Geni é uma revista virtual independente sobre gênero, sexualidade e temas afins. Ela é pensada e editada por um coletivo de jornalistas, acadêmicxs, pesquisadorxs, artistas e militantes. Geni nasce do compromisso com valores libertários e com a luta pela igualdade e pela diferença. ISSN 2358-2618

política

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Asamblea Feminismo Comunitario

Não basta um feminismo das explicações, é preciso propor e construir um projeto político. Da Bolívia

 

 

paula

 Paula Modersohn Becker | Self-Portrait with an Amber Necklace | 1906

 

 

 

Um feminismo útil para a luta dos Povos

 

feminismo comunitário foi concebido na Bolívia dentro do processo de transformação protagonizado por um povo que deseja viver com dignidade, um povo que está questionando o sistema patriarcal, capitalista, neoliberal, colonial, transnacional, um povo comprometido com a despatriarcalização, a descolonização e a autonomia.

O feminismo comunitário não é uma teoria, é uma ação política que se nomeia, mas é evidente que aprendemos que, além de lutar pelo território e além de lutar nas ruas, é preciso lutar no território das palavras, disputar a hegemonia dos sentidos e significados do pensamento eurocêntrico. Consequentes nessa luta, nos chamamos feministas e construímos nossos próprios conceitos como um ato de autonomia epistemológica. O feminismo comunitário hoje é um movimento em Abya Yala que se articula com irmãs da Argentina, do Chile, da Bolívia e do México, sendo, assim, uma ferramenta de articulação e luta.

A partir deste feminismo que construímos a cada dia, acreditamos não ser possível falar em um movimento feminista na América Latina e no Caribe, e sim de coletivos, organizações – acadêmicas e “estudiosas” que não conseguiram se articular pois seguem construindo o movimento a partir de um feminismo colonizado e colonizador, a partir de categorias insuficientes e fragmentadas, promovendo lutas temáticas, por direitos, pela diversidade, pela inclusão, distanciando-se assim da luta contra o sistema. Falamos de um feminismo que, ao deixar de ver e nomear o patriarcado, ou ao reduzi-lo a uma relação entre homens e mulheres, perdeu a perspectiva revolucionária e tornou-se funcional a ele.

Estabelecendo que não há um movimento feminista na região, fato que constatamos no XIII Encontro Feminista da América Latina e do Caribe, EFLAC, realizado no Perú em novembro de 2014, por meio da institucionalidade das ONG’s, ao qual presenciamos não apenas a carência de propostas, mas também de rebeldia e capacidade de sonhar, acreditamos que é possível identificar alguns dos desafios que hoje chamam a atenção das feministas que decidem assumir a responsabilidade política de lutar contra o sistema patriarcal.

 

 

Descolonizar o feminismo

 

Para o feminismo comunitário, o feminismo é a luta de qualquer mulher, em qualquer parte do mundo, em qualquer tempo da história, que luta, se rebela e apresenta propostas ante um patriarcado que a oprime ou que pretende oprimi-la. Assim, descolonizar o feminismo é deixar de pensar a partir dos parâmetros do feminismo eurocêntrico, pois este demonstrou-se insuficiente e preso a um sistema de direitos que, na realidade, encobre os privilégios de umas e uns poucos frente às opressões das maiorias. Descolonizar o feminismo é deixar de pensar a partir da dicotomia do colonizador e do colonizado, é deixar de assumir o tempo como linear e o pensamento como superação das lutas, a classe como explicação suficiente e a pós-modernidade como projeto político.

Descolonizar o feminismo é voltar a olhar o patriarcado em sua complexidade; para o feminismo comunitário, o patriarcado é o sistema de todas as opressões, não é um sistema a mais, é o sistema que oprime a humanidade (mulheres, homens e pessoas intersexuais), a natureza, construído historicamente e todos os dias sobre o corpo das mulheres. Descolonizar o feminismo, tem sido para nosotras pensar contra o patriarcado, recuperando a vasta memória de nossos povos aymaras, huicholes, quechuas, mapuches, tzotziles, tzeltales, para construir um projeto político de sociedade e de mundo, a comunidade e a comunidade das comunidades.

Um desafio para o feminismo é deixar de dar conta somente das opressões. Não basta um feminismo das explicações, é preciso propor e construir um projeto político. Isso implica em reconhecer que ser negra, ser lésbica, ser jovem, ser indígena, é uma posição política, mas não um projeto político de mundo, que é o que nós, os povos em luta, exigimos hoje.

 

 

Superar as categorias e as formas sectárias de suas lutas

 

Não podemos continuar assumindo que o feminismo se reduza à equidade de gênero, à igualdade, à diferença ou à luta pelos direitos, quando os povos da América Latina e do Caribe lutam por um outro modelo de vida – na Bolívia, pelo bem viver. Superar as categorias do feminismo que veem a realidade segmentada e assumem nós, mulheres, como um tema entre tantos outros temas, um setor entre tantos outros setores, que quer incluir-se no sistema, é outro desafio. Isso implica em superar a visão de gueto, de superioridade, de luta desarticulada da luta dos povos que assumiram as feministas.

Apenas em luta com nossos povos conseguiremos contribuir para visualizar o patriarcado como um sistema de opressões. É preciso colocar o corpo e não nos ajustarmos ao coletivo, à performance ou à academia.

 

 

Um feminismo útil para a luta dos povos

 

Tudo isso está relacionado com o desafio maior, o de construir um feminismo útil para a luta dos povos dos quais somos parte, que realoca a discussão sobre o aborto no campo da autonomia e da descolonização do corpo e da sexualidade, que desmonta a maternidade em escravidão e solidão com a criança comunitária como responsabilidade com a vida, um feminismo que, reconhecendo o trabalho não remunerado das mulheres do lar como base constituidora do capitalismo, não construa um modelo econômico que reedite a exploração de ninguém nem da natureza; que construa modelos de recuperação dos recursos, circulação dos produtos e convivência com a natureza para o bem viver.

O feminismo comunitário tem encarado estes desafios. Falamos a partir de um feminismo descolonizado, construímos conceitos, categorias e ações úteis para desmontar o patriarcado. Temos como proposta a comunidade como forma de vida que se constrói a cada dia e que é a forma de garantir que o patriarcado não se recicle. A partir deste caminho e sabendo que é necessário constituir um movimento feminista regional e mundial, convocamos ao Primeiro Encontro de Feminismo dos Povos, que se realizará na Bolívia em 2016, porque não deixamos de sonhar e porque sabemos que os sonhos se constroem a cada dia em comunidade.

 

 

 

 

Adriana Guzmán, Feminismo Comunitario

MAIS INFORMAÇÕES:

http://hemisphericinstitute.org/hemi/pt/e-misferica-111-gesto-decolonial/paredes-carvajal

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