Geni é uma revista virtual independente sobre gênero, sexualidade e temas afins. Ela é pensada e editada por um coletivo de jornalistas, acadêmicxs, pesquisadorxs, artistas e militantes. Geni nasce do compromisso com valores libertários e com a luta pela igualdade e pela diferença. ISSN 2358-2618

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Pesquisas que se fazem com uma só mão

Relato sobre um laboratório de pornografia na Universidade de São Paulo. Por Luiz Moreno Guimarães e Thiago E. Luzzi

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Singular relato de pesquisa

 

É ingênuo definir a pornografia como a mera exibição dos atos sexuais: ela é, antes disso, uma codificação desses atos; ela ocupa o lugar do não saber o que fazer na hora H; ela é um “veja: é assim que se faz”; enfim, ela esconde em si uma vocação pedagógica. E foi suspeitando dessa vocação, dessa maneira como ela codifica o ato sexual, que a gente decidiu se reunir um tempo atrás e tomar a pornografia como objeto de estudo.

 

Interessava-nos, sobretudo, a pornografia como ela aparece e é consumida hoje, isto é, nos vídeos na internet. E prezávamos – como princípio metodológico de pesquisa, para qualquer pesquisa – uma prolongada familiaridade com o objeto em análise; algo que já tínhamos (éramos consumidores desses materiais), mas jamais havíamos ocupado a posição de querer tirar deles um saber, de nós mesmos ou de qualquer coisa de mais geral sobre a função espectadora ou mesmo sobre a sexualidade. Ao que decidimos que – antes de fazer um levantamento bibliográfico do tema (o tal do status quaestionis), de onde em geral partem as pesquisas acadêmicas – deveríamos juntos assistir aos filmes em questão. A situação era estranha: nos reuníamos em uma sala da biblioteca do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP USP) para ver vídeos pornôs na internet. Parecia ser um segundo momento de uma cena que já havíamos vivido: lá onde os pré-adolescentes se juntam para bater, estávamos nós agora juntos para debater.

 

Ao contar a singularidade de nosso objeto de estudo aos colegas, não raro eles tinham excelentes indicações (de vídeos, de sites, bibliográficas, de contatos etc.), algo que notavelmente não ocorria quando falávamos de nossas outras pesquisas que seguiam em paralelo. A experiência foi ganhando corpo: conversamos e entrevistamos pessoas ligadas diretamente com a produção dos filmes pornôs, conhecemos melhor a extensão desse material, dentro e fora da internet. A experiência foi se complexificando: foram se criando relações íntimas com os entrevistados. A proximidade com os vídeos não deixava de apresentar o interesse primeiro, mais antigo, mas esse também já não vinha sem um encore, uma exploração já com as duas mãos liberadas e os olhos um pouco menos fixos. Vivíamos com a constante ideia de que nós mesmos poderíamos nos tornar atores, diretores ou roteiristas e, melhor ainda, os três juntos.

 

Ao lado disso, conduzíamos as leituras divididas em três eixos: 1) os textos que trabalharam diretamente com o tema – com frequência, textos que se apoiam na pornografia para justificar a adesão a algum movimento (em geral, a negação feminista ou o mergulho hedonista); 2) análises paralelas, que tomam objetos de estudo aparentados com o nosso, como, por exemplo, o erótico na literatura; 3) autores que raramente trabalham diretamente o tema, mas sem os quais não conseguíamos analisar – nossos pontos de alienação teórica, digamos assim (Freud, Lacan, Zizek, Agamben e Baudrillard).

 

Era hora de dar um nome para aquele que viria a se constituir à moda de um laboratório: Thiago constrói o chiste Lattesfuck, a partir do nome de um jovem e promissor laboratório da USP, o Latesfip (Laboratório Interunidades de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise). O nome é perfeito: em parte porque ele em si já era uma crítica, não exatamente ao laboratório referido, mas a uma forma se relacionar com as próprias pesquisas no interior da universidade; em parte, ainda, porque tratava-se exatamente de colher um fenômeno de manifestações sociais intensas e analisá-lo a partir das mesmas disciplinas que nomeiam o laboratório de cujo nome furtamos o som; e, por último, porque sabíamos que o que estávamos fazendo poderia de fato foder a nossa vida acadêmica, nosso currículo Lattes. Como se, para conduzir uma pesquisa – implicada – na academia fosse necessário uma considerável dose de antiacademicismo; para fazer um omelete é necessário quebrar os ovos (“pour faire une omelle il faut casser des ouefs”), como Freud gostava de citar. Que cada letra não fizesse menção a uma palavra não nos importava de forma alguma, era um chiste e não uma sigla. Lattesfuck: Laboratório de Estudos sobre Pornografia.

 

Linhas de análises

 

Passamos por um período de intensificação das análises. O pressentimento da presença de complexos de sentido recorrentes (em termos mais simples: a repetição) ia delimitando os campos de investigação, dos quais surgiam as nossas primeiras análises. Pequenas prototeorias iam se acumulando, e esperávamos um dia juntar tudo naquilo que poderíamos enfim chamar de uma análise da pornografia – esse dia ainda não chegou.

 

Nos guiamos novamente por uma frase de Freud: “Eu me preocupo com o fato isolado e espero que dele jorre o universal”. Nos preocupamos em analisar trechos de filmes: as bobas (porém, esclarecedoras) histórias iniciais que antecedem o ato sexual; a impossibilidade de enredo na pornografia, mas ao mesmo tempo o retorno do enredo no sexo altamente performático encenado; a insistência na sequência (oral, vaginal, anal, goza na cara) do filme hétero comum; o porquê da ênfase do gozar na cara; entre outros, entre muitos outros. Todos fatos isolados – uma vez analisados – ajudaram-nos a estabelecer relações as mais interessantes.

 

Como exemplo, grosso modo, podemos dizer que a pornografia – tal como a encontramos na internet – é uma espécie de realização tardia dos princípios que estavam no início da psiquiatria, que eram: descrever, catalogar, classificar, todos os comportamentos sexuais que não se submetem aos imperativos de reprodução. Repare como os sites pornográficos se assemelham a grandes catálogos, ao modo do Psychopathia sexualis de Krafft-Ebing. Outro exemplo é uma relação entre pornografia e pedagogia, à qual nos referimos na primeira linha deste texto, e que pode remontar à tradição libertina (Sade) sem perder a especificidade do apassivamento característico do consumidor no meio audiovisual. Enfim, tudo isso nossa dama fornece, mas sempre conservando seus mistérios: em termos dos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, de Freud, como pode a pornografia ser, ao mesmo tempo, objeto da meta (consumo do material pornô) e também meta do objeto (consumir pornograficamente um material qualquer)?

 

Isso eram só paralelos. Sabíamos que o jorro do universal, referido por Freud, era algo muito mais complexo e subversivo. No nosso caso é algo que explique o enlace que a pornografia propõe entre sexual e social, algo grande, portanto, que parecia exigir uma cota de loucura para ser alcançado. Ela veio. Ainda estamos elaborando um modo de contá-la (inclusive contá-la para nós mesmos). Talvez consigamos, talvez não: “Afinal, o melhor que sabes não pode ser dito aos meninos” (Goethe).

 

Duas apresentações

 

Participamos de um congresso no início de 2013, o qual, cometendo o erro (ou a coragem) de permitir submissões de vídeos, recebeu um dos nossos: amadoristicamente editado e sem concessões à pusilanimidade dos olhos. Em meio às imagens pornográficas, tecíamos – no próprio vídeo – nossas análises do material apresentado: eram fragmentos de vídeos ao lado de fragmentos de análises (utilizando assim o próprio método da pornografia que fragmenta os corpos).

 

O efeito mais interessante, todavia, foi que, em todos os comentários colhidos sobre o trabalho, imperava o relato de um não entendimento que, ao ser interrogado, vinha na descrição exata de que o rapto do olhar exercido pelo vídeo impossibilitava o mergulho teórico. Como se dissessem que frente àquele objeto não se pode teorizar: a pornografia é ateórica, ou melhor, antiteórica. Falando em termos da metapsicologia freudiana: podemos dizer que a ambição primeira da pornografia é capturar a nossa pulsão escópica; e como o nosso conhecimento está pautado em um modelo escópico (atente-se ao modo como denominamos o refletir, o especular, o esclarecimento), é como se, ao capturar a pulsão escópica, ela também impossibilitasse qualquer construção de um saber sobre ela.

 

Em um dos momentos em que o vídeo foi exibido estávamos bastante perto de um casal que foi pego de surpresa pelo teor (e não pela teoria) de nosso vídeo; efeito curioso: o marido congelou fixo à cena enquanto a esposa se escondeu com o rosto sobre o seu braço e tentou em vão puxá-lo para longe das imagens, sem olhar para trás mais nenhuma vez, evitando fazer-se estátua também, como a presa da Medusa ou a esposa de Ló que decidiu dar uma última espiadela na Sodoma arruinada.

 

Também fizemos uma segunda apresentação em 2013, esta no Instituto de Psicologia da USP, em casa, portanto. Foram muitas pessoas, que assistiram com empolgação às cenas dos filmes e ouviram pacientemente nossas análises. Neste caso, houve um efeito inesperado: assistir ao material pornográfico em conjunto (em grupo) parecia por si só ter um efeito interpretante: impossibilitava que ele fosse consumido – como ele normalmente é, na masturbação solitária e depressiva em casa – e portanto abria para um novo tipo de uso, indeterminado ainda. Por um lado havia o riso nervoso ao ver aquelas imagens ali, por outro havia o riso (talvez libertador) ao ouvir nossos chistes interpretativos.

 

Havia também, nos dois casos, a questão não enunciada, mas perfeitamente presente: como esses dois rapazes podem levar tão a sério um material como esse? E ainda trazê-lo para cá, lugar de análise das questões verdadeiramente sérias? Questões que não tivemos oportunidade de responder, porque não foram enunciadas em nenhum momento. Quisemos que fosse, para poder diante disso recordar que: sério é aquele que faz série: que insiste em uma mesma questão, seja ela qual for (como bem lembra e como bem fez Lacan), e não aquele que assume um objeto consensualmente considerado sério.

 

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Indicações

 

Nosso blog:

http://lattesfuck.wordpress.com

Endereço ainda em construção, que objetivamos tornar um portal – se não grande, no mínimo simpático – que reúna o material pornô e a teoria que o assume seriamente como objeto, a partir das estruturas metodológicas que buscamos desenhar nesse texto.

 

Site:

http://www.efukt.com/

Site que reúne o conjunto de erros que ocorrem nos filmes pornôs; é uma espécie de compilação de atos falhos da pornografia, isto é, aquilo que ela não queria que ocorresse, mas ocorreu. Nesse sentido, é um site que revela aquilo que cabe e que não cabe na pornografia, desconstruindo a máxima de que “a pornografia mostra tudo”. Em suma, é um site meta-pornográfico: para além da pornografia ele é tão pornográfico que deixa de sê-lo.

 

Vídeo:

http://www.xvideos.com/video3882912/revendo_a_teoria_zizekiana_do_cinema_e_da_pornografia_atraves_do_material_porno#_tabComments

Vídeo apresentado em abril de 2013 no I Colóquio de Arte e Psicanálise – Hímeros. Malgrado o amadorismo, a ideia aqui nos pareceu bem original e pensamos que pode ser levada adiante (por quem quiser levá-la): trata-se de criar vídeos-teóricos sobre e com o material pornográfico – incidindo nele e reapresentando-o de outra maneira, se é que isso é possível.

 

Bibliografia:

ZIZEK, Slavoj. “Pornography, Nostalgia, Montage: A Triad of the Gaze”. In: Looking Awry: An Introduction to Jacques Lacan through Popular Culture. Massachusetts: MIT Press, 1992. pp. 107- 122.

Dois pontos relacionados com a pornografia se destacam neste texto: 1) a relação entre olhar do sádico e a posição que a pornografia nos coloca, de tal forma que o autor pode afirmar que “na pornografia o espectador é forçado a priori a ocupar uma posição perversa”, o que de certa forma permite compreender o fracasso de uma série de tentativas de alcançar um “ideal fantasmático de uma obra pornográfica perfeita”; 2) a impossibilidade estrutural que diferencia o filme pornô do filme comum (não-pornográfico), que, grosso modo, seria: se por um lado o filme comum não pode exibir o ato sexual, o filme pornô não consegue sustentar a verossimilhança do enredo. Há uma versão em espanhol da Editora Paidós.

 

AGAMBEN, Giorgio. “Elogio da Profanação” In: Profanações. Tradução de S. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2007. pp. 65-80.

Os poucos parágrafos em que surge a questão da pornografia são absurdamente ricos, merecem ser descondensados e rearticulados com o argumento geral do texto. Além de permitir a construção – a partir da ideia política de profanar o improfanável – de uma interessante resposta à questão: o que fazer com a pornografia?

 

Luiz Moreno Guimarães (luiz.moreno@usp.br) e Thiago E. Luzzi (thiago.galvao@usp.br).

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