geni no mundo
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Nunca más un México sin nosotras
Jeni, Eva, Ramona e a participação das mulheres no governo autônomo zapatista. Por Juliana Bittencourt, da Cidade do México
“(…) cuando los compañeros y compañeras, comandantes y comandantas, salieron en la Marcha del Color de la Tierra, fue la Comandanta Esther quien habló en el lugar dónde solo pueden entrar los que según tienen estudio y corbata. Entró ella, habló y dijo: aquí estoy, en mujer indígena y zapatista.”
Claudia (Base de apoyo. Marez 17 de Noviembre). Caderno de texto “Participación de las mujeres en el gobierno autónomo”.
“Como una flor que brota y rompe el capullo para ofrecer a la vida fragancias y colores, la ilusión y los sueños se cuecen en el comal de las tortillas, se hinchan, se doran y se comen. Pasan luego a la sangre y de la sangre a los hijos y al futuro. Un futuro que florece en la fuerza para ser mejores y en la obstinación de una lucha.”
Guiomar Rovira. Mujeres de maíz. Cidade do México: Editora Era, 1997.
Do dia 25 ao dia 29 de dezembro de 2013, participei da Escolinha – ou Escuelita – Zapatista, em Chiapas, no México. Para compartilhar minha experiência como aluna e o que aprendi sobre a participação das mulheres no governo autônomo zapatista, escrevo este texto a partir do que foi, principalmente, uma experiência de escuta e convívio. A este texto precede um encontro organizado pelos coletivos Sin Rostro e Rancho Electrónico, realizado na Cidade do México, do qual participaram outros alunos e coletivos, como o Zapateando, para responder à pergunta: “E agora, depois da Escolinha, o que fazer?”.
A Escolinha teve, até este momento, três voltas (agosto e dezembro de 2013, e janeiro de 2014), como são chamados os dias dedicados ao curso “A liberdade segundo @s zapatistas”, processo de aprendizagem do pensamento e da ação zapatistas.
Se trata de um processo aberto, uma primeira aproximação aos diversos temas abordados nos quatro cadernos de texto (que podem ser baixados aqui) entregues aos alunos da Escolinha. Um deles é dedicado à participação das mulheres no governo autônomo; dois são dedicados à construção da autonomia zapatista; e o outro, à resistência autônoma. Usarei o símbolo arroba neste texto, assim como @s zapatistas o utilizam nos cadernos.
Jeni, a guardiã
Nosso ponto de partida foi o Cideci (Centro Indígena de Capacitación Integral, Universidad de la Tierra), localizado na cidade de San Cristóbal de Las Casas, em Chiapas. Em seguida, cada alun@ foi levad@ para um dos Caracóis – Caracol é o nome da sede de uma região que é conformada por comunidades autônomas zapatistas. Ao todo existem cinco Caracóis, e cada um tem um nome: o Caracol I é conhecido como La Realidad; o II, como Oventick; o III, como La Garrucha; o IV, como Morelia; e o V, como Roberto Barrios. O Caracol de cada alun@ foi designado aleatoriamente, assim como a comunidade, e íamos acompanhad@s por uma guardiã ou um guardião. No meu caso, fui para o Caracol IV, Morelia, e minha guardiã se chamava Jeni.
No Morelia, pude entender um pouco como era organizado o governo autônomo, que se divide em zonas, municípios autônomos (Marez), regiões e, finalmente, em comunidades. Nos apresentaram aos membros da Junta de Bom Governo daquela zona e cada membro falou sobre um dos temas relacionados ao curso. (As Juntas de Bom Governo foram criadas em 2003 como mais uma instância no governo autônomo, com membros designados pelos pueblos para administrar uma zona. Cada período da Junta dura três anos.)
Fui levada em uma pequena caminhoneta à comunidade de San Caralampio El Edén, sede da região Nuevo Amanecer Emiliano Zapata, que pertence ao município de Lucio Cabañas. Fui recebida por um casal, a Eva e o Adán. Eram mais velhos, pais e avós dos outros membros da comunidade. Me situei na gênese da minha experiência, em terra fria de macieiras e outros frutos proibidos, como o milho e o feijão.
Eva, a curandeira
Eva é a promotora de saúde da comunidade, ela receita ervas. Em cada comunidade existe uma clínica com duas promotoras de saúde, uma que receita medicamentos convencionais e outra que receita ervas administradas, como chás, unguentos ou na forma de microdosis (soluções hidroalcoólicas de concentrados de plantas medicinais).
Foi especialmente importante para mim estar com Eva. Em 2011, aprendi a fazer microdosis em um curso no espaço anarcofeminista Ni Ama Ni Esclava, no auditório Che Guevara, da Universidade Nacional Autônoma do México (Unam) (esse auditório foi ocupado durante uma greve estudantil em 2000), e, desde então, procuro me curar dessa forma. Nos três dias que estive na comunidade, Eva atendeu algumas pessoas e, sabendo do meu interesse, me explicou como havia cuidado de cada uma delas. Aprendi a fazer emplastro, pomada e a usar a arnica.
Em algumas comunidades, as famílias zapatistas convivem com famílias partidistas – que, ao contrário das zapatistas (que não aceitam qualquer ajuda do governo), recebem diversos tipos de apoios da política assistencialista que o governo de Chiapas (um dos estados mais pobres do México) realiza, não só com fins eleitoreiros, mas também para pressionar as famílias zapatistas a deixarem a autonomia. Eva e Adán me relataram o caso de uma clínica de saúde construída pelo governo que é apenas uma casca, sem medicamentos ou médicos. Muitas das pessoas que Eva atendeu não eram zapatistas, mas as clínicas de saúde zapatistas atendem a todos que necessitem. Na clínica de San Caralampio havia medicamentos e faziam-se, inclusive, exames ginecológicos como o de citologia cervical (Papanicolau), que era enviado para análise fora da comunidade.
Eva foi designada pela própria comunidade para exercer o cargo de promotora de saúde e, como todas as pessoas que assumem algum cargo, esta é uma responsabilidade a mais, além de todos os outros trabalhos que se realiza. Ninguém recebe por exercer um cargo, nem nas comunidades nem nas diferentes instâncias do governo autônomo. As comunidades se organizam em trabalhos coletivos, e os fundos arrecadados são destinados, por exemplo, para emergências (principalmente médicas) e para apoiar o transporte d@s companheir@s que tenham que realizar alguma atividade fora da comunidade.
Na comunidade de San Caralampio existiam diversos trabalhos coletivos: fazer geleia, apicultura, criação de galinhas e milpa (um tipo de cultivo mesoamericano no qual são cultivadas conjuntamente diferentes espécies), em terras que foram recuperadas no levante de 1994. A rotina de Eva era exaustiva com os trabalhos coletivos, domésticos e como promotora de saúde, mas ela me disse que os trabalhos estavam bem distribuídos. Enquanto ela realizava as suas atividades, o seu companheiro realizava outras igualmente importantes. No feminismo de cosmovisão indígena, não cabe o binarismo do feminismo hegemônico: um mundo melhor é construído entre tod@s.
Uma língua é uma cosmovisão. Eva não fala tseltal, uma das muitas línguas faladas em Chiapas, mas, como todos os zapatistas, ela valoriza o idioma e me ensinou algumas palavras importantes – lembrávamos juntas como se diz milho (ixim), feijão (chenec), muito obrigada (hocol awal). Me contou que quando era pequena trabalhava como empregada doméstica na casa de uma família em Comitán de las Flores, cidade localizada na fronteira com a Guatemala, e que não a deixavam sair para estar com sua família.
Estive três dias na comunidade. Durante as manhãs, ajudei nos trabalhos coletivos, a colher feijão e botil, a fazer geleia e conheci as escolas primária e secundária e a clínica de saúde. No segundo dia, Eva me deixou ajudar a preparar tortillas com minha guardiã, Jeni. Minhas tortillas não eram tão boas, e eu não tinha a mesma agilidade para fazê-las, mas pouco a pouco foram melhorando. Eva disse que eu daria uma boa camponesa. Agradeci e respondi que meu avô – campesino do interior de São Paulo – teria ficado orgulhoso de mim. À tarde, eu precisava estudar os cadernos de texto, e à noite conversávamos na cozinha. San Caralampio é frio, e este era também o momento em que nos esquentávamos ao redor do fogão a lenha, importante espaço de convívio e conversa.
Ramona, a comandanta
Do que li no caderno de texto sobre a participação das mulheres no governo autônomo, o que mais me marcou foi o relato de muitas companheiras sobre a dificuldade de participação de algumas mulheres por não saberem escrever ou falar espanhol. Para elas, a comandanta Ramona é um exemplo importante. Ramona, que morreu em 2006, é uma figura central na história do zapatismo e ficou conhecida pela frase “Nunca más un México sin nosotras”. Ela também não sabia escrever quando começou a lutar.
No caderno também está a Lei Revolucionária de Mulheres, que tem dez pontos, e uma proposta de ampliação dessa lei, com outros 33 pontos. Entendi que cada um desses pontos foi pensado e proposto pelas mulheres zapatistas para melhorar as suas vidas, a relação delas com os companheiros e a sua participação no governo. Eles explicitam as suas necessidades em determinados momentos da história do zapatismo.
Para situar o lugar do qual escrevo, acrescento que a experiência com os feminismos contra-hegemônicos antecede até mesmo a minha aproximação ao feminismo. Primeiro conheci mulheres que compartilharam como atuavam no dia a dia, como se sentiam, como pensavam, e só depois cheguei nos livros e em outras referências do feminismo hegemônico. E essa ordem das coisas é importante porque para além dos textos, os espaços de sociabilização nos quais compartilhamos nossas experiências de forma mais narrativa são fundamentais. Não foi na universidade que aprendi algo sobre feminismo, o feminismo já chegou dissonante por aqui.
Uma interessante intervenção do subcomandante Marcos sobre tipos de feminismo foi traduzida pelo Passa Palavra: “Segundo minha visão machista, em ambos os lugares entendeu-se a diferença entre umas e outras e, portanto, iniciou-se um reconhecimento mútuo que acabará em algo muito diferente, que seguramente poderá abalar não só o sistema patriarcal em seu conjunto, mas também nós que apenas estamos entendendo a força e o poder dessa diferença, e que nos leva a repetir, ainda que com outro sentido, o ‘Vive la différence!’, viva a diferença!”.
Em uma entrevista realizada para a agência Cimacnoticias, a antropóloga Mercedes Oliveira Bustamante comenta sobre o contato entre diferentes feminismos: “O feminismo indígena tem que ser um projeto de construção partindo de concepções do mundo indígena, das identidades coletivas, identidades que sim é preciso transformar, já que algumas são excludentes, sexistas e discriminatórias com as mulheres. Mas também há coisas dentro das coletividades indígenas que o Ocidente deve aprender, como a solidariedade e as redes familiares de apoio”.
O feijão e a festa
Dois livros polifônicos que me permitiram compreender melhor os feminismos e as fundamentais contribuições das diferenças e de importantes críticas tanto ao feminismo hegemônico quanto ao sistema capitalista e ao colonialismo foram Feminismos negros, publicado pela editora Traficantes de Sueños, e Dialogo y diferencia: retos feministas a la globalización. O primeiro é uma compilação de textos de feministas negras feita por Mercedes Jabardo. O segundo também é uma compilação de ensaios que apresentam diferentes perspectivas feministas de diversas partes do mundo, incluindo o feminismo indígena no México.
No encontro organizado para responder à pergunta “E agora, depois da Escolinha, o que fazer?”, formulamos outras perguntas, mas uma das respostas foi compartilhar o que aprendemos e, a partir dos nossos contextos, criar a autonomia. Aprender a fazer comunidade e fortalecer laços organizativos. Voltei para casa com uma panela de barro para cozinhar feijão (que Eva me deu de presente depois que perguntei se a panela era importante para poder cozinhar um bom feijão), uma saia como a usada pelas irmãs tseltales, os cadernos de textos para terminar de ler, potes de mel – e, principalmente, voltei diferente, com muita dificuldade em me encaixar nas coisas tal como estão.
Por último, gostaria de recordar que, para @s companheir@s zapatistas, não existe revolução sem festa. Antes de voltar para o Caracol IV, organizaram uma festa em San Caralampio El Edén com música, poesia, teatro, agradeceram a todos em espanhol e em tseltal, e escutamos a tod@s, alun@s, guardiãs e membros das famílias que nos receberam. Depois que uma das companheiras falou em tseltal, eu perguntei se alguém poderia traduzir, queria entender o que ela tinha falado, era importante. Mas ninguém traduziu, apenas perguntaram se ela queria falar novamente em espanhol, e ela respondeu que não. Pedi desculpas e compreendi que não entenderia tudo, que não posso entender tudo.
Para saber mais
Página na qual se publicam os comunicados zapatistas (em espanhol): http://enlacezapatista.ezln.org.mx.
Juliana Bittencourt é fotógrafa, pesquisadora e restauratrix.
Diz que foi por aí levando seu violão debaixo do braço.