Geni é uma revista virtual independente sobre gênero, sexualidade e temas afins. Ela é pensada e editada por um coletivo de jornalistas, acadêmicxs, pesquisadorxs, artistas e militantes. Geni nasce do compromisso com valores libertários e com a luta pela igualdade e pela diferença. ISSN 2358-2618

resistência

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Quem manda na noite

Vivência em uma família LGBT. Por Elvis Stronger

Publicado em 06/03/2016

 

A família Mustang chegou

 

Bom, tive meu primeiro contato com as famílias LGBT em 2010 em um bairro da capital de São Paulo. Uma segunda feira às 20h da noite no encontro LGBT do Tatuapé, quando ele ainda era no estacionamento do shopping do Tatuapé.

 

Esse era um encontro onde dezenas de jovens vindos de todas as partes iam pro Tatuapé na segunda feira para paquerarem, conversarem, pra beijarem muito. Ali enquanto ficava com uma pessoa vi que alguém passou com pessoas que a seguiam. Perguntei o que acontecia e me responderam: a família Mustang chegou.

 

Daí me interessei em saber como uma pessoa exercia tanta influência sobre as outras num encontro. E não era a única, existiam vários agrupamentos de jovens naquele encontro, eram as famílias LGBT.GENI-sobrefamiIias1

 

E assim nasceram as famílias LGBT

 

Quando conheci a Vieira de Carvalho, lá no largo do Arouche, percebi que esse fenômeno de famílias LGBT era mais intensificado, mais enraizado, pois, de cada 10 jovens no encontro LGBT do Arouche que ocorria nos domingos a partir das 19h, pelo menos 7 eram de alguma família.

 

Essas famílias não eram algo novo naqueles encontros, porque pesquisando descobri a existência delas desde o final da década de 60. Tudo indica que bem no auge da ditadura militar, quando os LGBTs eram expulsos de casa, geralmente porque seus pais descobriam sua sexualidade, quase todos acabavam indo morar na rua, bem na zona que é conhecida como boca do lixo.

 

E pra viver na rua, as condições são outras: a vida é mais violenta, mais truculenta. Então muitos desses LGBTs acabavam por parar em casas ou cortiços cujas donas eram travestis. Pra poder morar lá, esses jovens tinham que pagar uma quantia, e como muitas dessas travestis eram também cafetinas, ou eles se prostituíam ou arranjavam um outro emprego. Essas travestis além de uma casa, ofereciam proteção pra esses jovens indefesos. Daí surgiu a figura da mãe e seus filhos e assim nasceram as primeiras famílias LGBTs. Só que esse tipo de família LGBT é bem diferente da maioria das famílias hoje existentes na capital de são Paulo.

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Uma classificação

 

Assim como as famílias de sangue, as famílias LGBT também tem suas divisões e subgrupos. Eu as classifico de acordo com suas características e seu tempo de existência. Para ficar mais claro, explicarei como funcionam suas hierarquias de forma fácil e depois citarei alguns exemplo das principais vertentes.

 

Família “primitivas” (chamo-as assim por serem as mais antigas)

 

Essas foram as primeiras famílias criadas. Elas têm como líder principal sempre uma travesti que dá aos membros da família casa, alimento e proteção e, muitas vezes, é sua cafetina. Seus membros geralmente são travestis e alguns gays mais próximos da líder, que é sempre chamada de mãe.

 

Famílias “medievais” (chamo-as assim por conta do sobrenome e do brasão)

 

São famílias do final da década de 80 e começo dos anos 90. Entre seus membros, cresce o número de gays e lésbicas e diminui o número de travestis. Geralmente a mãe é uma travesti ou gay mais afeminado e o pai é um gay ou lésbica mais masculinizada.

 

Essas famílias funcionam assim: os pais mandam, os filhos obedecem. As punições são bem rigídas e podem ser desde multas em dinheiro até correções físicas.

 

Famílias rolezinho

 

Essas já começam a aparecer no final da década de 90 e a maioria delas é formada por gays e lésbicas que usam o sobrenome da família na rede social. A mãe é sempre uma drag que bate cabelo ou faz shows. Esses grupos carregam sobrenomes, mas não têm brasão. As drags seriam como divas e os membros funcionam como um fã clube.

 

Esse tipo de família é muito comum em cidades da região metropolitana de São Paulo, principalmente nos bairros periféricos e sempre são apadrinhadas pelas famílias medievais ou pelas famílias modernas. Geralmente servem para garantir espaços seguros para os membros.

 

Famílias “modernas”

 

Essas famílias já possuem o sobrenome, algo muito importante, pois ele diz muito sobre quem a pessoa é no submundo LGBT. Possuem brasão e/ou logotipo. Existe um pai, uma mãe e tios e tias que podem ser responsáveis pela criação de famílias dentro da família.

 

Existem regras para entrar e fazer parte da família, com registros e o formulário interno específico de cada grupo. As punições deixam de ser multa em dinheiro ou correções físicas e passam a ser boicote à pessoa na balada, rolê ou evento.

 

Nesse tipo de família, entende-se que é preciso a união contra a LGBTfobia. Incluem-se todos da sigla, com homens e mulheres trans fazendo parte das famílias e tendo destaque dentro delas.

 

Famílias “pós-modernas”

 

Essas famílias possuem tudo o que as outras tem, mas vão além: fazem eleições para decidir quem lidera a família. Elas também possuem estatuto próprio e algumas até formam ONGs.

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Isso se chama respeito

 

Como todas as pessoas que eu ficava eram mais novas que eu e pertenciam a uma família LGBT, tive a curiosidade de saber como entrar em uma. Basicamente, pra pertencer a uma família do Arouche, alguém tinha que te indicar ou os pais e mães tinham que se interessar por você.

Essas famílias potencializavam o mundo desses jovens, pois através delas eles conheciam baladas e bares onde menores podiam entrar e descobriam outros lugares de São Paulo onde aconteciam encontros em escalas menores do que na Vieira e no Tatuapé. E entrar em uma família era muito bom pra autoestima também.

 

Só que eu me recusava a pertencer alguma família, pois percebia um certo autoritarismo por parte de seus pais. Eles mandavam e desmandavam em seus filhos. Certa vez, estava com meu namorado, o Arthur, e a sua mãe da noite pediu pra ele ir brigar com uma pessoa de outra família simplesmente porque a pessoa tinha olhado torto pra ela. Ele logo de desprendeu do meu braço e se atentou pra o que lhe foi pedido. Ao ver isso, me indignei, contestei o porquê de tanta violência gratuita e comecei a bater boca com aquela mãe de família. Depois desse episódio, pedi pra ele deixar a família, o que não ocorreu e eu que acabei perdendo o namorado.

 

Era muito comum ver essas famílias brigarem no Arouche ou no Tatuapé, onde quer que estivessem presentes. Porque arrumar briga e ganhar a pancadaria te dava nome, e ao ganhar nome, as outras pessoas teriam medo de você. Isso se chama respeito.

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Todos os pais e mães de família sem exceção buscam por respeito, pois fortalecer seus nomes os tranformam em mitos da madrugada. Isso pode lhes garantir vantagens, como entrar VIP em baladas e até mesmo beber sem pagar nada lá dentro. Evita também que outras pessoas arrumem briga com eles por conta do nome forte. Na noite do submundo LGBT, o que importa é seu nome, pois o chefe da família é seu amigo, o juiz, o policial. Ele é o governo ali na noite.

 

Quanto mais tempo de noite, mais experiência e mais respeito por pais e mães de família você tem. Isso é algo que se aprende na noite. E quando você também é respeitado por outros pais, você acaba virando padrinho de outras famílias e assim, influencia diretamente nas decisões delas.

 

Bom, quando eu decidi entrar pra uma família…

 

Isso foi em meados de 2012. A família se chamava Ferrari e entrei nela por conta de um amigo que a criou e me chamou pra fazer parte. Primeiro eu meio que recusei, mas depois de fazer uma análise mais profunda da força que as famílias LGBT tinham em gays e lésbicas da periferia de São Paulo e pensar que toda a energia negativa podia ser enfraquecida e a parte boa ser potencializada, decidi entrar e tentar mudar por dentro. Não seria tarefa fácil, mas não custava tentar mobilizar essa força que tinham pra conquistar outros espaços, como a política, por exemplo.

 

Não é fácil alguém sem nome mudar algo numa família LGBT, pois ali existem egos. O pai e a mãe decidem tudo, desde a balada que a família vai frequentar até quem pode ou não frequentar o lugar. O apóstolo Paulo ensinou que presisávamos nos fazer de tolos pra ganhar os tolos, mas essa família Ferrari tinha um pai ausente que só gostava de mandar e de dar ordens absurdas.

 

Estava bem desgostoso com a família Ferrari, pois os seus membros faziam festas e nunca me convidavam, iam pra balada e não me chamavam, iam pro encontro em Mauá e não me chamavam. Enquanto isso, os Stronger sempre me chamavam e conversavam comigo. Essa era uma das maiores e mais influentes famílias da época, que inclusive dava apoio para a família Ferrari.

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Os poderosos Stronger

 

Quem mais conversava comigo na família Stronger era a mãe Tata, que era heterossexual. Nós passávamos horas nos falando no telefone. A Tata sempre me incentiva, me dava forças. Eu e ela planejávamos vários projetos juntos e bebíamos Jurupinga todo final de semana. Eram tardes bem divertidas.

 

A Tata era uma pessoa muito respeitada na noite LGBT. A poderosa mãe da Stronger, a dama da noite, como era conhecida. Uma vez, ela contou uma história de quando ela foi pra rua Augusta. Os Stronger costumavam ir todo sábado lá no Bar Verde.

 

Eles estavam na rua bebendo e se divertindo quando, de repente, escutaram uma explosão. Foi um pânico geral, todo mundo correndo, outros se escondendo dentro dos banheiros dos bares. Escutaram mais explosões, aí a correria e o pânico foi geral. Eram os skinheads que estavam atacando a comunidade LGBT na Augusta.

 

Mas dentre os Stronger, havia um corajoso homem que enfrentou os skinheads e fez aquela população amedrontada também tomar coragem e enfrentar esses nazistas, botando o pequeno grupo pra correr. O nome dele era Augusto. A partir daquele momento ele viraria tio da família e o terceiro no comando dos Stronger por seu feito heróico. Por causa desse ato, Augusto seria respeitado por todas as outras famílias também, não somente pela família Stronger.

 

Também lhe foi dado o direito de adoção. Esse direito é concedido somente a filhos ou tios que mostram ter responsabilidade. Adoção é quando um pai coloca alguém na família. Ou seja, quando você entra em uma família LGBT, você é adotado.

 

Como funciona a família Stronger

 

A família Stronger pode ser classificada como uma família moderna e atualmente conta com cerca de 240 pessoas. Temos núcleos e coordenadores para fazer a família funcionar melhor. Nós temos os núcleos de transmasculinidades, de mulheres transexuais e travestis, de saúde, de eventos e passeios, de religiões afrodescendentes, de assessoria de imprensa e o núcleo político.

 

Na nossa família há um pai de honra, o fundador do grupo há dez anos atrás. Uma mãe heterossexual também de honra e um conselho geral da família que, junto com o núcleo político, é responsável por fazer o calendário da família avançar. E também é responsável por resolver possíveis conflitos entre os membros da nossa família com membros de outros grupos.

 

Hoje, quando a pessoa entra para a família Stronger, explica-se pra ela o que é família LGBT e ela passa a acompanhar o cotidiano da nossa família. Para ser oficialmente adotada, ela precisa esperar um mês e, caso more na região metropolitana de SP, espera-se que ela participe de pelo menos três eventos. Uma vez dentro da família, ela pode fazer parte dos núcleos, caso queira. A decisão fica sempre com ela.

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Família Stronger e as lutas

 

O grande marco para as famílias LGBT, em especial a família Stronger foi quando o jovem Kaique Augusto, que tinha desaparecido, foi encontrado morto em janeiro de 2014. Kaique foi achado com o corpo cheio de hematomas e com uma barra de ferro em sua perna.

 

Duas famílias se uniram pra realizar um ato cobrando as autoridade por justiça, essas foram a Stronger e a Valentyny. Foi o maior protesto em que já estive presente – milhares de pessoas responderam ao nosso chamado e marcharam pelo centro da cidade pedindo por uma resposta para o caso.

 

No final de tudo, a polícia sequer investigou o caso e concluiu que Kaique tinha se suicidado. Assim a família Stronger percebeu que não somente a proteção de seus membros era importante, mas que a família exercia um papel fundamental na vida vida deles e tinha a responsabilidade de orientá-los em busca de ideais e direitos.

 

Muitos desses jovens que chegam na Stronger tímidos e sob pressão de uma comunidade LGBTfóbica ganham força e aprendem por meio de cursos de iniciação política feito por jovens em uma linguagem jovem para jovens. Nós temos que ocupar conselhos, conferências e audiências públicas. Estas são ferramentas importantes para nossa luta, são armas que devem ser usadas para combater a LGBTfobia.

 

Em 2015, nos debates sobre o PME (Plano Municipal de Educação) da cidade de São Paulo, a família Stronger protagonizou uma frente importante para garantir a palavra gênero no documento final do Plano. Organizamos uma vigília em frente a Câmara de São Paulo para garantir que militantes a favor da inclusão do gênero pudessem entrar no auditório onde aconteciam os debates dos parlamentares. Dormindo lá, nós garantimos que as pessoas que não puderam entrar protestassem mesmo do lado de fora.

 

O curso de iniciação política realizado no mesmo ano contribuiu com a mobilização, pois permitiu que os jovens entendessem a importância de se apropriar das conferências e audiências públicas e conselhos.

 

Já em 2016, organizamos a Conferência Livre LGBT periférica na Zona Sul de São Paulo. Foi algo incrível ver uma galera bem jovem se interessando em fazer políticas públicas para população LGBT. O resultado foram ótimas propostas, como a implementação de casas de passagens para LGBTs expulsos de casa, algo crescente em nosso meio, principalmente entre os jovens. Outra proposta interessante foi a de postos de saúde sensibilizados para LGBTs nas periferias e, ainda, com tratamento hormonal, pois isso aliviaria a carga do CRT localizado na Santa Cruz.

 

Também ajudamos a escolher o tema da Parada LGBT de São Paulo: Lei de Identidade de Gênero Já – todos contra a transfobia! E, ainda, fazemos parte do GT (grupo de trabalho) da Juventude, pelo qual lançamos um vídeo de combate à transfobia.

 

Elvis Justino Stronger, nascido em SP em 1986. Ativista pelos direitos humanos com recorte de questões LGBT no coletivo família Stronger.

Ilustrações: Gunther Ishiyama 

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