos de teatro comunistas. Em 1949, depois de grandes pelejas com latifundiários, japoneses e nacionalistas, o Partido Comunista tomou o governo e proclamou a República Popular da China, com apoio de grande parte da população.
Desde então, 江青fez parte do Ministério da Cultura. Ela começou ali um grande trabalho de crítica e transformação das artes mais valorizadas. É que, na China, há séculos e séculos, o que se chama “arte” é um conjunto de estilos e técnicas entendidos como “nacionais”, mas que na prática eram só imperiais. O gosto dos imperadores é que definia o que podia ser chamado de arte: a Ópera de Pequim, pinturas de montanhas com pessoas da corte lá no meio cantando ou fumando, a caligrafia da língua clássica para os mandarins. Aquela conversa de “tradição milenar chinesa” vem disso: um imperador depois do outro, mesmo quando as práticas de governo mudavam, usava da “tradição milenar chinesa” para garantir sua permanência na liderança.
Típicas personagens femininas na Ópera de Pequim tradicional, similar desde o século 17 e, depois da Revolução Cultural, até os dias atuais
“Por sete séculos eu fui
Escrava devotada de um mandarim
Trançava ouro em seus bigodes, seus pagodes
Forrava sua cama de cetim
Regava suas flores de cristal
Bordava rouxinóis em seu jardim
E agora, com a queda do império
Falando sério
O que será de mim?”
(Canção de Jussi Campelo, interpretada por Cida Moreyra)
Mesmo depois de duas revoluções, em 1911 e 1949, mexer na ópera, no teatro nacional e nas pinturas de nanquim despertou o ódio de muitos. No começo, 江青propôs só mudança de temas: em lugar de novelas de traição e concubinas, dominação imperial e mercenários, ela propôs guerrilheiras, camponesas lutando contra latifundiários, operárias que se organizavam em cooperativas (sempre muitas personagens mulheres revolucionárias). Uma das coisas mais importantes, ela dizia, era eliminar fantasmas e monstros – o foco deveria ser a vida criada pelos humanos. Nas músicas que acompanhavam as peças, ela propôs inserir mais instrumentos de percussão, para que a peça tivesse o tom da guerrilha e da luta.
Uma cena da Ópera de Pequim em 1962, recriada segundo
o pensamento revolucionário
A maioria dos integrantes do Comitê Central do Partido criticava as mudanças propostas por 江青(embora o partido fosse um só, tinha alas mais radicais e alas mais conservadoras), especialmente quando se falava na menina dos olhos do poder central, a Ópera de Pequim. Diversas vezes, o exército interditava os teatros antes dos ensaios e das apresentações de peças que rompiam com a tradição. Ameaças eram feitas, mas, como 江青tinha o apoio de Mao, sua vida e muitas de suas atividades foram poupadas… por um tempo.
Rebele-se!
No meio dessa luta política, não se sabe exatamente quando, entre 1949 e 1961, ela teve câncer na faringe e precisou passar por várias sessões de radioterapia. Quando descobriu a doença e precisou ficar alguns meses hospitalizada, o filho que ela criava – do casamento anterior de Mao – foi sequestrado e levado não se sabe para onde. Disseram a ela que a providência fora tomada porque ela precisava cuidar somente de sua saúde.
Em 1961, 江青estava finalmente livre das sessões de radioterapia. Ela então voltou para Xangai, onde conhecia alguns escritores comunistas que trabalhavam com teatro e arte. Juntxs, assistiram a muitas produções artísticas da cidade e dos arredores e, por cinco anos, mais ou menos, ela organizou ali grupos de teatro comunistas e escreveu artigos sobre o tema para os jornais locais.
Em 1966, começou uma grande reviravolta. O grupo maoista decidiu enfrentar um monstro que havia anos vinha se instalando no partido: a burocracia. Como o Partido Comunista estava então com o poder do Estado, os membros e governantes tinham privilégios e muitas vezes abusavam do poder e do status. Além disso, quando o Partido torna-se também Estado, a rebelião fica de escanteio, e a “ordem” tem que ser preservada. O maoismo rebelou-se contra isso com lemas como “Só o povo pode educar o povo”, “Só através de conflitos e debates se descobrem os problemas e como resolvê-los”, “Rebelar-se tem razão!”.
Assim começou a campanha da Grande Revolução Cultural Proletária, que dava liberdade de associação irrestrita no país e estimulava que todxs estudassem e debatessem as políticas em vigor, transformando o que estivesse errado e propondo novas formas de organização e trabalho.
江青foi apontada para ocupar um cargo no Comitê Central do Partido Comunista chinês, dentro do Grupo Central da Revolução Cultural – a única mulher entre 19 homens. Eram todos maoistas, responsáveis por mediar os movimentos populares radicais durante a Revolução Cultural. O Grupo Central apoiava operários, estudantes e camponeses que se rebelavam contra autoridades locais, e procurava unificar os movimentos para que pequenos grupos rebeldes resolvessem suas diferenças no debate, e não no enfrentamento com armas.
Nesse período, 江青realizou inúmeras atividades importantes. Entre 1966 e 1968, ela trabalhou principalmente com operários, realizando seminários sobre teatro popular e apoiando a criação de grupos de estudo político nas fábricas. 江青começou também a organizar grupos de teatro, poesia e pintura no Exército Popular da Liberação.
Entre 1968 e 1970 ela propôs uma nova forma de organizar a produção do teatro e do cinema: a Combinação Tríplice, que tentava integrar membros do Partido, artistas, proletários e camponeses. Primeiro, os integrantes do Partido selecionariam temas que fossem importantes no momento; se a peça fosse sobre operários numa mina de carvão, por exemplo, os artistas iriam até a mina e passariam ali alguns meses fazendo os “três juntos” (comer junto, morar junto e discutir junto – 同吃同住同商量), discutiriam a peça com os mineradores e só então a apresentariam, em teatros ambulantes e na cidade.
江青ainda propôs que os operários e camponeses assistissem aos ensaios e tivessem liberdade para propor mudanças quando vissem incoerências entre os personagens e a realidade do seu dia a dia.
Uma parte do governo se enfureceu com essas mudanças. “Feio! Ridículo! A cultura – meu deus, a cultura!!! –, onde andará a cultura mi-le-nar da China?!” Mas o trabalho continuou, mesmo aos trancos e barrancos, enfrentando as críticas e oposições de grandes lideranças e de intelectuais.
A liberdade de associação e de debates públicos permitiu, durante a Revolução Cultural, a autoproclamação de milhares de associações independentes. O debate político era muito intenso e, muitas vezes, especialmente entre jovens, a briga de facções era muito violenta. Alguns grupos de Guardas Vermelhas estudantis criaram uma teoria chamada Linha de Sangue, que dizia que os filhos de revolucionários ou de pobres camponeses e operários eram revolucionários de nascença. Já filhos de burgueses ou proprietários ricos seriam párias natos. O lema era: “Parentes heróis, boa pessoa. Parentes da oposição, pessoa cretina”.
Apesar das críticas feitas pelos líderes maoistas, inclusive pelo próprio Mao, essa carantonha teórica foi disseminada entre as Guardas Vermelhas, assim como os conflitos armados entre facções que concordavam ou não com isso. 江青iniciou então uma série de assembleias com os estudantes e jovens artistas para auxiliar no combate à teoria da Linha de Sangue e às brigas de facções. Ela inverteu o lema do dogma: “Parentes revolucionários, continue! Parentes da oposição, rebele-se!”. Em seguida, visitou escolas e universidades debatendo o tema com estudantes.
Uma mulher no poder
Em 1974, 江青conheceu uma vila rural perto de Xangai, chamada Xiaojinzhuang (小靳庄). Ali, a Revolução Cultural tinha organizado várias cooperativas que tiveram muito sucesso na coletivização do trabalho. Como a maioria da população era maoista, 江青ajudou a organizar nessa vila vários projetos: escola política noturna para camponeses, alfabetização, teatro popular, grupos de poesia e de cinema. Ali ela conclamou também o movimento Mulheres no Poder, chamando as mulheres a tomarem a liderança política, organizarem seminários e estudarem.
Em Xiaojinzhuang, ainda em 1974, 江青iniciou a campanha Criticar Confúcio. Essa campanha, a última idealizada por ela, se espalhou por muitos lugares do país. Criticar o confucionismo foi, sem dúvida, uma das coisas mais importantes que 江青fez. Os Analectos, de Confúcio, uma compilação de “frases de efeito” escritas pelo filósofo, apoiavam a hierarquia na sociedade e na família, o legalismo, a submissão das mulheres, a supremacia do trabalho intelectual sobre o trabalho braçal e… as artes “superiores”.
Mas, em agosto de 1976, Mao Tsé-Tung, já doente há um ano, morreu. Como a Revolução Cultural tinha propagado grandes polêmicas na sociedade, grandes conflitos difíceis de apaziguar, muitas pessoas esperavam ansiosamente pela paz e pela ordem. Mal se sabia que, depois de encerrada a Revolução Cultural, a ordem viria, sim, acompanhada da repressão militar e da censura do direito de livre associação. A ala conservadora do Partido, associada ao Exército, realizou um golpe de Estado.
江青e os outros três integrantes remanescentes do Grupo Central da Revolução Cultural foram presos e renomeados pejorativamente, pelo novo poder instaurado, como A Gangue dos Quatro. Como elxs eram defensorxs do maoismo e apoiaram os rebeldes e as associações independentes no país, foram julgadxs responsáveis pelos excessos de violência entre facções durante a Revolução Cultural. Em toda a China, milhares de maoistas foram presxs, torturadxs, mortxs, muitas vezes em grupos de quatro – três homens e uma mulher –, sob o epíteto de Pequenas Gangues dos Quatro.
江青não sairia ilesa por ser a única mulher na mais alta instância de poder do Partido. Ela era acusada de ser a grande bruxa da Revolução. Alvo principal dos ataques inimigos, contra ela multiplicaram-se insultos, que tinham mais de misoginia do que de condenação ideológica – “sem coração”, “cruel”, “adúltera”, “vingativa”, “assassina”, “promíscua”, “obsessiva”, “louca”, “de voz esganiçada”… E pululavam diagnósticos médicos sobre ela: “psicose”, “síndrome do pânico”, “esquizofrenia”.
江青ficou presa sem julgamento por cinco anos. Em 1981, seu julgamento foi televisado para toda a China, e ela foi condenada à morte.
Jiang Qing em seu julgamento (25/01/1981)
Mas a sentença foi mudada por medo de haver protestos populares. 江青ficou presa até 1991, quando teve de internar-se, novamente com câncer. Três meses depois, aos 77 anos, ela se enforcou no hospital. Deixou uma nota: “A Revolução sofreu um golpe. O capitalismo tomou o Partido. Vou me juntar ao camarada Mao”. Os jornais chineses quase nada falaram sobre o evento. Um jornal em Xangai noticiou o suicídio com dois parágrafos, sem detalhes, e terminou com a frase: “A bruxa está morta”.
Desde 1976, a teoria oficial – oficial mesmo!, escrita por “historiadores” e “testemunhas” e assinada embaixo pelo Comitê Central do Partido – é de que tudo o que 江青fez, desde jovem, foi com o objetivo de subir no poder, e só. Transformou-se em história a seguinte lenda: por ter passado uma infância pobre e difícil, 江青quis subir na vida; para subir na vida, foi até Yan’an e seduziu Mao com suas artimanhas de atriz; depois, como alguns membros do Partido não gostavam dela porque ela não tinha nível universitário, quis se vingar de todos durante a Revolução Cultural; como sua raiva e sua insanidade eram excessivas, milhares de pessoas foram mortas porque ela incitava os jovens à violência. Assim se conta até hoje. Uma história de bruxa, sem provas nem documentos.
A bruxa é uma trabalhadora
Mas me disseram que os nossos inimigos nos conhecem melhor do que ninguém. É possível… A bruxa da Revolução, sim, por que não? A revolução também requer as suas bruxarias. Especialmente no sentido que a China dá à magia: poderes que todxs têm de transformar a realidade humana, o humano que cria. As bruxas são só trabalhadoras.
E vingativa? Sim! Os movimentos revolucionários são uma vingança histórica. Toda vingança revolucionária, para acontecer, precisa que as vozes oprimidas do passado sejam ouvidas, e é daí que vem a força para destruir o velho opressor e construir o novo libertário, o novo caminho. Esse movimento – ouvir a dor do passado e (co)mover-se, junto com o fantasma-alimento do passado – é uma vingança e é amor.
A loucura atribuída a 江青é um jeito de dizer que ali, na Revolução e numa de suas principais líderes, não havia razão. Rebelar-se, para o governo chinês de depois de 1976, NÃO tem razão… tem loucura. Assim como hoje vemos a violência de “vândalos”, “baderneiros” e “terroristas” ser tratada como uma loucura. Mas sabemos que há razões.
Há todos os tipos de vingança e todos os tipos de obsessão. As de 江青foram a fome e o drama. Por isso, a vida toda ela alimentou uma vingança obstinada: criar uma arte voltada para xs trabalhadorxs mais pobres. Criar caminhos para que aquelxs que conhecem a fome empoderem-se de seu próprio drama – e de sua superação. Ser o rio azul, levantar a bandeira vermelha.
Andrea Longobardi estudou pedagogia, rebelou-se e agora estuda a Revolução Cultural Chinesa no doutorado em história. Estudou um tempo na China. Trabalha com jovens chineses imigrantes com problemas nas escolas, e também no Programa Mais Médicos, do Ministério da Saúde. Não se rebelou o bastante.