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Maternidade lésbica e tecnologias reprodutivas

Como a reprodução assistida tem promovido o reconhecimento legal de novos modelos de família. Por Anna Carolina Horstmann Amorim

 

 

Publicado em 09/03/2016

 

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A reprodução assistida no contexto das diversas formas de reprodução

 

De novelas a debates políticos, vemos com cada vez mais frequência no Brasil discussões sobre novas formas familiares. Tais questionamentos surgem como ecos das transformações da esfera familiar que circundam as sociedades ocidentais nos últimos quarenta anos. Divórcios, novos casamentos, gestações de substituição (1) (mais conhecidas como barrigas de aluguel), recurso a tecnologias reprodutivas e adoções trazem à tona novas formas de se fazer família e estabelecer laços entre as pessoas. Dentre esses novos modelos, as famílias formadas por mulheres lésbicas despontam como mais uma forma possível.

É certo que por algum tempo se pensou como evidente que a pessoas homossexuais e casais formados por pessoas do mesmo sexo estaria excluída a reprodução. Tal ideário pressupunha esses indivíduos cercados por uma infertilidade voluntária que tornava antagônica, por exemplo, a relação entre lesbianidade e maternidade.  No entanto, e principalmente através do uso de tecnologias reprodutivas, acompanhamos hoje um acelerado crescimento de famílias que se formam na confluência entre lesbianidade e maternidade, formando um campo de estudos que nos últimos anos tem vivenciado um florescimento das pesquisas acadêmicas e debates: as homoparentalidades (2).

A literatura a respeito do tema entende que há diferentes modos de um casal homossexual exercer a parentalidade. Uma primeira maneira apontada é a concepção de filhxs em relações heterossexuais anteriores e que são posteriormente inseridxs no bojo de novas relações homoconjugais de suas mães ou pais. A segunda maneira possível é através da adoção, seja ela por apenas um indivíduo do casal, seja pelo casal enquanto unidade. Importante lembrar que o cenário das homoparentalidades possíveis através da adoção no Brasil tem enfrentado mudanças radicais a partir da resolução de 2011 do Supremo Tribunal Federal, que regulariza a união estável de casais formados por pessoas do mesmo sexo, bem como a partir da recente possibilidade de casamento civil também entre pessoas do mesmo sexo. Outro modo encontrado por casais formados por pessoas do mesmo sexo para exercer a parentalidade é através da relação sexual com fins reprodutivos entre alguém do casal e umx amigx/conhecidx do outro sexo. Tem-se, ainda, a possibilidade de casais homossexuais optarem por ter umx filhx a quatro ou a três.

Os demais modos de realizar a parentalidade lésbica, gay ou trans são derivados do recurso às tecnologias reprodutivas. São elas: inseminação caseira com doador conhecido, inseminação em clínica com doador anônimo ou conhecido e gestação de substituição. Meu foco aqui recai sobre os casos de reprodução assistida de mulheres lésbicas cissexuais, realizadas em clínicas especializadas.

 

 

A possibilidade da escolha: filhxs como projeto

 

É em 1984 que nasce em nosso país o primeiro bebê de proveta e que as investidas no campo das tecnologias reprodutivas se consolidam. Com o desenvolvimento dessas tecnologias, a intimidade do casal é levada para dentro do laboratório, onde a técnica e a intervenção médico/científica especializada e capacitada é dirigida à manipulação de gametas, de órgãos e de embriões confeccionados de forma exterior ao corpo, demarcando de maneira sensível a separação entre sexo e reprodução.

Vemos consolidar-se um campo de atendimento bio/médico reprodutivo que emerge na intenção de contornar a infertilidade de casais heterossexuais. Ainda assim, e à revelia de seus propósitos iniciais, os avanços técnicos disponíveis nas clínicas de reprodução abrem brechas para que outras pessoas possam dar cabo de seus projetos parentais através do recurso a doações de gametas ou embriões ou ainda a gravidezes de substituição (3). É justamente a possibilidade de dissociar sexo e reprodução o mote do sucesso destas clínicas entre as populações LGBT.

Vemos que através das tecnologias reprodutivas a filiação passa de consequência natural de uma relação a um projeto construído. Destaco que no seio das famílias lesboparentais (4) estudadas a escolha emerge como fundante, já que para a confecção de suas famílias é preciso disponibilidade, pesquisa e investimentos dos sujeitos em um projeto comum.

Assim, as maternidades lésbicas no foco da pesquisa baseiam-se na ideia de projeto comum de um casal que pensa, reflete e escolhe a hora e a maneira de ter filhos. Se entre os casais heterossexuais é presumido que tenham filhxs, a “opção” permite que não xs tenham. Já para os homossexuais, o sentido dessa presunção é que não tenham filhxs, fazendo com que a “opção” implique numa ação positiva e consciente (TARNOVSKI, 2004). Nestas famílias a filiação é planejada, esperada e, sobretudo, tem um lugar e um peso na legitimação das vivências conjugais lésbicas enquanto família, como bem nos informa a frase que ouvi em uma conversa informal durante minha pesquisa de campo:

                Nós já somos uma família, só faltam xs filhxs!

 

 

Do casal à criança: construindo a família

 

É corrente que a revelação da homossexualidade das filhas não produza contentamento no seio da família de origem. Muitas são as narrativas sobre desentendimentos, brigas e sobre a quase inevitável compreensão da lesbianidade como um problema. Tais posturas acabam, muitas vezes, por gerar um significativo distanciamento entre filhas lésbicas e seus pais e demais parentes, distanciamento que por vezes perdura por longos períodos. Ainda assim, assumir-se perante a família de origem aparece como elemento central na experiência destas mulheres. Esta decisão, no entanto, não é vivida sem dores ou prejuízos às relações estabelecidas.

Neste sentido, observei durante minha pesquisa que a vida em conjugalidade parece atenuar os impactos da homossexualidade sobre o entorno social. É como se o estar em casal pudesse normalizar uma sexualidade desviante ou pudesse retirar, ao menos um pouco, toda a aura de perigo que a lesbianidade carrega. Logo, compreende-se o que significa a afirmação Nós já somos uma família, referida aos anos de vida conjunta do casal: a existência de uma moradia fixa e, especialmente, a manutenção do amor entre as parelhas, sinônimos aqui de família. É como se a partir da conjugalidade a lesbianidade encontrasse terreno para existir.

O casal parece então ser a folha de rosto das relações familiares entre lésbicas. Entretanto, o casal não impera simplesmente como estandarte supremo do dar a ver, ou, como queiram, da saída do armário, e muitos casais continuam à margem de suas famílias de origem. A conjugalidade acena como ponto de partida para a consecução da família, que necessita, para se completar (vale dizer, para se estabelecer e para ser definitivamente sentida como tal), dxs filhxs.

Observamos que é pelo compartilhamento da experiência da parentalidade (5) que a distância existente entre família de origem e filha lésbica é encurtada. Os laços de parentesco falam mais alto, a família se reafirma e o pertencimento da filha lésbica na teia familiar é reconstituído. Tudo se passa como se a filha lésbica, muitas vezes distanciada ou percebida como um problema ou desconforto, e que tanta outras vezes ficou à margem da família extensa, voltasse a pertencer, através de suas/seus filhxs, à sua família de origem. Do estigma e da diferenciação, estas mulheres parecem, por um passo, ou melhor, por uma gravidez, ascender ao lugar de prestígio assegurado pela completude da família através da criação de crianças.

Mas se ter filhos através de tecnologias reprodutivas pode parecer simples para os casais de mulheres lésbicas, o reconhecimento desta filiação não é tarefa fácil, principalmente se falamos do duplo reconhecimento da maternidade, ou seja, do reconhecimento das duas partes do casal igualmente como mães de suas/seus filhxs. Isso porque ainda vigora em nossa sociedade uma noção bastante biologizada e cristalizada do significado da família e do parentesco.

Vejamos, por exemplo, a polêmica gerada, em 2015, pelo Estatuto da Família, de autoria do deputado Anderson Ferreira (PR–PE). O projeto, que tramitou pela Câmara dos Deputados, tem como propósito a definição de família apenas como a união entre homem e mulher. Tal Estatuto nega aos casais formados por pessoas do mesmo sexo o reconhecimento enquanto família e qualquer direito advindo desse reconhecimento. Toma a família como uma entidade engessada e não atenta para as transformações sociais que incidem também sobre o fazer famílias e parentesco. Excluí as possibilidades de reconhecimento de parentalidades que escapem da regra heterossexual fixada na biologia e na possibilidade de existência de apenas um pai e uma mãe para cada pessoa.

Não obstante, nos casos de homoparentalidade os laços biológicos não coincidem necessariamente com os laços afetivos e com o exercício da parentalidade e, por vezes, a filiação biológica não corresponde à realidade das famílias. Estes casos tornam visível o quanto o social e o natural se relacionam na fabricação dos laços familiares.

Em sintonia, nosso sistema de parentesco conjuga três diferentes modos de pensar a filiação. Uma forma deriva da biologia e define que pais de uma criança são seus genitores. Outra defende que pais de uma criança são aquelxs que compartilham com ela o cotidiano, assumem perante ela as responsabilidades educacionais e as trocas afetivas. Uma terceira garante que pais de uma criança são aquelxs que lhe dão nome e sobrenome, ou seja, aqueles que mantêm com ela um vínculo legal.

Logo, os casais lésbicos que recorrem a tecnologias reprodutivas estariam, de princípio, pautando-se em um duplo viés da filiação, visto que entre eles há uma mãe que gesta e outra que partilha do exercício parental cotidiano, mas não mantém vínculo biológico com a criança. Ambas seriam mães de suas/seus filhxs. No entanto, vivemos sob a prerrogativa da bio/genética como definidora central dos laços de parentesco e formadora da família. Assim, é ela que assegura de modo mais legítimo quem é a “mãe verdadeira” e por consequência, quem são os “parentes verdadeiros”.  Isso porque nosso sistema de filiação, apesar de basear-se nestas três dimensões, dá um peso maior e um reconhecimento irrefutável apenas ao biológico e ao legal.

Quando falamos de maternidades lésbicas, nos deparamos muitas vezes com o não reconhecimento legal da dupla maternidade destes casais. Ou seja, a mãe que não gera sua/seu filhx muitas vezes fica resguardada do reconhecimento legal do seu vínculo com a criança e sente sua posição enquanto mãe ser constantemente ameaçada. Ainda que em sua realidade ela vivencie esta experiência parental, ela não ascende ao lugar de mãe verdadeira. Evidencia-se, então, uma diferença significativa nos modos em que mulheres lésbicas vivenciam, em suas famílias lesboparentais, a maternidade.

Se a mãe que gera tem seu lugar assegurado desde o momento em que engravida, a mãe que não gera necessita de outros caminhos para esse reconhecimento. O reconhecimento perante a lei da maternidade da mãe que não gesta seria um bom caminho e garantiria a possibilidade de transmissão da descendência familiar também da mãe que não engravidou. Realidade que ocorre nos casos de adoção, onde o processo legal garante a filiação e o reconhecimento da parentalidade e, por extensão, do parentesco. Podemos, portanto, finalmente pensar que a filiação hoje não é somente um fato biológico ou derivado da escolha individual e do cuidado – é antes e sobretudo uma instituição de ordem pública, como bem sugere Agnès Fine (2013).

Entretanto, sabemos que a dupla maternidade legal não é uma realidade de fácil acesso para estes casais, e eles correm na tentativa de construir estratégias que deem conta de legitimar as parentalidades lésbicas.

 

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Diferentes caminhos: tecendo relações, construindo parentesco

 

Sem o reconhecimento explícito de suas/seus filhxs enquanto suas/seus filhxs por parte da sociedade e de seus familiares de origem, os casais lésbicos valem-se de estratégias outras que assegurem tais pertencimentos. Dentre as estratégias utilizadas pelos casais lésbicos para assegurar o lugar da dupla maternidade de seus filhos está o recurso à técnica conhecida como ROPA (recepção de óvulo da parceira). Esta técnica consiste na fertilização do óvulo de uma das partes do casal com sêmen de um doador, seguida da implantação do embrião no útero da mulher que não doou o óvulo. Tal procedimento, bastante realizado no Brasil, encontra eco nos desejos destes casais de garantir uma dupla participação biológica na reprodução, como bem se destaca na fala abaixo, onde um casal de São Paulo conta como decidiram pelo uso da ROPA:

 

Olha, o médico falou que realmente eu sou infértil, não produzo nenhum óvulo, o que eu produzo não é suficiente e não tem qualidade. Porém, ele sugeriu: “Será que a Maria não doa pra você?” “Ah! Eu acho que doa”. E aí eu gostei da ideia. Falei [para Maria] “Olha, é uma forma das duas terem uma participação biológica. Biológica no sentido que eu vou doar o óvulo e você vai gestar”. E ela [Maria] disse: “Então legal, vamos fazer?”. “Vamos!”.

 

Este procedimento, como destacado acima, é muitas vezes sugerido pelo médico e muito bem recebido pelos casais, e vem daí a legitimidade do “filho seu”, entendido como filho biológico, imperar frente outras possibilidades de estabelecimento da filiação. Ainda que esse recurso à dupla participação das mães esteja pautado na supremacia do modelo bio/genético de pertencimento e parentesco, esses casais, ao recorrerem à ROPA, acabam por extrapolar os próprios limites da bio/genética ao desmembrarem procedimentos e introduzirem novas possibilidades e caminhos para o que era compreendido como tendo apenas uma única rota. Misturam-se gametas, misturam-se corpos e fabricam-se duas mães biológicas. Duas mães biológicas. Este construto novo que conversa de perto com as noções biologizadas do parentesco é também a porta de entrada para o reconhecimento da dupla maternidade legal de casais lésbicos, já que a impossibilidade de negar a maternidade para uma mãe biológica é acionada quando se estabelece o recurso à ROPA. O natural e o social dançam nos laboratórios e em consequência enlaçam-se diferentes esferas na produção de maternidades, parentalidades e parentesco.

Em resumo, podemos arriscar afirmar que é em função de mudanças e demandas sociais que a própria fixidez do par biologia e genética está sendo posta em questão. Neste sentido, não podemos deixar de dizer que, neste conjunto acionado para produzir pessoas, filhos, mães e parentesco, a política e as moralidades cumprem um papel importante. Destarte, tais procuras reprodutivas e tais famílias lesboparetais enredam um longo cenário de direitos LGBT que inclui o reconhecimento da parentalidade para a validação e construção da filiação. Por exemplo, a abertura na certidão de nascimento para o registro de dois pais, independente de qual seja o sexo de cada indivíduo do casal, é uma reinvenção dos lugares de parentalidade no Brasil. Podemos citar especificamente o caso do reconhecimento, em 2014, da dupla maternidade de um casal lésbico em Goiânia antes do nascimento da criança – levando em conta, para a definição da filiação, o projeto parental comum. O evento marca importante passo de desatrelo das correntes noções do parentesco como correspondente direto da natureza. É possível perceber, através deste caso, como nosso sistema familiar é um construto mesclado feito de relações e orquestramentos, e como o reconhecimento legal dessas novas modalidades familiares começa a ganhar espaço no Brasil. Revela-se, com os usos estratégicos da bio/genética realizada pelos casais lésbicos brasileiros, que o parentesco é mesmo um híbrido de dimensões sociais, naturais e, sobretudo políticas!

 

 

 

Notas

(1) Gestação de substituição é uma tecnologia reprodutiva que envolve o “empréstimo” de útero para a gestação de uma criança que não será filhx da gestante e sim daquelxs que se empenharam no projeto parental. É uma técnica muito utilizada por casais em que a mulher não pode engravidar ou entre casais gays.

(2) Termo cunhado no ano de 1997 pela APGL (Association des Parents et Futurs Parents Gays e Lesbiens), situada em Paris, referente a uma configuração familiar na qual o pai ou mãe define-se como homossexual.

(3) No Brasil não há legislação específica que regule estas intervenções médico/técnicas, bem como não há legislação vigente que respalde as práticas de doação de gametas. O que há como baliza são manuais de conduta como as Resoluções do Conselho Federal de Medicina que intentam nortear as práticas dos profissionais da área de reprodução assistida, em especial ao definirem as normas éticas para a aplicação das tecnologias.

(4) Termo usado para falar de configurações familiares em que a função parental é exercida por mulheres lésbicas.

(5) Termo utilizado para referir-se ao exercício da função parental que envolve cuidado, afeto, e responsabilidade para com filhx. Não apresenta relação direta com a biologia ou genética.

 

Referências

TARNOVSKI, F. L. . Homoparentalidade à brasileira: paternidade homossexual em contextos relacionais. Boletin Del Proyecto Sexualidades Salud y Derechos Humanos En America Latina, Chile, v. n. 8, p. 1-8, 2004.

FINE, Agnès. Parenté: liens de sang et liens de couer. In: Bedim, Véronique; Fournier, Martine. (Org). La parenté en question(s). Auxerre: Sciences Humaines Éditions, 2013.

 

 

 

 

Anna Amorim é doutoranda em Antropologia na UFSC e desenvolve pesquisa sobre lesbianidades e parentesco.

Ilustração: Thiago Fonseca

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